Desde que o Governo do Estado anunciou a contratação da sua empresa para realizar testes de covid-19, a rotina do veterinário Toni Patrick dos Santos Machado tem sido a de dar explicações. A escolha da M&S Produtos Agropecuários Ltda para fazer testes do novo coronavírus, conhecida em Pelotas como Agropecuária Machado, virou alvo de estranheza e indagações por ocorrer em detrimento de centenas de laboratórios especializados em análises clínicas existentes no Rio Grande do Sul.
As dúvidas relativas a lisura do processo de escolha por parte do governo de Eduardo Leite (PSDB), assim como a capacidade técnica do laboratório em realizar os testes, levou o Ministério Público Estadual (MPE) a entrar com pedido de liminar para suspender o contrato pelo prazo de 30 dias. Segundo o MPE, a suspensão deve valer até que o Governo do Estado apresente relatório que comprove a adequação do laboratório clínico às normas estabelecidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na RDC 302/2005, chancelado pela Vigilância Sanitária Estadual e Municipal.
“Será mais uma explicação. Fico até feliz, vou poder explicar, não tenho nada a esconder”, afirmou Toni Machado à reportagem do Sul21. A declaração foi dada horas antes do MPE anunciar a ação, mas já sabendo que um grupo de parlamentares do Psol havia solicitado ao órgão a apuração de possíveis irregularidades na contratação da empresa.
A agropecuária realiza testes exigidos para exportação de animais vivos há cerca de quatro anos. Segundo Toni Machado, apenas nos dois últimos anos, a empresa fez cerca de 100 mil testes de RT-PCR. Ele explica ser esse o motivo pelo qual a agropecuária possui laboratório montado, com equipamentos aptos para o teste de covid-19, equipe técnica capacitada e expertise. Destaca, por exemplo, ter em sua equipe Rodrigo Casqueiro Cunha, aprovado em segundo lugar no concurso para dar aula de biologia molecular na Universidade Federal de Pelotas (UfPel). “Minha equipe é top”, afirma Machado, confiante.
Para justificar a contratação de uma agropecuária ao invés de universidades e laboratórios reconhecidos, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) informou ter contatado diversas universidades, mas que nenhuma delas teria os insumos necessários para teste de RT-PCR, o mais indicado para o momento, de acordo com o órgão. A Secretaria justificou que os laboratórios contatados teriam apenas insumos para o teste rápido, “um teste menos confiável e que só pode ser aplicado a partir do 10° dia de manifestação da doença”. Por outro lado, explicou a SES, as unidades que ainda têm insumos e capacidade para realizar o teste de RT-PCR estariam trabalhando para hospitais e clínicas privadas de Porto Alegre e/ou do interior do Estado.
Nesse cenário de falta de insumos, surgiu então a dúvida: por qual razão uma agropecuária teria em estoque os insumos específicos para testes de covid-19? Toni Machado conta ter adquirido os insumos no começo de março, com o objetivo de testar familiares e funcionários. Estava preocupado com a irmã, grávida, com o pai de 77 anos de idade, além da esposa e dos dois filhos, de 6 e 2 anos de idade. Desde então, já recebeu mais três remessas de insumos.
Ele afirma que os insumos não estão em falta no mercado. O que está difícil conseguir, segundo ele, é o kit pronto, e é esse kit de PCR que os laboratórios costumam utilizar. Machado conta ter comprado os reagentes dos mesmos fornecedores com os quais trabalha há anos e, a partir de uma sintetização, ele mesmo criou os kits, um processo chamado de RT-PCR inhouse. “Tem laboratório privado querendo comprar o que tenho, e aí sim eu poderia ganhar dinheiro. Mas não vou vender, porque se vender, o SUS e minha região vão ficar sem teste”, afirma.
O dono da agropecuária diz que o imbróglio envolvendo a contratação da sua empresa tem atrasado o ritmo dos exames. Contratado para fazer até 250 testes por dia, ao custo de R$ 175,00 cada, Machado conta ter feito apenas 56 testes desde a assinatura do contrato. “Tô tomando porrada”, lamenta. Pondera que, atualmente, a espera pelo resultado de covid-19 chega a 10 dias, enquanto o contrato assinado com o governo prevê o resultado em 24h.
Ele reconhece ter alterado o contrato social da sua empresa e acrescentado a atividade de “laboratório clínico” apenas no dia 6 de abril, mesma data da assinatura do contrato com o Governo do Estado. Todavia, não vê qualquer irregularidade na ação e justifica como algo normal, considerando que, até então, a empresa fazia exclusivamente testes para exportação de animais vivos.
Toni Machado demonstra confiança na capacidade da empresa em realizar os testes de covid-19 de que o Rio Grande do Sul tanto precisa. Entre elogios à sua equipe, fala do apoio que tem recebido dos fornecedores. Como exemplo, conta ter conseguido emprestado dois robôs de extração automática de RNA. O material será importante para o novo laboratório que está montando, com o objetivo de manter o atendimento dos clientes que exportam animais vivos. “Quero ver uma universidade receber uma ligação dessa e receber emprestado algo que custa R$ 200 mil”, afirma.
Testar testar e testar
A pressão exercida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e grupos de empresários para o afrouxamento das regras do isolamento social, como solução para amenizar o impacto econômico da crise, tem ampliado o debate sobre a importância de testar a população. É recorrente o exemplo de países como a Coreia do Sul e a Alemanha, cujos altos índices de testagem da população tem permitido novas estratégias de quarentena, aliviando assim o isolamento.
No Brasil, por enquanto, só são testados pacientes que necessitam de internação. Há denúncias de falta de testes inclusive para profissionais da saúde que atuam na linha de frente do enfrentamento da pandemia.
“A questão do diagnóstico é central. Enquanto não soubermos quem é positivo ou negativo, não adianta discutir quarentena”, pondera Felipe Saldanha de Araújo, professor no curso de Farmácia da Universidade de Brasília (UnB), e membro dos programas de pós-graduação em Ciências Farmacêuticas e Patologia Molecular. Para ele, saber quem tem e quem não tem o vírus, é vital para discutir novas estratégias de isolamento, de modo a saber quem está apto a ajudar na retomada da economia.
“Hoje não sabemos quem é positivo, só sabemos quem, de fato, morreu de covid-19. Não estamos conseguindo testar as pessoas e o diagnóstico é fundamental”, afirma o professor e coordenador do Curso de Especialização em Análises Clínicas da UnB. Araújo diz que o grande desafio do momento é expandir a capacidade de testes para o maior número possível numa comunidade. Quanto mais, melhor. E, neste sentido, diz ser “estranho” o Rio Grande do Sul contratar um laboratório sem experiência na área.
Edição: Sul 21