Imagina sua vida sem um filme, série, novela ou teatro. Suas idas a estabelecimentos sem uma música ao fundo para acompanhar, ou até mesmo em casa para dançar. Se o ser humano respira cultura, se a arte é essencial, ela só existe devido aos profissionais que se dedicam a ela, em suas mais diversas frentes. Com a pandemia o setor foi o primeiro a sofrer um apagão no país. Com cinemas, circo, bares, teatros e museus fechados, a cadeia econômica foi interrompida e os impactos atingem diretamente trabalhadoras e trabalhadores do ramo, que mesmo diante de uma realidade complexa, disponibilizam sua arte pela internet.
Dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2018, apontam que, em média, 5 milhões de pessoas trabalham no setor cultural no país, representando 5,7% das ocupações. Grande parte desses profissionais não tem renda fixa ou carteira assinada. De acordo com o IBGE, são cerca de 44% de pessoas que desenvolvem suas atividades de forma autônoma ou informal.
No Rio Grande do Sul, um estudo inédito do Departamento de Economia e Estatística (DEE/Seplag), divulgado recentemente, mostra que são mais de 130 mil os empregos formais neste segmento, e mais 48 mil microempreendedores individuais (MEIs). De acordo com o estudo, são profissionais que atuam em áreas como artes cênicas, audiovisual, gastronomia, literatura, patrimônio, publicidade, artes visuais, ensino da cultura, design e moda.
Na representatividade econômica, de acordo com o Atlas Econômico da Cultura Brasileira, lançado pelo Ministério da Cultura, em 2017, o setor foi responsável por 2,64% do PIB no país (Produto Interno Bruto), sendo o estado gaúcho o quarto colocado no campo da economia criativa. Em um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) no ano passado, o setor movimentou R$ 190,5 bilhões. Contudo, a Fundação projeta que, devido à pandemia do novo coronavírus, o setor deve perder cerca de R$ 46,5 bilhões e ter um recolhimento de 24%.
Para as entidades representativas do setor e artistas, a conclusão é de que o setor, que já vivia uma realidade difícil por conta do desmonte e falta de aporte financeiro, especialmente por parte do governo federal, a situação se agravou ainda mais. “O contexto é que já havia um desmonte na cultura, seja nos níveis federal, estadual ou municipal. Os governos já não estavam investindo na cultura. No federal perdemos o ministério e diversos mecanismos, sem contar as perseguições aos artistas. No estado tivemos a diminuição da percentagem de repasse para o Fundo de Apoio à Cultura (FAC), que era de 25% e passou para 10%. Em Porto Alegre, o Fumproarte, fundo criado para financiar os projetos da cultura, não abre edital há quatro anos”, relata o presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões do Rio Grande do Sul (Sated-RS), Fábio Cunha, frisando que o quadro foi agravado devido ao coronavírus.
“Toda cadeia produtiva da cultura foi atingida em cheio. Muitos trabalhadores da arte já estão com dificuldades financeiras. Em circunstâncias normais, se leva em média uns seis meses pra levantar uma produção. A situação se agravará para além do tempo de isolamento”, completa.
Sem o contato direto com o público
Diante da pandemia, uma das primeiras e principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) foi a de evitar as aglomerações. Sendo que a maioria das atividades culturais artísticas necessitam do contato físico e acontecem envolvendo profissionais e público, os espaços onde eles se desenvolvem foram fechados e ou suspensas as atividades.
“Todos os espaços culturais como teatros, escolas de dança, escolas de circo, escolas técnicas de som, luz e vídeo, empresas de grande e pequeno porte, produtoras, grupos, circos de lona, todos estão vulneráveis. A grande maioria está desligando temporariamente seus funcionários. O grande público não faz ideia de quantos trabalhadores se envolvem para fazer um show de música ou um espetáculo de dança. Sem falar dos espetáculos teatrais, óperas, circos, cinema, é uma cadeia enorme. Imagina agora tudo parado?”, ilustra Fábio.
Eventos de grande porte, como a Bienal do Mercosul e o projeto Fronteiras do Pensamento, seguem adiados. A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA), que esse ano completa 70 anos, teve seu concerto de aniversário, que aconteceria no dia 23 de março, prejudicado. A comemoração, de acordo com a Secretaria Estadual de Cultura (Sedac) aconteceria no Theatro São Pedro, assim como a série de concertos alusivos aos 250 anos de Beethoven. Ainda paira a incerteza quanto a outros eventos tradicionais no estado.
“Ainda não sabemos como será a Semana Farroupilha ou a Feira do Livro de Porto Alegre. A Conferência Estadual de Cultura, organizada pela Sedac e prevista para acontecer neste primeiro semestre, também já está transferida para a segunda metade do ano”, destaca a secretária da pasta, Beatriz Araújo.
“Os teatros foram os primeiros a serem fechados e é muito provável que sejam os últimos a voltarem a funcionar. Sabemos que é uma situação complexa para todo o país, para todas as trabalhadoras e trabalhadores, mas falando especificamente da questão dos trabalhadores da cultura, é ainda mais”, opina a atriz/atuadora Tânia Farias, integrante da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.
De acordo com a secretária Beatriz, por força de decreto, as instituições da Sedac cancelaram toda a programação nos períodos de quarentena estipulados, mas franquearam a agenda futura para as atividades suspensas. “Os espetáculos e demais atividades serão remarcados, na medida do possível, com o objetivo de reduzir prejuízos e colocar a arte já produzida ao alcance do público.”
A necessidade de se reinventar
Para o músico e produtor Gabriel Vargas, da Tribo Brasil, a realidade tem sido muito dura. “Tivemos quase que zerada a renda do grupo. Fazíamos uma média de 18 a 20 shows por mês. A maioria dos meses do ano, uma média de 80% da nossa renda, era tirada de shows. Ter essa renda reduzida a zero é bem difícil”, desabafa.
Apesar da pandemia e do isolamento a banda conseguiu montar o cronograma de produção de músicas novas autorais, para gravação de um novo disco. “Como o grupo tem seis músicos, fica complicado fazer live com todos. Daí nos dedicamos a produzir sons autorais à distância, extraindo áudios de vídeos de celular e editando em conjunto”, exemplifica.
Para o professor, artista plástico e músico, fundador do Grupo Unamérica, Zé Martins, o momento tem sido, inicialmente, de tentativa de se adaptar a essa difícil situação. “Tivemos vários shows cancelados e sem perspectiva de apresentação pública. É um momento delicado e que exige além dos cuidados, criatividade e paciência”.
O músico que mora em seu ateliê na Lomba Grande, em Novo Hamburgo, destaca que o fato de não ter de sair do local permite que as ferramentas fiquem sobre a mesa e os instrumentos fora do estojo. “O trabalho de forma ininterrupta auxilia na qualidade e na quantidade da produção. A experiência nova é mixar sem estar no estúdio. As composições que integram o Projeto Canções para Tempos de Cólera, gravadas antes da pandemia, estão sendo mixadas agora”, ilustra.
Não podendo estar presente junto ao seu público, a saída de muitos artistas tem sido disponibilizar na internet seus espetáculos, vídeos, shows, lives. Recurso adotado por artistas consagrados como Jorge Drexler, Fito Paez, e artistas locais, como a própria Terreira da Tribo, que disponibilizou alguns dos seus espetáculos. “É uma maneira de fazer as pessoas terem mais uma opção no momento em que mais precisamos alimentar o espírito e a imaginação”, aponta Tânia.
Muitos artistas estão unidos e se ajudam internamente nos seus nichos e as representações dos diversos setores de arte tentam conseguir algum tipo de incentivo do poder público, pontua Gabriel. “É muito triste lermos notícias de países europeus, destinando verbas e exaltando a importância dos artistas nos seus países, e no Brasil somos quase que marginalizados por parte da sociedade e o poder público”, comenta. Gabriel ressalta que a classe artística está produzindo muito material e pedindo ajuda de várias formas.
Uma dessas alternativas para garantir o trabalho é feita através de “Vaquinhas virtuais”, como a feita pelo Grupo Unamérica , que fez a sua para arrecadar os recursos para pagar o estúdio para gravação das músicas e a produção de um clipe para a versão em português da canção chilena El Pueblo Unido Jamás será Vencido, de Sérgio Ortega e Quilapayun. "Nosso objetivo é disponibilizar gratuitamente as quatro músicas gravadas que consideramos importantes instrumentos para enfrentar os tempos atuais. Também estamos buscando editais disponíveis, tanto na área da música como das artes plásticas.”
O compositor e violonista Rodrigo Nassif também criou a sua arrecadação virtual. Morador de Porto Alegre ele teve as apresentações com o seu trio transferidas ou canceladas. Assim como Nassif, a atriz e produtora Juçara Gaspar também lançou uma campanha de arrecadação. “Como todos, também tivemos nossos planos paralisados, cancelados os shows e apresentações, além da turnê em SP, na qual vínhamos trabalhando há alguns meses. Como forma de amor e resistência, porque temos fé que vamos sair dessa melhores e mais fortes, temos feito uma live semanal, sempre no domingo, às 17h, nas redes sociais Instagram e Facebook.
“O momento é de nos reinventarmos, mas antes teremos que sobreviver. As contas já estão nas nossas portas. A pior parte é não ter o que comer”, frisa Fábio, ao reforçar que uma boa parte de artistas está em uma situação precária.
“Estamos fazendo coisas pela internet, mas nem todos tem essa habilidade de fazer vídeo, de fazer arte pela internet, como por exemplo os técnicos que não praticam isso, que estão mais por detrás do que é visto. São iluminadores, montadores, produtores. Tem toda uma área técnica que está parada. Está faltando política pública para o setor”, reforça o presidente da Casa do Artista, da Associação de Circo, e integrante do Conselho Municipal de Cultura, secretário-geral do Sated, Luciano Fernandes.
O jornalista Ricardo Romanoff, retratou um pouco da realidade dos técnicos e produtores no RS, no site do Roger Lerina.
Categorias pedem socorro
A pandemia atingiu também uma das maiores companhias circenses, o Cirque du Soleil, que no final de março suspendeu espetáculos e dispensou cerca de 95% do seu staff . De acordo com a agência Reuters, as demissões passam de 4.500 colaboradores.
Artistas circenses gaúchos também vêm passando por dificuldades. Com uma bilheteria inexistente, as famílias circenses vêm pedindo ajuda, assim como a Casa do Artista Rio Grandense de Porto Alegre. No Rio Grande do Sul, há cerca de 26 circos (lonas), compostas em média de 10 a 45 pessoas, e mais cinco circos de passagem, além de cerca de 17 escolas circenses e 27 grupos e companhias de circo. “Têm pessoas que já estão procurando outro tipo de emprego, outros voltando para suas famílias, alguns circos estão voltando para sua região de origem. Muitos tiveram que desmontar, mas as famílias estão acampadas no terreno, tem sido feita uma mobilização junto às prefeituras e à própria comunidade para ajudar arcar com as despesas”, relata Luciano.
A crise que está atingindo a todos, desde os estudantes até os profissionais, está chegando na Casa dos Artista, expõe Luciano. Na casa que existe desde 1949, moram atualmente oito artistas. Os pedidos da casa se focam em cestas básicas, produtos de higiene, em especial álcool gel. Por abrigar grupo de risco, para evitar aglomeração, a casa montou duas cozinhas e está sendo construído um quarto em separado, para o caso de haver contaminação de algum morador. As doações tanto para casa quanto para os artistas circenses podem ser feitas entrando em contato com Luciano (51 98943-7898), ou na própria casa.
A Secretaria de Cultura está cadastrando os agentes culturais que estão enfrentando situação de vulnerabilidade em razão da covid-19. Segundo Beatriz, a ideia é desenvolver uma parceria com a Secretaria da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e empresas parceiras, visando a distribuição de alimentos produzidos por pequenos agricultores que não têm condições de comercializar sua produção. “Já recebemos mais de 800 inscrições, de 104 municípios. Seguimos cadastrando e em contato com o secretário Covatti Filho (Agricultura/RS), que está viabilizando as aquisições e distribuição, que será feita em parceria com a Defesa Civil.”
Ainda no âmbito estadual, o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) criou um programa de apoio emergencial que contempla os empreendedores da economia criativa do RS. A iniciativa, que tem o apoio da Secretaria da Cultura (Sedac), é voltada para o atendimento de pequenas e médias empresas (mais detalhes aqui).
Políticas públicas
Apesar de não poder ser possível mensurar em números o impacto econômico no estado, uma vez que as estatísticas disponíveis são todas nacionais, a secretária Beatriz reconhece que eles são incalculáveis, tanto para os trabalhadores da cultura como para o público consumidor. Conforme expõe a secretária, logo que se instalou a pandemia a pasta publicou a Resolução nº 03/2020, flexibilizando prazos, pagamentos e escopo de projetos e convênios fomentados pela secretaria, que representam R$ 30 milhões.
Como amparo ao setor até o final de 2020, a pasta irá lançar, pelo menos, quatro editais do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), totalizando recursos de R$ 10 milhões. “Em razão da pandemia, vamos privilegiar a produção artística e cultural a ser transmitida por meios digitais. Também estamos atentos a formatos simplificados de inscrição de projetos, acessível a um universo maior de agentes da cultura, para que possamos chegar mais ainda na ponta de quem produz a cultura popular”, aponta a secretária.
Para Fábio essa escolha inicial acaba excluindo muitos técnicos e artistas do processo. “Nossa arte é presencial. A cultura está dividida por 12 colegiados. Cada setor tem diversas funções, como cenógrafos, iluminadores, sonoplastas, atores, atrizes, músicos, diretores, dramaturgos, entre outras. São mais de duas mil funções. Por isso nossa preocupação, a demora dos governos em apresentarem reais medidas para a cultura. Mesmo sabendo que agora o foco é a saúde, se não olhar para os outros setores a problemática vai ser maior. Se não houver a intervenção econômica na cultura, vamos ter diversas empresas fechando e trabalhadores em situação de vulnerabilidade extrema”, ressalta .
“Estamos à espera de políticas públicas de emergência que realmente atendam com dignidade e reconheçam os trabalhadores da cultura. Não apenas editais que transportem os trabalhos presenciais em digitais, como se isso fosse uma saída que incluísse a todos”, complementa Luciano.
A maior preocupação é com o sustento desses profissionais e de suas famílias, assevera Fábio. “Os editais propostos pelos governos atendem uma pequena parcela, queremos buscar algo mais abrangente. Uma das propostas é a criação de um fundo de amparo ao trabalhador da arte, um auxilio salário algo do tipo”.
Em âmbito federal, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou na quinta-feira passada (16) a proposta que amplia o alcance do auxílio emergencial de R$ 600 durante a pandemia do novo coronavírus (PL 873/20). Foram incluídos trabalhadoras e trabalhadores das artes e da cultura e retirada a necessidade de comprovação de rendimentos até R$ 28.559,70 em 2018. O PL volta para a aprovação no Senado e depois do presidente da República.
Tânia Farias ressalta que é fundamental que as autoridades tomem consciência da gravidade da situação dos artistas, da situação dos trabalhadores da arte e de todo o setor cultural para que se gere propostas alternativas. “Nós vivemos um momento em que é preciso afirmar o óbvio, somos trabalhadoras e trabalhadores da cultura. Produzimos bem simbólicos nesse país, então a nossa sobrevivência também é importante, e também é função do Estado criar essas alternativas, esses planos emergenciais.”
Articulação de artistas para cobrar saídas
Nacionalmente foi criada a ATAC (Articulação dos trabalhadores das artes da cena em defesa da democracia e da liberdade). A articulação reúne artistas de todo o país, que vêm discutindo propostas e batalhando junto a parlamentares para apreciação de projetos de lei que tratam de planos emergenciais para o setor.
Em Porto Alegre existe o Move - Rede de Artistas de teatro de Porto Alegre. Tânia que participa dos dois movimentos diz que na semana passada o Move lançou vídeo perguntando para o estado e para o município porque é que ainda não há um plano emergencial para o setor cultural, e explicando um pouco também sobre a situação dos trabalhadores das artes.
Edição: Marcelo Ferreira