Esse ano comemoramos 86 anos de conquista do sufrágio feminino no país. E 23 anos da lei de cota eleitoral que determinou 30% das candidaturas dos partidos ou coligações para cada sexo em eleições proporcionais. Em 2018, 30 anos do nascimento da Constituição cidadã, elegemos 77 deputadas federais, maior número da história, ampliando de 11% a 15% a presença feminina no Congresso. O número de jovens, negras, pobres e LGBTs aumentou significativamente. Joênia Wapichana é a primeira deputada federal indígena, eleita por Roraima. Em São Paulo, Erica Malunguinho tornou-se a primeira deputada estadual transexual.
As mulheres são 52% da população, 52,5% do eleitorado e quase metade das filiadas a partidos políticos, mas são menos de 15% dos representantes, o que nos coloca em 157º lugar no ranking da Inter-Parliamentary Union, composto por 196 países. A Revista Forbes apontou, em matéria publicada na última segunda (13), que os lugares que estão lidando melhor com a crise do coronavírus são liderados por mulheres. Islândia, Tailândia, Alemanha e Nova Zelândia, Finlândia e Dinamarca foram apontados como exemplos de gestão de crise de saúde. “Muitos dirão que estes são pequenos países, ilhas ou outras exceções. Mas a Alemanha é grande e líder, e o Reino Unido é uma ilha com resultados muito diferentes”, escreveu a colaboradora Avivah Witternberg-Cox.
É notório que o espaço da política, principalmente de tomada de decisão, precisa ser ocupado cada vez mais por mulheres. Os movimentos de mulheres, feministas, artistas e lideranças políticas há muito repetem essa afirmação como uma resposta a um Congresso majoritariamente ocupado por homens (em sua maioria de meia-idade, heterossexuais e brancos).
Estas e outras questões relacionadas à presença feminina na política são o tema desta nova Série Mulheres na Política, que nesta semana entrevista Misiara Oliveira, 47 anos, natural de Santo Ângelo, Rio Grande do Sul. Graduada em comunicação social, habilitação em publicidade e propaganda, atualmente ela coordena a comunicação da Bancada do PT e é a Secretária Nacional Adjunta de Comunicação do PT. Feminista, ativista em Direitos Humanos e integrante da Executiva Nacional do PT, sua atuação política começou cedo. No final de década de 1980, aos 13 anos, iniciou sua trajetória nos grupos de jovens da igreja. Caminho percorrido por muitos militantes sociais.
Confira a íntegra da entrevista, que compõe o Especial Mulheres na Política.
Brasil de Fato RS - Gostaria de começar com um pouco da tua trajetória? Quando despertou o interesse pela política?
Misiara Oliveira - Foi bem cedo, com uns 13 anos. Era final da década de 1980, participava de grupos de jovens da Igreja. Acabei mudando em 1985 com a minha mãe para Santa Maria e fui morar no bairro Rosário. Lá conheci uma juventude que militava no movimento secundarista, eram de vários partidos e vertentes. Vivíamos o período de abertura política, livros até então proibidos começavam a voltar às livrarias, líamos muito, discutíamos muito sobre como mudar o Brasil e o mundo. Logo me inseri no movimento, união municipal, grêmio estudantil e iniciei a minha militância partidária, fiz a opção pelo PT. Aconteceu tudo ao mesmo tempo.
Foi neste mesmo período que conheci o feminismo, e desde então me defino como feminista. Militei em muitos movimentos: no estudantil, secundarista e universitário, nos de Direitos Humanos, entre eles a defesa da causa Palestina, nos de mulheres e feministas, na luta contra o HIV/AIDS, na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, na luta contra a fome e a miséria, pela inclusão de pessoas com deficiência na sociedade, e pela inclusão educacional de forma ampla. Fui vereadora por dois mandatos, gestora e assessora política. Ao mesmo tempo, exerci diferentes tarefas de direção partidária nos diferentes níveis. No período de resistência ao golpe, representei o PT do RS no Operativo da Frente Brasil Popular. Atualmente integro a Executiva Nacional do PT como secretária adjunta de Comunicação.
BdFRS - Ao falarmos das mulheres na política vemos que o Brasil está praticamente na lanterna da representatividade. Dados da ONU Mulheres na Política de janeiro de 2019 apontam que o país, em uma relação de 188, ocupava a posição 149 em relação aos cargos ministeriais. E a posição 134 no tocante a deputadas e senadoras. Como tu analisas a atuação das mulheres na política? Por que temos esse índice tão baixo mesmo representando 52% do eleitorado?
Misiara - As mulheres, no decorrer da história, vêm atuando na política, e no Brasil não é diferente. Não temos nenhum momento significativo como Nação que não tenha tido a presença das mulheres, nas bases dos movimentos políticos, ou mesmo exercendo suas lideranças, apesar de muitas vezes a história oficial invisibilizar estas lideranças femininas. Poderíamos citar a resistência à escravidão, a luta pela abolição, a luta pelo direito ao voto, a luta contra as ditaduras, os movimentos em defesa da democracia, entre outros. Mas principalmente se nos reportarmos ao cotidiano das nossas comunidades, veremos que são as mulheres que estão à frente, e são a maioria nas lutas por saúde, creche, escola, saneamento, moradia, terra....
Mesmo assim, esta maioria na base dos movimentos não tem garantido a representatividade necessária nos espaços de poder político. Estes espaços ainda são ocupados, de forma ampla, por representantes de setores detentores de diferentes privilégios em nossa sociedade, sendo o principal deles, o econômico. No Brasil, a desigualdade é o elemento central, estruturada especialmente no gênero, na raça e na classe. Produz e reproduz hierarquias e privilégios. Não são só as mulheres que estão sub-representadas nos espaços de poder político no Brasil, a população negra, mesmo sendo maioria, também está, bem como as pessoas oriundas das classes populares, desfavorecidas economicamente.
No caso das mulheres, avançamos muito no campo dos direitos, mas ainda está enraizada na cultura da nossa sociedade uma visão centrada na hierarquia entre o gênero masculino e o gênero feminino, considerando o segundo na amplitude de todas as suas dimensões simbólicas. Mas mesmo sub-representadas, as mulheres, de forma geral, levaram para estes espaços um olhar político mais abrangente sobre a sociedade e os desafios para uma vida mais digna, justa e humanizada.
BdFRS - Esse ano comemoramos 86 anos de conquista do sufrágio feminino no país, e 23 anos da lei de cota eleitoral que determinou 30% das candidaturas dos partidos ou coligações para cada sexo em eleições proporcionais. Qual a razão de ainda não se ter um quadro parlamentar mais equânime em termos de representatividade?
Misiara - As ações afirmativas neste campo foram e são fundamentais para os avanços, como os percentuais de candidaturas femininas nas nominatas, ou mesmo a recente determinação de 30% do Fundo Eleitoral, mas se demonstraram insuficientes. A desigualdade, fundada em uma cultura machista, está presente também nos espaços políticos. Precisamos em primeiro lugar avançar dentro dos partidos, garantindo espaços efetivos nas direções partidárias, com capacidade de influenciar as definições políticas e principalmente no que se refere às questões estruturais que envolvem as candidaturas, em especial as femininas. Nesse sentido, o financiamento passa a ser estratégico, em uma sociedade fundada nas desigualdades referidas anteriormente. O financiamento em pé de igualdade com as candidaturas masculinas pode criar novas condições nas disputas.
BdFRS - Ainda ao analisarmos a conquista do voto feminino, vimos que o Brasil poderia ter sido a primeira Nação do mundo a aprovar o sufrágio feminino, quando em janeiro de 1891, 31 constituintes assinaram uma emenda ao projeto da Constituição conferindo direito de voto à mulher. Tal emenda foi rejeitada. Em 1928, quando a primeira eleição em que as mulheres votaram, no Rio Grande do Norte, seus votos foram anulados por decisão da Comissão de Poderes do Senado Federal, sob a alegação de que era necessária uma lei especial a respeito. Em seguida, Santa Catarina elegeu, em 1929, a primeira prefeita da América do Sul, Alzira Soriano, na cidade de Lajes. Ao analisarmos esse contexto histórico vimos a dificuldade do direito à mulher a ter voz, voto e atuação política. Isso poderia ser atribuído ao machismo? Ao que tu atribuis essa dificuldade?
Misiara - Discordo sobre a dificuldade das mulheres atuarem politicamente. Nós atuamos. O que não temos é uma representação proporcional a esta atuação nos espaços de poder político e/ou de representação. Como já referi anteriormente, esta dificuldade sobre a representação se deve a desigualdade estruturante entre os gêneros, fundada no machismo, na misoginia e na cultura patriarcal. Isso acaba por definir as condições objetivas nas disputas para os espaços de representação.
BdFRS - Essa baixa representatividade tem a ver com o fato de os partidos não assumirem um posicionamento mais forte no recrutamento e apoio de candidaturas de mulheres? Tu observas essa falta de incentivo?
Misiara - É um pouco mais complexo. Os partidos reproduzem de diferentes formas as desigualdades existentes na sociedade, as barreiras e obstáculos a serem superados pelas mulheres, via de regra, são os mesmos. O centro da questão é o compartilhamento efetivo dos espaços de poder político. Se as mulheres não estão nos espaços de direção partidária, ou se mesmo estando nas direções, não fazem parte dos espaços de definição e de decisões, se esta participação é formal, não compartilhada, isso vai impactar diretamente na composição das candidaturas e nos resultados dos processos eleitorais.
Após as legislações fundadas nos princípios das ações afirmativas, os 30% de vagas para candidaturas, e principalmente os 30% do Fundo Eleitoral, a busca por candidatas se ampliou em todas as siglas. Mas o que ainda precisa avançar, e muito, são as condições de participação e de disputa. Um maior apoio político, investimentos na estrutura de forma efetiva e uma maior formação para as lideranças femininas, e por consequência para as candidatas. Infelizmente vimos nos últimos processos uma deturpação dos objetivos da legislação. Candidaturas “laranja”, ou mesmo a destinação dos recursos advindos dos 30% do Fundo Eleitoral para candidaturas de mulheres que integravam as chapas majoritárias.
Outro fenômeno que presenciamos são candidaturas femininas posicionadas contra os direitos historicamente conquistados pelas mulheres, candidaturas voltadas a desconstruir os avanços e manter a hierarquia de gênero na sociedade, fortalecendo a ideia de submissão para as mulheres, bem como a sua permanência em desvantagem social em relação aos homens. Mesmo nesse cenário, podemos destacar experiências importantes que estão comprometidas com a mudança desta realidade, como por exemplo as protagonizadas pelo PT, como as cotas e a paridade nas direções, e o Projeto Elas por Elas, voltado a dar uma maior suporte para as candidaturas de mulheres que integram o partido.
BdFRS - O machismo, na política, ainda persiste? Como ele se manifesta?
Misiara - Infelizmente persiste. E se manifesta de diferentes formas. E uma das formas que tem se destacado no último período é a violência política fundada no gênero, que cresce e se fortalece no Brasil após o golpe de 2016, marcadamente misógino e machista. Presenciamos tentativas de deslegitimar ou impedir a manifestação de lideranças, figuras públicas e parlamentares, ameaças de violência física e sexual partindo de tribunas do Congresso Nacional, bem como as agressões vindas do próprio presidente da República. Mas a face mais extrema desta violência é a eliminação do adversário, o assassinato para calar em definitivo uma voz divergente ou contra-hegemônica, como o ocorrido no caso de Marielle Franco. Esta cultura fascista estimulada pelo presidente da República e por setores de sua base de apoio dialoga diretamente com o machismo e a misoginia.
BdFRS - Como promover uma maior inclusão feminina na política?
Misiara - Como referi anteriormente, as mulheres participam ativamente da política, mas de fato não estão incluídas de forma plena nos espaços de poder político. A inclusão, mais do que a presença, pressupõe autonomia e condições para a participação, e nisso precisamos avançar. A formação política é estratégica para alterar esse cenário, devemos investir muito na formação das nossas lideranças, uma formação feminista, ideológica, que contemple a diversidade de temas que compõe o cenário político, indo da economia à pauta dos direitos, civis, políticos e sociais, além de lutar por uma participação efetiva nos espaços de poder. Outra questão importante é a reserva de vagas nos parlamentos, não só nas nominatas de candidaturas. Defendi esta proposta no último Encontro Nacional de Mulheres do PT.
BdFRS - E falando em representatividade feminina e atuação política das mulheres, como tu analisas essa atuação no atual contexto de um governo de extrema-direita?
Misiara - Desafiadora, pois estamos vivendo um período de retrocessos em todos os campos, em especial no campo dos direitos e dos valores. As mulheres têm feito a sua parte, nos movimentos, parlamentos e governos, resistindo e lutando contra os retrocessos, defendendo a democracia e os direitos. Mas, ao mesmo tempo, têm enfrentado de forma sistemática a violência política, como referi anteriormente.
Mas, de algum modo, a crise imposta pela pandemia do coronavírus impôs ao mundo, e no Brasil não é diferente, uma reflexão sobre a visão hegemônica que imperava. O neoliberalismo, defensor de um Estado Mínimo, sem políticas públicas e sociais, do lucro acima das vidas, foi colocado em xeque. Nunca foi tão nítida a necessidade da ciência, de uma Saúde pública e gratuita, de instituições de pesquisa científica públicas, de renda básica e dos chamados mínimos sociais. As mulheres estão neste momento na linha de frente do combate à pandemia, especialmente nas atividades de saúde e cuidados, e também atuando na pesquisa, na construção de legislações e ações políticas, bem como nas ações de solidariedade.
BdFRS - Neste momento que enfrentamos a crise gerada pela pandemia do coronavírus, como você avalia a situação das mulheres? E o que precisa ser feito?
Misiara - A ONU Mulheres lançou recentemente um documento indicando 5 pontos emergenciais, relativos à vida das mulheres, que devem orientar os governos durante a pandemia. O texto destaca que “embora os impactos econômicos e sociais sobre todas as pessoas sejam severos, eles são ainda mais para as mulheres”. As mulheres são, em todo o mundo, a maioria dos pobres, dos trabalhadores informais, e dos que exercem trabalhos precários e insalubres, além de serem a maioria nas profissões, serviços e atividades voltadas à saúde e aos cuidados.
Segundo a organização, as mulheres atuavam, em média, 3 vezes mais em cuidados não remunerados do que os homens, e com a pandemia esta situação se agravou. A crise afeta a saúde, a segurança e a vida das mulheres. Dentre as preocupações está o aumento expressivo da violência doméstica e familiar. Além disso, se deve considerar que famílias chefiadas por mulheres são particularmente vulneráveis.
Sou signatária da Carta Aberta em Defesa da Vida das Mulheres Brasileiras, ao lado de militantes feministas, ativistas de direitos humanos e movimentos sociais, de mulheres e feministas. A Carta apresenta três propostas: a primeira é voltada à inclusão de mulheres vítimas de violência no Programa de Auxílio Emergencial, garantindo-lhes uma renda básica; a segunda trata da necessidade da organização de abrigos para o acolhimento das mulheres vítimas de violência doméstica que sejam portadoras de medidas protetivas, bem como das pessoas que delas dependam; e a terceira, trata da disponibilização de serviços de atendimento de emergência às mulheres vítimas de violência e das pessoas que delas dependam.
Recentemente a Argentina estabeleceu uma campanha em parceria com as farmácias do País, possibilitando que uma mulher que solicitar uma máscara vermelha seja por telefone ou presencialmente será encaminhada aos serviços de atendimento para mulheres vítimas de violência. Este tipo de medida foi recomendada pelo Secretário Geral da ONU, Antonio Guterres, que sugeriu sistemas de alerta sobre violência doméstica em farmácias e supermercados. Outro tema que precisamos dar atenção especial são aos profissionais de Saúde que precisam ter a seu dispor equipamentos de proteção.
BdFRS - Ano passado tivemos uma forte mobilização em torno da construção de uma Frente Ampla, tentando unir as esquerdas e progressistas. Como avalias esse movimento?
Misiara - Eu sou defensora de uma Frente que unifique a esquerda e setores com compromissos democráticos e de justiça social. Este diálogo e construção são fundamentais para enfrentarmos esse período no Brasil. Mas temos que ter a dimensão de sua complexidade, viemos de origens, construções e perspectivas diferentes. Precisamos reconhecer a legitimidade de todos os interlocutores no processo, bem como criar espaços para a construção coletiva de um programa que esteja à altura das necessidades da nossa população.
Em Porto Alegre, estamos avançando muito com a construção do Congresso do Povo, ouvindo e dialogando com as comunidades, visando construir um Programa que de fato represente amplamente a população do Município, e especialmente os setores historicamente excluídos e que mais necessitam da proteção do Estado, que na sua maioria são representados pelas mulheres.
Edição: Katia Marko