Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | "O Irlandês" e a política da guerra permanente

"Bombardear geografias é política de Estado nos USA, pelo menos desde a Segunda Guerra, não importa o governante".

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"Scorsese, a meu ver, faz mais uso da palavra do que das imagens. A chave deste seu último filme está na palavra." - Divulgação

Ninguém desconhece que as grandes narrativas literárias e cinematográficas têm espessura e densidade, texto e subtexto, onde cabem camadas sobrepostas de rica imaginação sujeitas a derivar para múltiplas interpretações.

Se olharmos para “Dom Quixote” de Cervantes, podemos classificá-lo rasamente como um romance humorístico de cavalaria, a comédia que aborda o ridículo e o grotesco de um homem que perdeu o juízo. Mas todos sabemos que Cervantes foi bem mais fundo do que pode parecer aos apressados.

Em “Robinson Crusoé” podemos apenas ver um náufrago criativo que soube sobreviver 28 anos em uma remota ilha hostil e ameaçadora, mas podemos igualmente interpretar a obra como o homem seminal do capitalismo que nascia, um indivíduo solitário que inventa o ambiente ao seu redor e supera os enormes desafios da Natureza e a domina.

A riquíssima obra de Shakespeare fala de prosaicos romances entre adolescentes, de vulgares e sangrentas rixas familiares, de renhidas e ordinárias lutas pelo poder, mas o subtexto aponta para um acurado e inteligente mapeamento completo da alma humana – tudo isso quase quatro séculos antes de Sigmund Freud.

Como se vê, a genialidade de alguns autores vem embrulhada em um modesto papel de pão. É preciso abrir os muitos invólucros para descobrir a rica gema do gênio.

Na perspectiva deste “nariz de cera”, vamos ao comentário que me ocorre depois de assistir ao filme de Martin Scorsese, “O Irlandês”. Confesso que não li o livro que serviu de roteiro para o filme do grande  Scorsese. Trata-se do livro de Charles Brandt “I Heard You Paint Houses” (Ouvi dizer que você pinta paredes), um ex-promotor de homicídios que ouve as confissões de um idoso, morador de uma casa de repouso. O idoso é o descendente de irlandeses, Frank Sheeran, que confessa dezenas de assassinatos a serviço da máfia, inclusive o malogrado destino do poderoso ex-líder sindical Jimmy Hoffa. Como não li o livro do promotor, não posso afirmar que a politização da narrativa – embora encoberta por muitas camadas de véus não exatamente translúcidos (o subtexto) – seja de autoria de Charles Brandt ou de Martin Scorsese.

O diretor Scorsese, a meu juízo, politizou o roteiro, mas o fez de uma forma modesta e quase enigmática. Scorsese não quer falar exatamente da máfia, o quão foram crueis e sanguinários “pintores de paredes”, ladravazes incorrigíveis, embora tão tementes a Deus quanto da lei e do fisco. Scorsese quer falar – sempre de forma oblíqua e ambígua – da conspiração multitudinária que liquidou com os irmãos Kennedy, John e Robert. Este, sempre um tema tabu nos USA. O ex-presidente Obama prometeu abrir os arquivos secretos sobre o caso Kennedy, mas foi dissuadido pelas forças ocultas do nada oculto Deep State, a aliança profunda do chamado complexo industrial-militar, a banca, a plutocracia organizada, e os novos sistemas integrados das big techs, acrescido das agências estatais de vigilância/polícia/espionagem/sabotagem.  

O diretor de “O Irlandês” percorreu o país com o roteiro do seu futuro filme, com a finalidade de financiar o empreendimento cinematográfico, cujo orçamento alcançou quase 160 milhões de dólares. Todos os produtores tradicionais USA negaram estribo para Scorsese. Acabou sendo acolhido pelo Netflix, o provedor global de filmografia em streaming (distribuição web sem descarga de dados), cujo valor de mercado já ultrapassou a tradicional The Walt Disney Company.

A arte do cinema é aquela do movimento sequenciado em imagens, mas também é texto literário. Scorsese, a meu ver, faz mais uso da palavra do que das imagens. A chave deste seu último filme está na palavra. Em que momentos? Quando a máfia cita o velho Joseph Kennedy, o patriarca da família. Quando os mafiosos expressam ódio e prometem vingança contra os irmãos Kennedy. Quando Russel Bufalino (com o sempre ótimo Joe Pesce, fazendo o papel de chefão mafioso da Pensilvania) convence o “pintor” Frank Sheeran que é mais fácil eliminar um líder sindical que o presidente dos Estados Unidos. Quando a máfia toma uma decisão drástica e definitiva com relação ao líder nacional dos caminhoneiros, Jimmy Hoffa (interpretado por um Al Pacino canastrão), seu aliado desde sempre, mas que insiste em voltar à direção do grande e poderoso sindicato, promovendo ameaças de toda a sorte.

Por que a máfia que, em parte, apoiou a candidatura de John Fitzgerald Kennedy (JFK), voltou-se contra ele no curso da sua administração? Para responder, é preciso antes entender quem foi Joseph (Joe) Kennedy, o pai de JFK e de Bob Kennedy, e mais sete filhos. O presidente Franklin Delano Roosevelt foi amigo e aliado político de Joe Kennedy. Fez de Joe, que nunca foi diplomata, seu embaixador na Inglaterra. Roosevelt, antes de entrar na Segunda Guerra, escreveu a um genro seu, sobre a figura controversa de Joe K, assim: “A grande verdade é que Joe sempre foi um rapaz irlandês temperamental, estragado prematuramente pelo gigantesco sucesso financeiro […], imensamente egoísta e totalmente obcecado pela ideia de que deve deixar, quando morrer, cada um de seus filhos com um milhão de dólares (disse-me isso várias vezes). Tem declarado horror a qualquer mudança no atual estilo de vida americano. Para ele, o futuro da pequena classe capitalista estará mais seguro com Hitler do que com Churchill. Isso faz parte do inconsciente e ele não admite”.

Joe K foi embaixador dos USA na Inglaterra, por dois anos, de 1938 a 1940. Era contra os USA entrar na guerra com os aliados. Ele dizia que “as guerras eram ruins para os negócios e pior para os seus negócios”, conforme assinalou o jornalista James Reston. Como diz a escritora Lynne Olson, em sua obra “Churchill e três americanos em Londres” (Globo, 2010), comprovando a índole negocial inescrupulosa do velho Kennedy: “O embaixador  americano [referindo-se a Joe K] acreditava tão firmemente nisso [que a guerra seria péssima para os seus negócios pessoais] que chegou a usar de sua posição oficial a fim de reservar espaço, já então muito escasso nos navios mercantes, para suas próprias transações na exportação de bebidas”.

David Talbot, escritor e jornalista, talvez seja o profissional de imprensa que mais conheça acerca da conspiração que eliminou os irmãos Kennedy, John em novembro de 1963 e Robert em junho de 1968. Talbot conta em detalhes a conspiração em “Irmãos – A história por trás do assassinato dos Kennedy” (Benvirá, 2007) e complementa (com farta documentação oficial) em “The Devil’s Chessboard: Allen Dulles, the CIA, and the Rise of America’s Secret Government” (Barnes & Noble, 2016).

Talbot fala de Joe Kennedy, assim, em “Irmãos”: “Era um mestre em explorar as fronteiras lucrativas da iniciativa empresarial americana, de sua época de especulador na Wall Street a magnata do cinema e contrabandista de uísque. Comerciar bebidas alcoólicas durante os anos da lei seca proporcionava os mesmos lucros que hoje se obtém com o tráfico de drogas. Mas também significou fazer negócios com a Máfia, se prezasse sua vida, e Kennedy foi direto ao topo para garantir a segurança de seus negócios. Fez uma parceria com Frank Costello, o ‘primeiro-ministro do submundo’”.

Joe era um perfeito escroque, apesar de católico praticante. Tinha grandes investimentos em Hollywood, foi amante e sócio da atriz e empresária Gloria Swanson. A atriz terminou o relacionamento com Joe depois de ter ganho uma jóia valiosa dele. Gloria descobriu que o presente foi pago com recursos do caixa da empresa de ambos.

No filme de Scorsese, a máfia insulta Joe com adjetivos nada edificantes. O velho fez campanha (e arrecadou “donativos”) no meio criminal para que apoiassem a eleição do filho John, com a promessa de que com ele no poder, o novo regime de Cuba, recém vitorioso, seria deposto e tudo voltaria à velha e prostituída ordem na ilha, com o domínio da máfia sobre hotéis, cassinos, rufianismo e tráfico de drogas. Tanto que a invasão da Baía dos Porcos, o assalto de mercenários anticastristas de Miami contra o aparato militar de Cuba, foi armado e financiado pela máfia estadunidense, apenas três meses depois da posse do presidente John Kennedy. O assalto – concebido e planejado ainda no governo Eisenhower – foi um completo desastre, sob todos os aspectos, e JFK passou a entender o que estava por trás de tudo aquilo. Com esse recuo, passou a ser odiado pelos criminosos de todas as frações da máfia e pelo conjunto da numerosa comunidade anticastrista da Flórida. Engrossava, assim, o caldo venenoso de cultura que iria formar uma espécie de frentão conspiratório contra ele e o irmão Robert.

O sindicalista Jimmy Hoffa foi o grande inimigo pessoal de Robert Kennedy, este como procurador-geral do Estado. Tiveram memoráveis embates de ódio nas distintas comissões formadas no âmbito oficial, Ministério Público, comissões da Câmara de Deputados, comissões do Senado, etc.

A jornalista brasileira Claudia Furiati teve acesso a documentos secretos de Cuba, e a partir destes arquivos, ela escreveu um livro chamado “ZR, o rifle que matou Kennedy” (Revan, 1993). Claudia perguntou ao general Fabian Escalante Font, um dos responsáveis pelo serviço de inteligência e contra-inteligência cubano, o G-2, quem foram os responsáveis e os planificadores do assassinato do presidente Kennedy. Escalante Font responde: “A CIA, a Máfia e a contra-revolução cubana foram os responsáveis, planificadores e executores do magnicídio”. Claudia pergunta: “E quem seriam os integrantes por parte da Máfia?” O general responde: “Santo Trafficante Júnior, Sam Giancana, John Roselli e seguramente Carlos Marcello e Jimmy Hoffa”. Como se vê, o único fora do círculo da máfia era o corrupto Hoffa. O sindicalista nunca foi mafioso de raiz, era amigo e estava cercado por mafiosos da pior espécie, mas isso não fazia dele alguém confiável à “Cosa Nostra”, não tinha ascendência italiana (condição sine qua, para ser acreditado no meio criminal das grandes “famiglias”), era um tagarela contumaz e não escolhia inimigos, sobretudo dentro da própria máfia. No filme de Scorsese ele tem uma cena de vias de fato com o “caporegime” de Nova Jersey, Tony Provenzano, o que praticamente selou a sua sorte dali por diante, agravado por arrriscadas ameaças públicas que fazia, prometendo contar e provar fatos acerca do assassinato do presidente JFK.

Então, o mínion cabeça de amendoim mofado vira-se e me indaga: “Certo, mas por que o diretor Scorsese não abriu tudo isso, explicitamente, no filme?” Ora, meu caro mofado, porque Martin Scorsese jamais conquistaria um produtor que bancasse um filme com esse conteúdo escancaradamente aberto e comentado. Logrou conseguir o Netflix, cujos proprietários são parte do sindicato dourado chamado Masters of the Universe, que reúne a plutocracia e organiza os seus interesses, mas certamente condicionado a não ir além dos diálogos picantes de algumas cenas – justamente a parte politizada de “O Irlandês”.

Mas o mofado insiste: “Ah! Você e suas teorias da conspiração, embrulhado nos velhos temores da antiga Guerra Fria”. Sim, respondo, com a máxima serenidade, quem denunciou o “complexo industrial-militar” foi nada menos que o ex-comandante geral das tropas aliadas na Segunda Guerra, o general e presidente dos Estados Unidos, o senhor Dwight Eisenhower. O mesmo que mandou ser executado um golpe de Estado na Guatemala, em 1954, o mesmo que permitiu que o seu vice, Richard Nixon, armasse uma conspiração contra Cuba, que resultou no desastre militar da Baía dos Porcos, cometida já no governo de John F. Kennedy. Outro personagem insuspeito que igualmente denunciou o perigo da crescente militarização dos USA, foi o economista e conselheiro de JFK, John Kenneth Galbraith, em um pequeno ensaio publicado em 1969 sob o título “Como controlar os militares”, onde examina a coesa unidade político-negocial de empresários contratistas do governo na área de Defesa e a casta militar estadunidense.

De qualquer forma, a meu ver, Martin Scorsese se saiu bem da sua empreitada. Contou a história de mafiosos de carne e osso e, ao mesmo tempo, abordou subliminarmente um grande tabu estadunidense (que se ufana de forma tola da democracia e da República local): o assassinato de um presidente da República, replicando o ethos sócio-cultural de uma republiqueta bananeira qualquer.

Mais grave: assassinato vil executado por gente do lumpesinato nacional, a máfia das famiglias, em consórcio com a CIA (Allen Dulles teve papel relevante nisso tudo), o FBI (J. Edgar Hoover teve papel relevante nisso tudo, o mesmo que disse a Bob que “a máfia não existe”), os protofascistas e facinorosos anticastristas, e frações das Forças Armadas (como testemunhou John Kenneth Galbraith em um ensaio acima comentado).

Venceu a parte da América que propugna pela “guerra permanente”. Bombardear geografias é  política de Estado nos USA, pelo menos desde a Segunda Guerra (não importa o governante). JFK e seu irmão Robert perceberam isso e deram um basta. Foram punidos com a eliminação física: a odiosa gramática da plutocracia-lúmpen.

Em 14 de abril, 2020.

 

(*) Sociólogo

Edição: Marcos Corbari