Rio Grande do Sul

DEBATE

Na pandemia, falta de recursos e políticas para mulheres agrava situação de violência

Violência contra as mulheres em tempo do coronavírus foi tema de debate virtual realizado pela Rede Soberania

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Renda mínima, inclusão dos serviços de acolhimento entre atividades essenciais e fortalecimento das redes institucionais foram algumas das medidas urgentes sugeridas - Reprodução Facebook

Frente ao isolamento social, o aumento da violência contra a mulher tem sido mais uma das consequências da pandemia do coronavírus no mundo. Segundo dados da ONU, a combinação de tensões econômicas e sociais provocadas pela pandemia, bem como restrições ao movimento, aumentaram dramaticamente o número de mulheres e meninas que enfrentam abusos, em quase todos os países.

Para debater o tema, a Rede Soberania promoveu um debate virtual com mulheres que atuam em distintas frentes no combate e prevenção à violência de gênero do Rio Grande do Sul. Sob o tema “Violência contra as mulheres em tempo do coronavírus”, por mais de uma hora, sob mediação de Saraí Brixner, ficou claro que o Rio Grande do Sul já sofria com a falta de políticas públicas, situação agravada na pandemia. Foram levantadas algumas necessidades urgentes, como disponibilização de renda mínima, inclusão dos serviços de acolhimento entre as atividades essenciais e o fortalecimento das redes institucionais de apoio a vítimas de violência doméstica.

Participaram do debate: Danusa Alhandra, atual secretária de Políticas para Mulheres do Município de São Leopoldo; Abigail Pereira, pedagoga, ex-secretária de Turismo do Rio Grande do Sul na gestão Tarso Genro; Silvana Conti, coordenadora do Comitê Popular em Defesa do Povo e contra o coronavírus; Ariane Leitão, advogada, coordenadora da Força-tarefa de Combate aos Feminicídios do RS e consultora fundadora da Ó Mulheres; e Saionara Santos Rocha, assistente social e coordenadora da Casa de Acolhimento Viva Maria.

Nem tão doce lar

Pedagoga, ex-secretária de Turismo do Rio Grande do Sul na gestão Tarso Genro, Abigail Pereira destacou que é preciso analisar a situação do ponto de vista das mulheres em meio a essa crise sanitária sem precedentes. O “lar doce lar” não é tão doce para um conjunto de mulheres que estão na frente dos seus agressores. “Estão convivendo mais tempo com eles, essa situação de violência contra as mulheres, ouvimos crescendo em todos os países. Precisamos buscar medidas, soluções, o que já está sendo feito e o que mais precisa ser feito.”

Ao ouvir afirmações como a que todos estão no mesmo barco, Abigail discorda: “Não é verdade, é a mesma tempestade, mas o barco é diferente. Precisamos falar dos invisíveis para quem está dentro de casa: a população de rua, os trabalhadores do transporte, os profissionais da área da Saúde, verdadeiros heróis corajosos. Temos recebido pedidos de ajuda e socorro”, lamentou, recordando a morte da técnica de enfermagem Mara Rubia, do Hospital Conceição, de 44 anos, que trabalhava no atendimento a pacientes com coronavírus.

Mulheres são linha de frente

“Quem mais sofre e está no front de combate somos nós, mulheres”, afirma a coordenadora do Comitê Popular em Defesa do Povo e contra o coronavírus, Silvana Conti. “No Brasil, as mulheres são 85% do setor da enfermagem. E as trabalhadoras domésticas informais ou estão desempregadas ou confinadas em suas casas sem perspectiva de colocar comida na mesa”, disse, destacando ainda o fato das mulheres que sofrem violência dentro de casa estarem em isolamento ao lado do agressor.

Conforme Silvana, o isolamento social tem recorte de classe e de raça, sendo muito mais cruel quando a pessoa é negra, e mais ainda quando é uma mulher negra. “Nessa questão entra o Comitê Popular em Defesa do Povo e contra o coronavírus. No momento em que o Estado se ausenta, os movimentos populares, sociais, sindicais e pessoas, nessa perspectiva de ação solidária, se organizaram. Hoje contamos com mais de 130 entidades”, conta.

O Comitê atua em duas frentes: ações emergenciais, como arrecadação para entregar cestas básicas, muitas para mulheres chefes de família; e pressão nos governos para ampliar as medidas de isolamento e de apoio à população. “(O governador) Eduardo Leite e (o prefeito de Porto Alegre) Marchezan estão fazendo medidas paliativas, temos que ter noção que coronavírus não chegou com potência no Brasil ainda. Ontem apareceu que Porto Alegre já está em nível de emergência. Os dados não estão vindo com transparência e deixamos pergunta: onde estão os hospitais de campanha, os equipamentos de proteção aos trabalhadores que trabalham com população?”

O abandono dos governos

A advogada, fundadora da Ó Mulheres e coordenadora da Força-tarefa de Combate aos Feminicídios do RS, Ariane Leitão destaca a falta de recursos e investimento. “Falta recursos, estamos denunciando desde ano passado. Com a pandemia, a situação agravou. Nós não temos uma prioridade do serviço para o enfrentamento da violência. Não temos recurso público para isso. Tem disque denuncia, mas não tem recursos, e por isso estamos apostando tudo nesses serviços”, afirma, referindo-se aos esforços em divulgar os canais de atendimento virtual para mulheres vítimas de violência.

Ariane destacou a campanha Rede de Vizinhos e Vizinhas Contra a Violência: vizinha eu te escuto, eu te protejo, eu denuncio!, que tem como objetivo sensibilizar e mobilizar a sociedade contra as situações de violência. “O governo federal é contra a política para as  mulheres, cortou todo o orçamento do combate ao feminicídio. E temos um cenário parecido no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre”, afirma. “No entanto, mulheres trabalham para que serviços funcionem, o que apresentamos no relatório da Força-tarefa.”

Citando a fragilidade da rede de apoio na capital gaúcha, Ariane lembrou que Porto Alegre tem apenas uma casa de acolhimento para mulheres e seus filhos em situação de violência, a Ocupação Mirabal, uma iniciativa voluntária. “Além disso, não temos nenhum tipo de atuação estatal em relação a mulheres líderes de família em situação de extrema pobreza”, afirma.

“É por isso que nós lançamos semana passada, através do movimento de mulheres, uma carta em defesa da vida das mulheres, assinada por mulheres e entidades de todo o Brasil. Reivindicamos que mulheres em situação de violência tenham prioridade no cadastro de renda mínima, que União, estados e municípios articulem espaços pra retirar mulheres dessas casas em situação de violência. Hotéis, casas coletivas, enfim, alternativas estatais para essas mulheres. E que não seja só o disque denuncia”, ressalta.

Casa de acolhimento de Porto Alegre não recebe novas famílias

A assistente social e coordenadora da Casa de Acolhimento Viva Maria, Saionara Santos Rocha, relatou o drama do serviço, que já sofria com o desmonte e a falta de recursos, principalmente humano, situação agravada com a pandemia. “Estamos nesse momento com cerca de 13 pessoas abrigadas, fazendo protocolos para receber mais pessoas e aguardando reforço das técnicas que foram afastadas porque são de grupo de risco”, afirma, destacando que atualmente somente ela trabalha tanto no atendimento às famílias abrigadas quanto questões burocráticas.

A Casa de Acolhimento Viva Maria é o único abrigo protegido para mulheres em situação de violência doméstica e sexual em Porto Alegre. Tem capacidade para abrigar cerca de 15 mulheres e seus filhos, que passam a receber apoio para fazer documentação, conseguir trabalho e acessar programas de assistência social. Devido às restrições dos serviços, segundo Saionara, não é possível fazer nenhum encaminhamento. “Quem tinha para onde ir já saiu, as que estão aqui não têm recursos de família, trabalho, nem política social de repasse de renda e não conseguem nem se colocar com familiares, por residirem perto do agressor ou com familiares ameaçados”, explica a assistente social.

Atualmente, a casa não está acolhendo novas famílias. “Estamos preparando o ambiente do prédio, colocando uma divisória para poder ficar as que estão chegando de um lado e as já abrigadas no outro, para evitar a disseminação do vírus aqui dentro”, explica. “Temos o máximo de cuidado, com critérios e protocolos de acolhimento institucional do Ministério da Cidadania e outros protocolos sobre como lidar com roupa, lixo, circulação das mulheres para alimentação."

Comprometimento dos governantes

A secretária de Políticas para Mulheres do Município de São Leopoldo, Danusa Alhandra, destacou iniciativas desenvolvidas no município da região Metropolitana de Porto Alegre. “Em São Leopoldo não tinha delegacia de atendimento a mulheres vítimas de violência, mas através de mobilização da rede de enfrentamento, inauguramos a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam). Em dois meses, atendeu cerca de 300 casos de violência.”

Para Danusa, é fundamental o comprometimento da gestão dos chefes de Estado para ter espaços de acolhimento e verba para desenvolver ações. “No Rio Grande do Sul, apesar dos negros e negras não serem maioria, por uma questão de imigração, há um alto índice de violência contra as mulheres negras. Não somos maioria, porém somos as que estão no pico da violência doméstica e urbana, então tem um problema para além da questão de gênero, o debate racial”, problematiza.

Danusa também fez um alerta sobre o afrouxamento do isolamento no Estado. “As mulheres serão as principais atingidas com isso. Quem é a maioria trabalhando no comércio? Nas periferias? No trabalho informal? Estamos falando de mulheres chefes famílias, mães. No caso de quem ficar doente, quem vai cuidar? Por mais que o SUS seja exemplo, não consegue atender a necessidade da população”, avalia.

“Os comitês e entidades precisam fazer ações junto ao MP para que não aconteça isso. O mundo mostra que o isolamento é necessário. Temos que denunciar prefeituras que pensam em abrir, denunciar o governador Eduardo leite, caso reabra. Vida não se recupera”, conclui.

Assista o debate completo:

Edição: Katia Marko