Uma pessoa muito querida me enviou uma matéria de um site jornalístico e pediu a minha opinião. É uma matéria publicada no dia 3 de abril de 2020, no RelevanteNews, o título é “Globo e Band cedem domínio à estatal chinesa de comunicação ligada ao partido comunista”, e fala, basicamente, sobre os acordos de cooperação econômica firmados entre as emissoras brasileiras e o China Media Group, um conglomerado estatal de telecomunicações com ampla atuação no território chinês e com ações “operacionais” espalhadas em diversas partes do mundo.
Não tenho dúvidas de que o contrato (que regula os tais acordos) precisa ser examinado em sua legalidade e em seu propósito, em sua adequação e sua utilidade no que toca à soberania e à democracia brasileiras. Esse é um primeiro ponto.
Outro ponto é que a matéria obscurece as particularidades do regime chinês, uma espécie híbrida de socialismo de mercado. Meus amigos chineses e/ou que já viveram na China dizem, inclusive, que existem “dois regimes”: um, de aceitação do livre mercado – aberto, na economia –, onde as empresas, em grande parte, pertencentes e/ou co-geridas pelo Estado, são capazes de competir (e de vencer a competição) com gigantes como os EUA, em diversos setores (a informática é apenas um deles); e outro, centralizador do ponto de vista diretivo e ideológico.
A ausência dessa explicação, somada a uma certa efusividade ao falar sobre o “Partido Comunista”, sobretudo no título e ao final do texto, contribui para uma “demonização” dos chineses (e, no limite, por extensão, da grande mídia como um todo). E isso, como me parece, é, sem dúvida, inapropriado. Por exemplo: a universidade onde eu trabalhava, há anos vinha fazendo ótimos negócios e ótimas parcerias com os chineses, diversos projetos de cooperação, em várias áreas (pesquisas de saúde, de informática, no campo da engenharia de materiais, etc.) haviam sido firmados. Qual o problema disso? Uma “ameaça fantasma”? Parece que, quando se fala em “Partido Comunista”, vem à tona um monstro, os gulags, as atrocidades de Lênin e Stálin e isso, para mim, é só o sintoma de uma dificuldade de compreender que essas tipologias não correspondem mais à realidade, que tem mudado tanto e tem deixado as coisas muito mais complexas e difusas do que eram.
Um perigo muito mais real, para nosso país – apenas para fazer um contraponto ao que disse acima – é a continuidade das políticas de nosso atual governo, que, caso continuem, irão nos transformar num Irã neopentecostal, em meio à ruína das instituições republicanas, das universidades, dos centros de pesquisa e dos serviços públicos, entregues ao ultraliberalismo extrativista e especulativo mais desenfreado e mais selvagem possível. Sem falar na mordaça à imprensa livre, na centralização decisória e no nepotismo como dispositivo tácito de perpetuação no poder. Ou seja: entre se tornar algo mais parecido com a China contemporânea ou algo parecido a uma Venezuela à direita, a China passa a ser uma boa opção. Até mesmo porque o século que se avizinha, pós-pandemia – poucos devem discordar disso –, será chinês. Globalmente, será chinês. E nessa última frase não vai embutido nenhum trocadilho.
Um terceiro ponto: há um determinismo economicista no texto. É sutil, mas há. No que consiste isso? Consiste em acreditar que os arranjos processados no plano dos negócios disseminam-se pela economia inteira e, num passo seguinte, ainda mais dramático, disseminam-se pela cultura inteira. As sociedades em geral – e a sociedade brasileira, no particular – são muito mais complexas, são caracterizadas por dinâmicas que os negócios não explicam e que os economistas, por mais que tentem, não compreendem.
Basta ver a incompetência de nosso atual ministro da Economia, que, atropelado pela história, vencido por um organismo que sequer possui células, vê ruir sua agenda econômica, é obrigado a mudar de rumo e buscar, no fundo de sua gaveta de estudante, aquele polígrafo sobre John Keynes que, muitos anos atrás, ele achou que nunca precisaria ler. “Pois é, meu caro”, eu diria hoje a ele: “é o que dá achar que as convicções e os modelos (teórico-ideológicos) precedem os fatos!
É preciso conviver com os fatos e agora os fatos mostram que o discurso do Estado mínimo é um conto do vigário para beneficiar alguns e que, quando o bicho pega mesmo, é o Estado que precisa intervir, ser ágil, firme, eficiente e organizado. É absurdo propor um Estado mínimo (ainda menor e menor e menor) num país onde, para a enorme massa da população, nunca houve Estado nenhum”. Ou seja: tudo isso para dizer que, numa situação de normalidade, as questões econômicas – os planos, os negócios – não têm uma incidência assim tão mecânica nem tão direta em relação àquilo que irá se configurar como a experiência social concreta dos cidadãos.
Um quarto ponto: suponhamos que a isca do texto nos serve, que venhamos a mordê-la. Feito isso, qual seria nosso próximo passo lógico? Seria acreditar que as principais redes de comunicação do país estão se colocando a serviço do Partido Comunista. Ou seja: uma balela. Pois é uma explicação, mais do que simplista, paranóica. É uma variação do determinismo que mencionei acima. Aquele determinismo, agora, convertido em síndrome de perseguição ideológica. É um tipo de maccarthismo tupiniquim.
Outra vez, para argumentar, vou usar um exemplo por inversão: seria o mesmo que se escandalizar com o fato de que o governo Bolsonaro pagou, com dinheiro público, a compra de uma hora inteira no Programa do Ratinho, recentemente, para propagar inverdades sobre a pandemia de coronavírus.
Aliás, acho que isso é muito mais grave e mais ofensivo à Nação – pois coloca em risco real a saúde de milhares de brasileiros – do que os novos parceiros comerciais que Globo e Band vêm tentando encontrar para continuar fazendo o jornalismo possível, durante a vigência de um governo que acredita que o jornalismo é prejudicial e prefere direcionar suas verbas aos canais pentecostais que o adulam.
Um quinto ponto, para finalizar. Trata-se de um texto jornalístico regular, não mais do que apenas bom, sobre um tema sobre o qual, de fato, precisamos estar atentos e acompanhar. Muito embora eu não concorde que a Band, num editorial, lido num de seus telejornais recentes, tenha utilizado “adjetivações impróprias para classificar membros do governo Bolsonaro”. O que tivemos ali, ao contrário do que o texto afirma, foi uma reação justificada, sem subterfúgios, falando como hoje fala a maioria da população brasileira, a respeito de duas personalidades que se colocam entre as mais deploráveis da história política do país – dentre elas, aquele que foi considerado, no mundo, o “pior Ministro de Relações Exteriores de todos os tempos”. Nesse sentido, não houve exagero nem impropriedade.
Em suma, o que listei aqui faz ver que tudo o que se evidencia é o tratamento editorial dado ao assunto, a posição ideológica da empresa jornalística através da qual a matéria foi veiculada. E isso mostra que tanto Band quanto Globo – ou mesmo RelevanteNews (!) – são empresas tentando se posicionar num mercado móvel, geralmente em turbulência, e que o jogo consiste justamente nisso: em tentar impôr seus interesses fazendo de conta que se está trabalhando em prol de alguma outra coisa (mais nobre, de apelo mais universal).
É isso. É a minha opinião. Por enquanto, ainda é possível ter uma.
Fabrício Silveira é professor universitário.
Edição: Katia Marko