Rio Grande do Sul

COVID-19

Prefeitura de Porto Alegre impede higiene básica de moradores de rua

Prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) mantém lacradas pelo menos 21 torneiras públicas em parques e praças da cidade

Parêntese | Porto Alegre |
Abandonada pela prefeitura, população de rua perdeu também parte da ajuda de voluntários por causa do isolamento social. - Juan Ortiz/Matinal

Higienizar as mãos, a principal recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) para evitar o contágio e a disseminação do novo coronavírus, é ato vedado à população que vive nas ruas em Porto Alegre. Enquanto capitais como Rio de Janeiro e São Paulo adotam medidas para ampliar o acesso à água para quem dorme em calçadas ou debaixo de viadutos, a prefeitura de Porto Alegre bloqueou torneiras e barrou iniciativas da sociedade civil que oferecem melhores condições de higiene aos sem-teto.

A administração de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) mantém lacradas pelo menos 21 torneiras públicas em parques e praças da cidade, contrariando uma recomendação do Conselho Municipal de Saúde (CMS) emitida em 19 de março e reforçada no dia 20, de forma conjunta, pelas Defensorias Públicas do Estado e da União e pelo Ministério Público Federal.

A prefeitura também ignorou a solicitação do coletivo Cozinheiros do Bem para que fornecesse um ponto de água em cada um dos 10 endereços de Porto Alegre nos quais o grupo está instalando pias portáteis. Os equipamentos têm recipiente para sabão líquido acoplados e são acionados por um pedal que evita o toque das mãos, prevenindo eventual transmissão da doença. Custaram mais de R$ 6 mil à organização, que conseguiu uma parceria com a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA): em um mutirão de final de semana, alunos e professores produziram um carregamento de álcool gel para oferecer aos moradores de rua.

“A manutenção será toda feita pela gente. Conseguimos parceiros como a UFCSPA e o TransLAB.Urb, [coletivo] de urbanistas especializados em inovação social urbana, que farão a parte técnica de instalação. A única coisa que pedimos para a prefeitura foi o ponto de água, mas infelizmente, negaram, argumentando que as pias seriam motivo de aglomeração de gente”, lamenta o idealizador do coletivo, Julio Ritta.


Coletivo Cozinheiros do bem instala pias portáteis pela cidade / Lzs_art/Divulgação


A prefeitura não esclareceu as razões da recusa por meio oficial e nem por que ou desde quando as torneiras públicas estão lacradas. A reportagem enviou perguntas (reproduzidas ao final desse texto) sobre as condições de atendimento e higiene da população de rua de Porto Alegre durante o período de emergência sanitária, mas elas não foram respondidas.

Marchezan se notabilizou por tomar medidas drásticas de isolamento social para conter a pandemia – e está sendo elogiado por enfrentar empresários contrários às medidas de contenção. Mas suas ações não atendem à população mais vulnerável à infecção, como os trabalhadores da reciclagem de Porto Alegre – conforme mostramos na Parêntese #19 – e, agora também se sabe, os moradores de rua.

Seis mil pessoas à própria sorte

Porto Alegre tem, oficialmente, 2115 pessoas adultas vivendo e dormindo em calçadas e viadutos. O dado é do levantamento Cadastro e mundo da população de rua, concluído em dezembro de 2016 pela UFRGS sob encomenda da prefeitura. Mas o contingente é pelo menos duas vezes maior que a informação censitária: o Consultório na Rua, serviço da prefeitura que oferece atendimento médico aos sem-teto, já registrou mais de 4 mil pacientes, o que leva os especialistas a estimarem que a população regular que vive nas ruas da Capital ronda os 6 mil habitantes, já que boa parte não consulta médicos.

É um universo onde quase nada chega. Segundo o censo da UFRGS, 37% dessas pessoas perderam completamente o contato com a família e 32,6% passam a maior parte do tempo sozinhos – ou “com deus”, de acordo com as respostas. Eles trabalham, mas em serviços de pouca estabilidade, como a reciclagem de lixo (23%) e guardando carros (13%). Analfabetos são poucos, apenas 6%, mas a grande maioria (57,4%) não completou sequer o ensino fundamental. Entre os entrevistados em 2016, 38% não possuíam CPF – hoje, estariam inabilitados, portanto, a pleitear o auxílio emergencial de R$ 600 que o governo federal vai dar durante três meses em razão da pandemia.

Os velhos não são muitos (7% em 2016), mas a condição social, a alimentação insuficiente ou irregular, os problemas sanitários e o histórico de saúde fazem deles uma população mais vulnerável ao novo coronavírus. “Uma pessoa em situação de rua está 56 vezes mais propensa a ter tuberculose e 26 vezes mais exposta ao HIV”, complementa a médica Maria Gabriela Curubeto Godoy, que é professora de Saúde Coletiva da UFRGS e apoiadora do Movimento Nacional de População de Rua.


Pandemia agravou situação

Para piorar o quadro, desde que os primeiros decretos em resposta à pandemia foram publicados em Porto Alegre, os sem-teto enfrentam dificuldades extras. Várias organizações da sociedade civil que ofereciam serviços regulares, com hora e local marcados, como refeições ou banho, mudaram a estratégia de apoio para evitar aglomerações. Agora eles “caçam” famílias ou grupos espalhados pela cidade, e oferecem marmitas, água engarrafada e itens de higiene para que cada um faça sua parte, mantendo distância social.

Sem a certeza de que terão auxílio no dia seguinte, os moradores de rua estão mais tensos. “Estão brigando e disputando entre si as ajudas, coisa que era rara, pois sempre houve cumplicidade”, observa Letícia Andrade, coordenadora adjunta do Centro Social da Rua e idealizadora do Banho Solidário Porto Alegre, que suspendeu temporariamente suas atividades.

O outro pilar central para a manutenção de condições mínimas de vida e dignidade dessas pessoas está, neste momento, impossibilitado de ajudar: são as “madrinhas”, senhoras idosas que representam o mais regular apoio a esse público. Como são do grupo de risco para a Covid-19, precisam permanecer em casa, resguardadas de qualquer contato social, deixando ainda mais desamparados os sem-teto.

O comércio fechado é um entrave adicional. Em muitos casos, eram aos comerciantes solidários que os moradores de rua recorriam inclusive para lavar as mãos, nos registros externos das lojas, hoje também fechados. “Eu nunca tinha visto as mãos dos moradores de rua tão sujas como estão agora, e eu olho todas as semanas as mãos deles na fila do banho”, revela Andrade. “Outro dia, desci para deixar o lixo na calçada e havia uma pessoa pedindo água no prédio ao lado”, completa, preocupada, a ativista.

Saída é ação clandestina


A primeira pia portátil foi colocada sob as pistas que levam ao túnel da Conceição. / Lzs_art/Divulgação


Sem contar com a autorização e ajuda da administração pública, o Cozinheiros do Bem decidiu instalar as pias portáteis de forma clandestina a partir desta quinta-feira (9/4). A primeira foi colocada na avenida Alberto Bins, sob as pistas que levam ao túnel da Conceição. Na ação, eles aproveitaram para decorar a parede com um grafite no qual se vê desenhada uma mulher lavando as mãos e usando máscara. Sem o apoio da prefeitura para abastecer os equipamentos de água, a saída foi adquirir tonéis de 200 litros de água, que serão renovados diariamente pela equipe de voluntários. O grupo, que prepara e distribui alimentos nas ruas de Porto Alegre, também passou a entregar, junto com as marmitas, máscaras para proteção dessas pessoas.

Partir para a iniciativa independente diante do silêncio oficial foi também a reação do grupo de voluntários e entidades que, junto com Conselho Municipal de Saúde, assina o pedido para que o poder público abra as torneiras de praças da cidade. Na carta, eles pedem ainda que em todas as regiões sejam instalados chuveiros com material próprio para banho e que escolas e outras instituições públicas ou privadas compartilhem sua água com quem está na rua por meio de mangueiras.

Sem resposta oficial, conseguiram fechar parcerias com universidades, e há 15 dias instalaram três pias com torneiras, sabão e orientações sobre o coronavírus para que moradores de rua possam manter hábitos básicos de higiene. “Efetivamente, conseguimos duas torneiras na UFRGS – uma no Campus Centro e outra no Planetário – e ainda uma na Unisinos da Nilo Peçanha. As instituições responderam muito rapidamente”, comemora Godoy, que aguarda ainda o retorno de um pedido semelhante feito à Arquidiocese de Porto Alegre, para que as igrejas católicas autorizem o acesso a seus pontos de água.

Decisão está nas mãos da Justiça


Já as Defensorias Públicas do Estado e da União e o Ministério Público Federal foram buscar uma resposta na Justiça. No dia 8 de abril, após insistentes pedidos de esclarecimento e detalhamento dos planos de ação, as instituições protocolaram uma ação civil coletiva para obrigar o município a prestar as informações adequadas e tomar as devidas providências.

Eles consideraram insuficientes os esclarecimentos prestados antes do ajuizamento da ação, que incluíram um Plano emergencial para população de rua enfrentar o Covid-19, no qual estão elencadas apenas sete vagas propostas. Por exemplo, “oferta de vagas em turno integral em abrigos já existentes”, “ampliação de oferta de alimentação e higiene”, “ampliação do auxílio moradia prioritariamente para idosos em situação de rua” e “ação em parceria com o Exército para oferta de alojamento, alimentação e higiene”.

Uma segunda resposta, também incluída no processo judicial, havia detalhado um pouco melhor o projeto para atendimento aos sem-teto. Nela, a FASC detalha haver ampliado de 60 para 205 as vagas em abrigos municipais, já ter confirmado o pagamento de 60 auxílios-moradia para essa população, de um total de 260 disponíveis, e ter aberto sete novos locais para alimentação e higienização dos sem-teto, com pouco menos de 300 vagas – número baixo se comparado ao contingente de habitantes vivendo nas calçadas de Porto Alegre.


UFRGS oferece acesso a torneiras. Sabonetes e orientações sobre o coronavírus são do Banho Solidário. / Arquivo Pessoal


Sobre o pedido de abertura de torneiras de praças e parques, a resposta da prefeitura é dura: “Não há que se falar de disponibilização de banheiros ou torneiras públicas para higienização pela população de rua, visto que tais ações devem ser realizadas pela população dentro dos serviços de Assistência Social que se destinam para atendimento da população de rua que aceitar o isolamento social. A disponibilização de pontos com pias públicas além de incorrer na vedada aglomeração, também constitui foco de propagação do vírus, em decorrência da utilização generalizada por diversas pessoas do mesmo sabão líquido e da mesma pia, sem falar no incorreto descarte do resíduo orgânico decorrente do papel utilizado para secar as mãos”.

Qualificando o quadro desenhado nas respostas do poder público de “caótico”, os procuradores e defensores públicos se rebelam com as “proposições dos entes municipais”, que “estão longe de garantir o atendimento adequado da população em situação de rua”, expondo essas pessoas “a risco a vida”.

A prefeitura tem até o dia 16 de abril para enviar sua defesa na ação.

Isolamento não é uma opção


Entre as demandas integrantes da ação na Justiça, as defensorias e o MPF pleiteiam o pagamento de uma renda básica a todos os moradores de rua durante o período de emergência sanitária e a criação de espaços de acolhimento para essas pessoas.

“A orientação para a população, em geral, é para que, apresentando sintomas leves, se mantenha em isolamento. Mas o morador de rua não tem essa possibilidade”, critica Ana Paula de Lima, psicóloga da rede pública de saúde e coordenadora-adjunta do Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre.

Segundo Godoy, que acompanha a população de rua há anos em Porto Alegre, há três grupos diferentes, cujos cuidados devem ser distintos. Para integrantes do grupo de risco – idosos, gestantes, soropositivos e aqueles com doenças crônicas –, é preciso proporcionar abrigos onde possam ficar em isolamento horizontal, com água, comida, e direito a pernoite. Quem não tem predisposição clínica ou complicadores para o novo coronavírus, precisa poder acessar espaços amplos para se abrigar, especialmente com o frio chegando. “Defendemos a abertura de ginásios, escolas e outros espaços públicos onde haja banheiros e água para a higiene básica e onde seja possível abrigar o resto dessa população, mas com espaço suficiente para garantir as distâncias seguras para todos”, explica a médica.

O problema maior, entretanto, é com moradores de rua que apresentem sintomas leves, mas compatíveis com a Covid-19. Segundo o relato das equipes de saúde que estão fazendo a abordagem nas ruas, quando levados para Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), essas pessoas recebem recomendação de isolamento absoluto, que no caso de quem tem casa, seria a quarentena doméstica. Mas evidentemente, essa não é uma opção para eles.

Por isso, as defensorias e o MPF cobraram em seus ofícios aos gestores municipais a “requisição ou aluguel de quartos de hotéis ou pensões pelo período de 20 dias”, como está sendo feito em outras cidades do país.

Em seu “Plano emergencial”, a FASC elenca entre suas propostas a de “acolhimento provisório para sintomáticos”, assim descrita no documento: “Espaço em Belém Velho para acolhimento de pessoas em situação de rua sintomáticas, em caráter excepcional”.

As perguntas que a prefeitura não respondeu

A reportagem da Parêntese enviou, por e-mail, questionamentos à assessoria de imprensa da FASC no dia 8 de abril, solicitando retorno urgente, a tempo de incluir as respostas nesta publicação. Apesar da insistência, o órgão público nada comentou. Essas eram as dúvidas que pedimos para serem esclarecidas:

O CMS emitiu, no dia 19 de março, recomendações à prefeitura para proteger a população de rua de Porto Alegre do contágio com o novo coronavírus, com 15 itens. A prefeitura acatou algum deles? Quais?

A primeira recomendação é para que a prefeitura retire lacres de torneiras de praças e parques de Porto Alegre. Por que elas estão lacradas e desde quando? A prefeitura vai remover os lacres? Quando?

A prefeitura está provendo espaços para higiene adequada para as pessoas em população de rua (banhos, banheiros, pias para lavagem de mãos, distribuição de álcool gel)? Se sim, quantas pessoas são atendidas ao dia e em que locais.

A prefeitura tem conhecimento de iniciativas da sociedade civil que ofereçam esses serviços? Há alguma coordenação para que possam cobrir de maneira eficiente a demanda por esse serviço?

Ainda neste sentido, o coletivo Cozinheiros do Bem conseguiu a doação de pias, material de higiene, e apoio técnico para sua instalação. Mas dizem que a prefeitura não liberou pontos de água para abastecer os equipamentos e ainda teria rejeitado a instalação dos equipamentos – citando especificamente, a presidente da Fasc, Vera. Por que não houve esse acerto?

A estimativa é de que haja entre 4 mil e 6 mil moradores de rua em Porto Alegre (o censo oficial contou cerca de 2 mil). Há como garantir alimentação para todos e abrigo com direito a isolamento para os que necessitarem?

Qual a política para os moradores de rua integrantes do grupo de risco (idosos e imunodeficientes)?

Já há estimativas de exposição ou contágio ao novo coronavírus entre a população de rua de Porto Alegre? A população de rua está sendo testada para a Covid-19?

Qual a orientação para pessoas em situação de rua que apresentem sintomas de Covid-19?

Como as pessoas em situação de rua poderão solicitar o auxílio emergencial da renda básica liberada pelo governo federal?

O Conselho Municipal de Saúde e as entidades reclamam que há falta de informação e coordenação de ações por parte da prefeitura. A prefeitura tem se reunido com esses grupos para organizar a melhor maneira de atender demandas dessa população?

Edição: Matinal News