Uma loja de produtos agropecuários em que funciona uma pet shop e em que também é possível aproveitar para comprar galões de água mineral e botijões de gás. Esse foi o primeiro laboratório fora da estrutura pública estadual escolhido pelo governo do Rio Grande do Sul para fazer exames de covid-19. Durante o anúncio do acordo, nesta segunda, a secretária de Saúde do estado, Arita Bergmann, informou que a Agropecuária Machado, localizada na cidade de Pelotas, foi escolhida por ser “um laboratório de excelência” e que tem como diferencial “ter os reagentes necessários para os exames”. Mas a empresa só incluiu o serviço “laboratórios clínicos” entre a descrição de suas atividades na Receita Federal em 6 de abril – três dias depois da assinatura do contrato.
Feito sem licitação no embalo do decreto de emergência do coronavírus, o acordo prevê seis meses de serviços e pode render até R$ 8 milhões aos proprietários do pet-laboratório, que promete processar 250 testes por dia por módicos R$ 175 cada um. A portaria que cita a assinatura do contrato, publicada no Diário Oficial do estado nesta terça, no entanto, não informa qual tipo de análise será realizada. Essa informação é crucial. Há dois tipos de teste, com uma diferença abissal entre eles: os rápidos, que detectam os anticorpos no sangue, mais baratos e que têm até 75% de chance de erro, e os do tipo RT-PCR, que detectam o vírus a partir de uma análise no DNA, muito mais precisos.
A escolha deixou estarrecidos servidores públicos da Secretaria Estadual de Saúde, técnicos e pesquisadores que conversaram com o Intercept, sob a condição de anonimato por estarem ligados à estrutura do governo que lida com a pandemia. Eles afirmam que a falta de detalhes sobre esse tipo de contrato de análise laboratorial, além da zero experiência da agropecuária, é incomum – e preocupante. “Estamos incorrendo no grave risco sanitário epidemiológico de termos milhares de testes falsos negativos. E, assim, não conseguiremos interromper a cadeia de transmissão do vírus. Vamos colapsar o sistema de saúde local”, disse um um funcionário da Secretaria de Saúde que acompanha a situação e considera muito difícil que a agropecuária consiga realizar 250 testes por dia dada, a sua falta de expertise na área.
A Agropecuária Machado ficou responsável por analisar as amostras de casos suspeitos das Coordenadorias Regionais de Saúde 3 e 7, que atendem as regiões de Bagé e Pelotas, no sul do estado. Os testes, a princípio, seriam feitos em 24 horas, mas entre segunda e o começo desta quinta-feira, nenhum resultado foi entregue. Várias amostras não foram sequer passaram por triagem, processo em que é avaliado se o material pode ou não ser analisado, e muitas foram canceladas, o que leva técnicos do governo a suspeitar que o local não será capaz de realizar os testes.
Em um áudio a que tivemos acesso, um funcionário da prefeitura de Santa Vitória do Palmar, cidade a cerca de 260 quilômetros de Pelotas e parte da Coordenadoria Regional de Saúde 3, questiona onde deve entregar o material para ser testado. “Estou no local indicado pelo Google Maps, mas só tem uma agropecuária”, afirma.
Nas redes sociais, o dono da agropecuária, que ganhou o nome de sua família, Toni Machado, mostra orgulhoso uma foto que tirou em 2018 com Jair Bolsonaro, então candidato à Presidência da República. Há também fotos da pet shop e de promoção de água e gás. Nos últimos dias, Machado tem falado com ainda mais orgulho do contrato que a sua empresa celebrou com o governo do conterrâneo Eduardo Leite, que antes de se tornar governador do Rio Grande do Sul foi prefeito de Pelotas. Ele chegou a postar uma suposta imagem do laboratório, feita por uma câmera de segurança em 2017. Nela é possível ver um corredor apertado com diversas pessoas sentadas usando toucas, luvas, máscaras e aventais mexendo em amostras que parecem ser de sangue.
Empresa e governo silenciam sobre detalhes do contrato
O pet-lab funciona em uma simpática casa no bairro Três Vendas, em Pelotas. Por telefone, funcionários da empresa confirmaram que o laboratório funciona em um galpão nos fundos da agropecuária. Questionados sobre quem seria o técnico responsável, eles transferiram a ligação para uma mulher chamada Gabriela que disse ser a encarregada, mas não quis informar o sobrenome. “Perguntem para a secretaria de Saúde quem é o responsável técnico”, provocou Gabriela.
A escolha do local contrasta com as outras opções disponíveis. No Rio Grande do Sul há vários laboratórios com mais de 20 anos de experiência em análises clínicas e também com os equipamentos necessários para realizar os exames de covid-19. Além disso, não é tão simples entrar nesse mercado de um dia para o outro como parece ter feito a Agropecuária Machado. Apenas o equipamento extrator de DNA, por exemplo, custa cerca de R$ 400 mil.
Uma pesquisadora do Instituto de Ciências Básica da Saúde, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que também se candidatou para realizar os testes – e a R$ 120, preço de custo –, listou ainda outras exigências que um laboratório precisa ter para trabalhar com exames de covid-19: cabines de segurança biológica e, principalmente, técnicos capacitados, são algumas delas. Um laboratório deste tipo completo, disse, não sai por menos de R$ 1 milhão.
Nesta quinta-feira, a universidade anunciou um acordo para realizar um total de 500 testes de covid-19 – o equivalente a dois dias do total contratado com a agropecuária. Mesmo com anos de prática, o laboratório da UFRGS informa que só será capaz de processar 160 testes por dia – 90 a menos do que a pet shop estreante afirma que processará.
O veterinário e diretor de Vigilância em Saúde de Pelotas, Franklin Mendonça de Souza Neto, disse em entrevista a um jornal da cidade que foi Machado quem o procurou para se disponibilizar para fazer os exames. Após o contato, ele teria informado a Secretaria Estadual de Saúde sobre a oferta.
Foi Souza Neto, ao lado da delegada da 3ª Coordenadoria de Saúde do estado, Caroline Torres Hoffmann, que atestou a qualidade dos serviços da agropecuária para fazer os testes de covid-19. Mas eles não poderiam fazer isso. Segundo a Constituição, apenas técnicos concursados podem fazer esse tipo de vistoria, já que o cargo envolve o poder de fiscalizar e aplicar penalidades. “No caso de contrato pelo estado, cabe à vigilância sanitária estadual da regional realizar a inspeção. Por que um cargo de confiança do município com um cargo de confiança do estado fariam isso? Nossa delegada é uma CC [cargo de confiança]. Ela não tem autoridade sanitária nem formação para isso”, questionou uma funcionária da Secretaria de Saúde do estado.
As administrações do estado e do município são tucanas. Eduardo Leite, cuja família também é dona de uma agropecuária, foi prefeito de Pelotas entre 2013 e 2017 e contou com Arita Bergmann como secretária municipal de Saúde. A atual prefeita da cidade, Paula Mascarenhas, é do mesmo partido.
Questionamos a Secretaria de Saúde do estado sobre os motivos que levaram a escolha de uma empresa sem qualquer experiência laboratorial para exames de covid-19, a identidade do responsável técnico pelo laboratório e se já foi enviado algum resultado. Pedimos também uma cópia do contrato, mas o governo se limitou a responder que a agropecuária “foi a única empresa que se habilitou a fazer os testes, tendo insumos próprios”. A secretaria afirma ainda que “várias empresas foram procuradas”, mas não cita os nomes dos laboratórios.
A resposta do governo informa ainda que o local foi inspecionado pela Vigilância Sanitária e que “o Lacen fez um treinamento na equipe”. O tipo de exame que será feito pela agropecuária, segundo a nota, é o RT-PCR, mesmo realizado pelo Lacen.
Edição: The Intercept Brasil