No dia 17 de abril de 1996, 21 trabalhadores rurais foram assassinados pela Polícia Militar no episódio conhecido mundialmente como Massacre de Eldorado dos Carajás. “É uma macula de sangue em nosso país, que lembramos com muita dor, mas transformamos essa dor em luta e resistência, numa grande unidade do nosso movimento. Aconteceu no Pará, na década de 1990, num período de muita crise que vivíamos no nosso país, com o neoliberalismo vindo para nosso continente”, conta o dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul, Cedenir Oliveira.
Cedenir foi um dos entrevistados do MST pela Rede Soberania, na manhã desta sexta-feira (17), ao lado da também dirigente nacional do movimento em São Paulo, Kelly Manfot. “Trabalhadores e trabalhadoras rurais do Pará estavam realizando uma marcha por terra e Reforma Agrária, quando, por volta das 17 horas, foram surpreendidos por comboios que vieram de duas direções, na curva do S, naquela região. Foram encurralados, a polícia chegou atirando, não puderam nem fugir”, rememora Kelly. O crime segue impune. Dos 155 envolvidos, apenas dois comandantes foram condenados, e cumprem pena em liberdade.
A dor que se transforma em solidariedade
A data acabou se transformando no Dia Internacional de Luta pela Terra. Em 2020, ao completar 24 anos do massacre, em meio à pandemia do coronavírus, o MST transforma a dor em luta pela vida dos brasileiros e brasileiras. “Hoje, em especial estamos fazendo da nossa luta um processo de solidariedade que ocorre em todo o Brasil, solidariedade dos frutos da terra. Por isso estamos fazendo centenas de doações. Somente hoje, estamos doando 500 toneladas de alimentos em todo o país, marcando a data”, destaca Kelly.
Cedenir afirma que o MST está consciente da gravidade do vírus: “Primeiramente, defendendo a vida da nossa militância, para que nós tenhamos que nos cuidar, nos preservar e levar em consideração as indicações e métodos para não contrairmos esse vírus. Em segundo lugar, estamos com esse trabalho de solidariedade entre os próximos”. Segundo ele, mesmo com o Rio Grande do Sul enfrentando uma de suas piores secas, “que está assolando muito os camponeses, desde novembro do ano passado”, o movimento está repartindo aquilo que tem.
Mesmo nessas condições adversas, as ações de solidariedade que tomam conta do país em auxílio a famílias que vivem em comunidades periféricas são iniciativas do povo. “O agronegócio não doou nada. Pelo contrário, segue fazendo lobby. Ainda não estamos enfrentando um desabastecimento nas prateleiras, mas isso ainda não está descartado porque é uma crise profunda. Vemos o quilo do feijão já em 8, 10 e até 12 reais. Isso é especulação com a comida, no momento que povo mais precisa de alimentos”, critica Kelly.
Responsabilidade do Estado
Para Cedenir, apesar das importantes ações de solidariedade, a responsabilidade de cuidar da população e criar políticas é do Estado. “Temos reafirmado, não só o MST, mas diversas organizações populares e políticas, as denúncias do que vem ocorrendo, o desmonte das políticas públicas, do papel do Estado para atender os interessas da população, porque o Estado é eficaz quando se trata de interesses do capital."
Para o dirigente, a cada dia transparece a incapacidade do presidente em conduzir o país por esse governo. Acredita que uma das lições que a pandemia pode trazer é a derrota das ideias neoliberais e do Estado Mínimo. “Sem dúvida, estados e países que têm condições de atender sua população vão sair menos prejudicados. Imagina o nosso país, com essa dimensão continental, se não tivesse o SUS. Nos EUA, a revelação é que quem está morrendo são os latinos, os que não têm acesso universal. Após a pandemia, é necessária uma profunda reflexão de que país queremos. A forma como está sendo conduzida é trágica.”
Kelly avalia que a sociedade brasileira não aguenta mais a política genocida do governo federal. “Por isso, ontem, durante o pronunciamento, foram ouvidos panelaços em todo o país. O crime de Bolsonaro é contra o povo, mas também contra os profissionais da Saúde, principalmente as mulheres, que são a maioria na Saúde. É primeiro a vida, depois a economia, não há dicotomia em defender vida e economia. Precisamos lutar por uma economia que defenda a vida”, afirma.
A dirigente também comentou a demissão de Luis Henrique Mandetta do Ministério da Saúde. “Muitas pessoas saíram na defesa do ministro, mas temos que lembrar que ele defendeu a Emenda Constitucional 95 que congelou investimentos na Saúde, ele expulsou os médicos cubanos do Brasil. Mas agora, sua demissão no momento conjuntural de crescimento da pandemia e crescente dos mortos representa um enorme risco político.”
O limite do capitalismo
A crise pela qual passa o Brasil não é fruto do coronavírus, ela apenas foi agravada pela pandemia, aponta Cedenir. “É sistêmica do capitalismo. Já vínhamos alertando que a crise ambiental e social que estamos vivendo vai levar nosso país a barbárie. Nunca se passou tanta miséria e tanta fome no mundo como agora. Por isso é importante nesse 17 de abril, dia de luta pela Reforma Agrária, reafirmar uma alternativa a essas crises, reposicionar o modelo de agricultura que queremos, colocar a Reforma Agrária como medida estruturante”. O dirigente destaca que isso não resolve somente o problema dos Sem Terra, “mas questões centrais do país como os bolsões de miséria nas grandes metrópoles, que são insustentáveis e só vamos resolver com repartição justa da terra”.
Já Kelly destaca a situação mundial, ao exemplificar que o capitalismo deu errado. “Uma crise mundial como essa expõe essa fratura do modelo. É preciso que se diga isso, 1 bilhão de pessoas no planeta passam fome e não têm acesso à água. E o modelo é destrutivo à natureza. A origem da pandemia tem a ver com essa forma desequilibrada da relação com natureza. A covid-19 está na origem da destruição da natureza, das florestas tropicais e forma industrial de criação de animais”, avalia.
Reforma Agrária e comida sem veneno
Na origem do MST, a luta era pela democratização da terra. A pauta segue atual e justa, mas durante a trajetória de 36 anos do movimento, houve um acúmulo no conceito de Reforma Agrária e hoje, a luta é maior. “Houve evolução filosófica, teórica e de prática cotidiana. Não basta apenas democratizar o latifúndio. Temos que olhar o que e para quem vai ser produzido”, afirma Cedenir, destacando que o movimento vem cada vez mais produzindo alimentos sem veneno e de forma agroecológica.
“Essa é a questão colocada no momento atual. O agronegócio não vai doar alimento porque vai doar o quê? Eucalipto, soja? Cana de açúcar, minério? Quem tem condições de entregar alimentos de qualidade são os pequenos agricultores, agricultores familiares, camponeses a assentados”, afirma o dirigente. Ele destaca que a agroecologia, forma de produção que respeita os ciclos da natureza, está estritamente ligada aos seres humanos. “Não haverá ampla produção de alimentos agroecológicos se não tiver ampla distribuição de terra. A agroecologia tem que ser produzida pela mão das pessoas. Está ligada a esse novo conceito de Reforma Popular, com base agroecológica, para produzir para milhares de pessoas em nosso país.”
MST junto do povo
As mudanças estruturais que o país precisa devem sair de uma retomada do trabalho de base, avalia Kelly. Nesse sentido, o MST está envolvido em duas campanhas importantes de solidariedade, destaca Kelly. Uma delas é a campanha “Vamos Precisar de Todo Mundo”, que reúne, por meio de uma plataforma online, ações em curso de mais de cem entidades que compõem as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. A outra é a campanha "Periferia Viva", focada na luta por políticas públicas e no trabalho de base construído nos territórios.
“Há uma enorme necessidade nos bairros e periferias de ter mais a presença da esquerda e dos campos progressistas. As casas estão abertas e estamos indo levar alimentos. Temos que ter trabalho popular no pós-pandemia, e já estamos colhendo necessidade de ampliação no contato com o povo. Só o trabalho de base vai poder desmontar o fundamentalismo que muitas vezes se utiliza das religiões, com conversa e escuta do povo brasileiro”, afirma.
Kelly finalizou sua participação na entrevista com uma mensagem do povo amazônico do movimento. “Estamos em casa, mas não estamos em silêncio, porque se calarmos as pedras gritarão. Então seguimos firmes, fiquem em casa, mas não fiquem em silêncio."
Importância da mídia popular
Nas considerações finais de Cedenir, ele destacou o compromisso do MST com a Rede Soberania e com o Brasil de Fato RS. “Reafirmamos a importância de contribuirmos financeiramente para que possamos manter esses canais. Certamente, depois da crise voltaremos com mais força no jornal impresso. Nossa meta é virar semanal. Estamos construindo e ajudando nessa ferramenta de diálogo e disputa ideológica junto à sociedade gaúcha e brasileira”, disse, quando foi divulgado o link da campanha permanente em que todos podem contribuir mensalmente para manter o Brasil de Fato RS no ar. “Vamos transformar essa dor em resistência e que oxalá possamos deixar de enterrar nossos mortos e construir uma sociedade mais fraterna e solidária”, concluiu.
O debate foi veiculado na página na Rede Soberania, em parceria com o Brasil de Fato RS. Assista aqui.
Edição: Katia Marko