O Estado está capturado e suas instituições não têm coragem, por cumplicidade, em enfrentar o golpe
Em 1962 Friedrich Hayek, o teórico basilar do que se chama neoliberalismo, escreveu uma carta a António Salazar, então ditador em Portugal com fortes simpatias fascistas, explicando que o envio anexo do seu livro “The Constitution of Liberty” seria para o ajudar “na sua tarefa de desenhar uma Constituição que previna os abusos da democracia”.
A hegemonia neoliberal do modo de produção capitalista levou o mundo à tendência estrutural ao monopólio e à hiperconcentração de capital. Para isto, suas frações dirigentes caminharam a uma associação inevitável com os setores mais anti-humanistas, neofascistas e autoritários do próprio capitalismo e de suas elites políticas.
O mergulho neste modelo econômico ultraconcentrador, que exige cada vez mais medidas de esbulho dos mais pobres, levou à associação orgânica desta fração dirigente da burguesia rentista com o autoritarismo, através de governos, partidos e frentes neofascistas que implantam as políticas de expropriação do valor do trabalho, como as reformas trabalhista e previdenciária, alinhadas com a sustentação política dada pelos aparelhos de hegemonia, como os meios de comunicação, igrejas fundamentalistas, o sistema de justiça e maiorias parlamentares.
O mundo enfrenta uma verdadeira pandemia de autoritarismo, pesadelo que muitos acreditavam havia sido superado pela social democracia do pós-guerra e pela “onda” de independências e regimes pós-autoritários na África e na América. Israel é um caso paradigmático onde o instável e deslegitimado governo do Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu fechou o parlamento e os tribunais israelenses em um claro passo adiante na ideia de desdemocratização e autoritarismo em emergência no mundo. As situações autoritárias se repetem na Hungria de Viktor Orban, na Bulgária de Boyko Borisov, nas Filipinas de Rodrigo Duterte, entre outros arroubos da nova direita no mundo.
A participação de Jair Bolsonaro no atos contra a democracia, à frente de tropas de neofascistas saudando o Ato Institucional Nº 5 da Ditadura de 1964, não permitem mais considerações superficiais ou indolentes sobre o que significa seu governo e seu ‘partido”. Trata-se de um bloco político cujo sentido maior é o de quebrar a democracia no Brasil e eliminar seus adversários.
É certo que esta nova direita, de cunho fascista e fundamentalista, já era existente antes da candidatura Bolsonaro. Estava entretanto, fragmentada, acuada e isolada. Se manifestava sem que à ela fosse dada a devida relevância. Se articulou com o discurso liberal, contrário às políticas sociais. Se aproximou de amplas parcelas do empresariado através de seu discurso anticomunista, que na verdade servia de legitimação para um discurso contrário ao Estado social, aos direitos fundamentais e aos sistemas protetivos, como o trabalhista, o previdenciário, assistência social, a educação e o de saúde.
Contudo é o governo Bolsonaro que dá forma final à esse partido-tropa, é o governo Bolsonaro que aglutina, dá programa e voz à nova direita antes fragmentada. No governo Bolsonaro que se materializa aliança do empresariado financeiro com os setores médios fascistas. A carta de Hayek à Salazar, finalmente, foi lida no Brasil.
O Estado está capturado e suas instituições não tem coragem, por cumplicidade, em enfrentar o golpe. Não se pode, portanto, cair no erro do minimalismo, da desídia política, de achar que o sistema político corrigirá um eventual desvio conjuntural. O fascismo, em suas diversas vertentes, não é um ‘desvio do sistema”, é o próprio sistema em sua versão perfeita.
Se não é possível acabar com o fascismo de uma vez só, que se acabe com o que lhe dá organização, racionalidade e força política: o governo Bolsonaro.
Recentemente Fernando Haddad, Guilherme Boulos, Ciro Gomes, Randolfe Rodrigues, Manoela D´Avila, Tarso Genro e outras lideranças políticas publicaram um manifesto onde pedem que Bolsonaro renuncie. O Manifesto afirma: “Em nosso país a emergência é agravada por um presidente da República irresponsável. Jair Bolsonaro é o maior obstáculo à tomada de decisões urgentes para reduzir a evolução do contágio, salvar vidas e garantir a renda das famílias, o emprego e as empresas.” Para logo adiante concluir que “Bolsonaro não tem condições de seguir governando o Brasil e de enfrentar essa crise, que compromete a saúde e a economia”. Tenho pleno acordo.
O manifesto foi lançado antes das fatídicas manifestações do domingo fascista mas identificou o centro da tática de Bolsonaro. Diz o manifesto “governo que aposta irresponsavelmente no caos social, econômico e político”. A estratégia é produzir o caos e responsabilizar a oposição, tanto de esquerda quanto de direita. Construir os inimigos para destruí-los.
O manifesto é em si, portanto, um valor ao unir lideranças democráticas, de esquerda e centro-esquerda, em torno desta necessidade salvacionista, mas também é um valor ao alertar que Bolsonaro e as sandices de seu governo e ministros não são um caminho inevitável. Que seu fim criará melhores condições para o enfrentamento da crise econômica e sanitária pelas quais passamos.
O manifesto trabalha com a pressão para que Bolsonaro renuncie. Outros pensam que a melhor agitação possível ou única é o impeachment do presidente. Não é razoável cair em uma armadilha sobre a técnica mais adequada no campo da política para se conduzir a extinção do governo Bolsonaro, se renúncia ou impeachment, mesmo se essa dualidade técnica assumir ares de dualidade na tática política. Há uma etapa da luta política preliminar, é preciso, antes, que a sociedade chegue, majoritariamente, à conclusão que a continuidade do Governo Bolsonaro levará o Brasil para uma grave crise de amplo espectro, sanitária, econômica, política e ética. É preciso, que essa opinião se transforme em deslegitimação e é preciso, por fim, que o bloco de forças no poder se divida. Que a sociedade perceba que Bolsonaro não está fazendo sandices ou bizarrices, mas organizando o auto golpe, uma ditadura legitimada pela eleição.
A sustentação de Bolsonaro está baseada na emergência de uma nova direita, mobilizada, ideologizada e politizada, que reúne um conjunto social de ressentidos ideológicos que pensam ter perdidos direitos naturais baseados na supremacia racial, no patriarcado e nos valores culturais religiosos fundamentalistas e em uma camada de médios ricos que agem para tratar a pandemia como uma oportunidade de lucros e não uma crise humanitária.
O governo Bolsonaro deve ser interrompido porque ele caminha e sustenta abertamente o rompimento da Constituição Federal. Porque ele está armando um partido-tropa, disposto à violência e à ruptura, enquanto presta serviço aos muito ricos. A chave, portanto, desse movimento político, o de abreviar o governo Bolsonaro, não é acreditar pura e simplesmente na força do desejo ou de uma ou outra palavra de ordem, mas organizar uma frente capaz de alterar a opinião pública majoritária. Isto somente se dá em torno da ideia de que a continuidade do governo Bolsonaro e sua desejada ditadura são incongruentes com a superação da pandemia e da desigualdade. Mais do que isto, que o governo Bolsonaro é um dos grandes agentes causadores desta crise.
Assim, movimentos pela renúncia, pelo impeachment, por eleições presidenciais, convergem na construção desta maioria necessária para pôr fim ao governo Bolsonaro. Bolsonaro ainda não foi derrotado, mas pode sê-lo. Para isto é necessário encará-lo como ele é: o partido do fascismo.
Edição: Katia Marko