O novo coronavírus nos alerta, entre outras coisas, sobre o risco da produção centralizada de insumos para a saúde. No melhor exemplo de América First (América em primeiro lugar, lema do governo norte-americano), o presidente dos Estados Unidos Donald Trump deixou o Brasil e uma série de outros países, como França, Espanha e Alemanha, praticamente sem Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para os médicos e ventiladores pulmonares para enfrentar a covid-19.
Para o Dia Mundial da Saúde, comemorado nesta terça-feira, em 7 de abril, o Extra Classe ouviu o historiador e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Carlos Fidelis Ponte, mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca e doutor em Politicas Publicas, Estratégias e Desenvolvimento pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele integra a diretoria da Asfoc/Sindicato Nacional, dos funcionários da Fiocruz.
Em uma conversa entrecortada pela ameaça de demissão do ministro da Saúde do Brasil, registramos impressões que vão da dependência do Brasil aos insumos do exterior, que impactam em sua balança comercial, às questões complexas que o país deve enfrentar após debelar a pandemia.
Extra Classe – Nesse Dia Mundial da Saúde estamos em pleno combate à Covid-19, uma pandemia que literalmente parou o mundo. O que dizer disto?
Carlos Fidélis Ponte – Eu diria que a crise deflagrada pela propagação do coronavírus está nos mostrando, infelizmente de forma trágica e contundente, que as sociedades não podem prescindir de sistemas públicos e gratuitos de saúde e da previdência social. Que precisamos de legislação e políticas de proteção ao trabalho. Que a informalidade e a precarização dos vínculos trabalhistas constituem fragilidades nocivas a toda a sociedade. Na Fiocruz, trabalhamos com um conceito de saúde que ultrapassa a ausência de doença. Um conceito adotado pela Organização Mundial de Saúde que abrange o bem-estar físico, mental e social. Um conceito dependente de condicionantes sociais, econômicos, políticos e culturais.
EC – Donald Trump, que inicialmente minimizou o poder do novo coronavírus, ao perceber o seu potencial de devastação, passou a defender medidas de isolamento social e deixou o Brasil e uma série de outros países praticamente sem Equipamentos de Proteção Individual médicos (EPIs) e ventiladores pulmonares. Na “luta pela sobrevivência”, os Estados Unidos chegaram a atravessar negociações realizadas por esses países com a China. Que lições podemos tirar disto?
Ponte – A pandemia está tornando evidente que um país que se pretende ser soberano não pode abrir mão de investimentos sólidos e constantes na produção de conhecimento científico e tecnológico e no desenvolvimento industrial. Por outro lado, a emergência da covid-19 escancarou que optamos por uma política externa desastrosa e isolacionista que, ao contrário da exitosa tradição do Itamaraty, prega o alinhamento automático com os Estados Unidos. Um posicionamento servil, subalterno. Uma reorientação que não considera os interesses nacionais e não protege a nossa soberania. Uma subordinação ideológica e doente que não serve ao país. O episódio diplomático envolvendo a China (Nota da Redação: os recentes twitters de Eduardo Bolsonaro e do ministro da Educação, Abraham Weintraub), assim como tantos outros em tão pouco tempo, certamente pavimentou decisões do governo chinês que não atenderam aos nossos interesses. Nosso isolamento é de tal ordem que mesmo os Estados Unidos, país que aderimos de forma unilateral e subserviente, além de não se mostrarem preocupados em nos reservar algum tratamento diferenciado, buscaram, em mais de uma oportunidade, reafirmar em atos e palavras o lema América first.
EC – Você disse recentemente que a pandemia também esta evidenciando outros aspectos que a ideia de Estado Mínimo e a integração mundial de mercados costumam ofuscar. Que aspectos seriam esses?
Ponte – O primeiro deles é que a integração de mercados mundial é assimétrica e nada humanitária. Precisamos entender que a concorrência não é, e nunca foi, livre como querem fazer crer. O Acordo Internacional de Proteção à Propriedade Intelectual (Trips, na sigla em inglês) permite a criação, por parte dos grandes grupos econômicos, de fortes constrangimentos e barreiras de entrada a novos concorrentes e ao desenvolvimento dos países periféricos. Livre concorrência e protecionismo são faces de uma mesma moeda utilizadas, de uma forma ou de outra, de acordo com as conveniências do momento, como as ações de Donald Trump têm demonstrado. Por outro lado, a ideia de Estado mínimo esconde seu imenso e decisivo protagonismo. De fato, o Estado não é, e não deve ser, um mero expectador do que se passa no mercado como professa o dogma neoliberal.
EC – Pode explicar melhor essa sua visão sobre o estado?
Ponte – O contrário do que se divulga na grande mídia, a mão invisível que está por trás de grandes desenvolvimentos científicos e tecnológicos e grandes sucessos empresariais é a mão do Estado. É ele, por exemplo que está por trás da grande plataforma de negócios que move o mundo: a Internet. É o Estado que abre caminhos. A iniciativa privada é avessa a riscos. É o Estado que dá sustentação à estrutura econômica, garantido contratos, infraestrutura, segurança pública, investimentos e socorro nas horas de crise. Ou seja, não existe potência mundial que tenha atingido essa condição e aí permaneça sem a participação decisiva do Estado. O mercado não quer o fim do Estado ou a sua redução. O mercado quer dominar o Estado. Colocá-lo a seu serviço. Quer um Estado para poucos. Quando falamos, por exemplo, em Banco Central independente, estamos falando disso. De uma espécie de sequestro do Estado.
EC – A Covid-19, por mais trágica que seja, contribui para reflexões como essa?
Ponte – A pandemia mostrou ao mundo que o mercado não vai resolver a crise gerada pela propagação da covid-19. Nessas horas somente o Estado tem capacidade de coordenação para dar combate a uma ameaça como essa. Somente ele é capaz de realizar investimentos a fundo perdido para socorrer populações e reconstruir países após a tormenta. Na crise, o mercado se retrai e busca a sobrevivência exigindo ajuda por parte do Estado e, não raramente, alguns segmentos, a exemplos dos bancos, ganham com a crise para depois chantagearem o mesmo Estado que os livrou da falência. É preciso recuperar a principal finalidade do Estado. Aquela que está no fundamento tácito de sua criação: a proteção à vida.
EC – Poderia falar um pouco mais sobre os aspectos que considera ofuscados pela noção de Estado mínimo?
Carlos – A própria ideia de tamanho é relativa. O Estado deve ter o tamanho e o alcance das exigências do projeto de desenvolvimento nacional que, de preferência, deveria ser inclusivo e sustentável ao contrário da selvageria neoliberal. As características do Estado dependem do projeto que adotamos para o país. Pode servir a muitos ou só a alguns. Tivéssemos realizado os investimentos necessários no SUS e na redistribuição de renda, nossa situação seria outra. A Alemanha e Portugal parecem ser bons exemplos de como as políticas sociais podem contribuir positivamente para o enfrentamento de situações graves como essa que estamos vivendo.
EC – E no Brasil?
Ponte – No Brasil, em função da herança maldita da escravidão, agora reforçada pelo culto do individualismo em detrimento da valorização dos bens e valores da cidadania, o sofrimento de grande parte da população parece não nos comover. Pelo contrário, convivemos com a miséria e nos servimos dela. Nunca vi carreatas organizadas para defender melhores condições de vida para a população de baixa renda, para acabar com a fome ou para exigir uma solução para o abandono dos moradores de rua. O que vejo agora é gente defendendo a continuidade dos seus ganhos em prejuízo da saúde da população em geral e dos trabalhadores – e suas famílias – diretamente envolvidos na manutenção dos empreendimentos daqueles que, de dentro de seus carros de luxo e usando máscaras protetoras, bradam contra o isolamento como estratégia de combate a pandemia. Nosso maior fracasso como Nação é a convivência com uma escandalosa e desumana desigualdade social que condena milhões a viver em condições indignas e muito distante daquilo que podemos chamar minimamente de civilização. O coronavírus veio desestabilizar dogmas e ameaçar situações estabelecidas.
EC – Voltamos ao conceito de Estado mínimo, ao falar de dogma?
Ponte – Sim. O fato é que o Estado é fundamental para garantir posições de relevo no cenário internacional e para enfrentar emergências como essas que já vitimou centenas e que ameaça milhares de pessoas. Nesse ponto, caminhamos na contramão das grandes economias do Planeta. Estamos, com as destrutivas políticas neoliberais, reduzindo a capacidade do Estado reagir as crises e abandonando o setor produtivo, principalmente o segmento industrial tão importante nessas horas.
EC – Na sua perspectiva as relações entre Estado e mercado poderiam ser menos conflituosas?
Ponte – Há uma simplificação extremamente nociva na polarização radical entre Estado e mercado veiculada por adeptos do neoliberalismo, onde o primeiro é intrinsecamente inoperante e ineficiente e o segundo o melhor alocador de recursos e promotor do progresso social. Basta que se olhe para a China e para a população que mora nas ruas dos grandes centros urbanos do primeiro mundo para relativizarmos tais afirmações. Basta observar também que não foram as empresas americanas que interferiram diretamente na comercialização dos produtos necessários ao combate à pandemia, mas sim o Estado forte comandado por Donald Trump que passou por cima de contratos e das instituições e agencias do multilateralismo.
EC – Você fala em polarização radical por quê?
Ponte – Estado e mercado conviveram bem com as políticas sociais e com as instituições da democracia durante a chamada era de ouro do capitalismo que durou de 1945 até o final da década de 1970. Com a virada neoliberal nos anos 80 essas relações se alteram profundamente. A saúde, a previdência social, e outras políticas de cunho social como a educação, passaram gradativamente a ser consideradas pesos, a serem suportados por cada indivíduo ou família e não mais como um assunto do Estado. Por sua vez, a economia entrou em rota de colisão com a democracia e as promessas do neoliberalismo de tornar o mundo melhor nunca se realizaram.
EC – O que se observa a partir da sua ótica?
Ponte – É que, mesmo em países do Primeiro Mundo, milhões de pessoas estão vivendo nas ruas apesar da pujança econômica que as cerca. Estado e mercado podem e devem ser complementares. Para tanto o mercado não pode ter salvo conduto para agir como quiser, como prega o dogma do livre mercado. Ele precisa, inclusive, de ser protegido de si mesmo. Foi a ampla liberdade do mercado que gerou a crise de 1929 e a de 2008. Por outro lado, assim como nesses episódios que acabamos de mencionar, o mercado jamais protagonizou o enfrentamento desse tipo de situação. Em tempos de colapso social ou econômico, o mercado se protege e abandona a população à própria sorte. Isso faz parte do seu instituto de sobrevivência. Somente o Estado pode interferir positivamente para debelar a crise.
EC – Por falar em protagonismo do Estado, surgem agora exemplos da criatividade brasileira, como o caso dos pesquisadores da USP que desenvolveram um ventilador pulmonar de baixo custo e rápida produção, usando apenas componentes nacionais. Infelizmente esse tipo de notícia só vem à tona em momentos graves. Acredita que dará tempo desses equipamentos serem produzidos e entrarem em ação para combater a fase aguda da pandemia que é prevista?
Ponte – É um exemplo da saudável e criativa balbúrdia para usar a expressão pejorativa, infeliz e deliberada do nosso ministro da Educação (Abraham Weintraub) em um dos muitos ataques em que ele e o presidente da República promoveram contra as universidades públicas. Um ministro que, aliás, tem sido responsável pela fuga de cérebros e a desarticulação de importantes linhas de pesquisa. É uma pena que uma iniciativa como esta encontre um ambiente tão conturbado e confuso no que se refere à condução errática e contraditória do governo federal no comando do combate à pandemia. Bolsonaro, cada vez mais alheio aos acontecimentos, não consegue articular iniciativas importantes como a concretizada pelos pesquisadores da USP com o nosso ocioso parque industrial. Não lhe ocorre, por exemplo, garantir a compra do que a indústria conseguir produzir. Estamos, portanto, perdendo um tempo precioso e dependemos da articulação dos governadores com o setor produtivo. Por essas razões, não creio que chegaremos prontos para o enfrentamento da fase aguda da pandemia. Espero, sinceramente, estar errado.
EC – Pode me falar um pouco mais do que você entende por ambiente conturbado e confuso do governo nesse momento?
Ponte – Há um nítido conflito de orientação em disputa no primeiro escalão do governo Bolsonaro. Um conflito que não serve ao país. Um conflito que, na minha perspectiva, tem sua origem no comportamento condenável do ocupante do mais alto cargo da República. O presidente está na contramão do mundo. Suas atitudes e escolhas para o enfrentamento da propagação e dos efeitos do coronavírus estão em clara oposição às orientações adotadas pela Organização Mundial de Saúde, pela ampla maioria dos países e pelos governadores e prefeitos do país. Bolsonaro está fixado no afrouxamento da estratégia de isolamento. Uma opção que claramente vai aumentar o número de atingidos, contribuído para a morte de muitos e para o colapso do sistema de atenção à saúde.
EC – Por que você acredita que Bolsonaro teima nessa posição de flexibilizar o isolamento social?
Ponte – O presidente parece estar mais preocupado em atender a um segmento de opinião que não vê com bons olhos a paralisação da economia. Esse é o seu único cavalo de batalha. Está obcecado, isolado e cego. Suas ações não contribuem, ao contrário, atrapalham e muito a luta que se trava. Não é segredo para ninguém que ontem mesmo o presidente tentou, sem sucesso, demitir o seu ministro da Saúde.
EC – Por falar nessa tentativa de demissão do ministro, notou-se grande apreensão entre profissionais da saúde pública. Fora a óbvia derrubada de uma equipe que está atuando no meio de um tsunami, o que mais preocupava?
Ponte – Nessas circunstâncias, um tanto quanto doentias, o ministério passar a ser comandado por gente que é contra o isolamento e a favor da imunização de grupo, também conhecida como “imunidade de rebanho”. É uma estratégia que a Inglaterra abandonou ao perceber as consequências desastrosas de sua adoção tanto para a vida das pessoas como para economia.
EC – Qual a lógica da “imunidade de rebanho”?
Ponte – Tal estratégia parte do pressuposto de que a pessoa curada adquire imunidade e dificulta a propagação do vírus. Assim sendo, a imunidade adquirida por parte da população e a eliminação de parcelas consideráveis dos vulneráveis acabariam por dificultar, ou mesmo impedir, a circulação do vírus. Diante da chegada do coronavírus no país, Bolsonaro, ao contrário das diretrizes defendidas pelo Ministério da Saúde, buscou adotar essa abordagem como forma de lidar com o avanço da pandemia.
EC – Além do caráter cruel da “eliminação dos vulneráveis”, qual outra fragilidade dessa estratégia?
Ponte – É que não temos ainda um conhecimento sólido e plenamente estabelecido sobre o vírus, sua capacidade de se adaptar ou mesmo sobre quem está, de fato, exposto ao risco de morte. Não há certeza, por exemplo, sobre seus reais efeitos em jovens e crianças. Já foram registradas mortes nesses dois grupos que não estavam associadas a comorbidades. Por outro lado, embora se divulgue que é possível obter imunização após a cura, o tema ainda é controverso e não se pode afirmar, sem margens para dúvidas, que isso corresponda à verdade.
EC – Isso recorda a epidemia da dengue, com casos de pessoas que se infectaram uma segunda vez?
Ponte – Sim e, em casos como o da dengue, por exemplo, um indivíduo infectado pela segunda vez corre um risco significativamente maior de desenvolver novamente a doença em sua forma mais grave. Além disso, quanto mais o novo coronavírus se propagar, maiores serão as chances de que sofra mutações ainda mais nocivas à nossa saúde ou que se torne mais difícil de combater.
EC – É uma aposta de Bolsonaro, então?
Ponte – Sim. Desse modo, ao custo incalculável de milhares de vidas e alicerçado em ações com bases científicas ainda não completamente consolidadas, se respeitaria a política de austeridade e não seria preciso parar a economia do país. Passado o sacrifício a ser enfrentado, rapidamente as coisas voltariam ao normal. Ricos e pobres poderiam voltar a ocupar os lugares que lhes foram reservados na história nacional e no projeto econômico em curso no país.
EC – Voltando às questões de mercado, dados apresentados pela Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa) nos mostram que a balança comercial de produtos farmacêuticos apresenta um déficit de US$ 5,8 bilhões para o Brasil e que isto tem aumentado gradualmente nos últimos anos. Ou seja, importamos mais do que exportamos. Há os que entendem que isto é decorrência dos entraves brasileiros para atrair investimentos em inovação. Concorda?
Ponte – A questão da inovação é um problema que também passa por uma atitude mais proativa por parte do Estado, por uma política que zele pelos interesses nacionais e pela conquista de autonomia científica, tecnológica e industrial. Estudos demonstram que nossa indústria é em grande parte montadora de projetos desenvolvidos e patenteados por empresas estrangeiras. Diante do risco de uma concorrência desigual com empresas poderosas e mais bem estabelecidas e protegidas pela legislação internacional de proteção à propriedade intelectual, o produtor local prefere pagar royalties a arriscar envolver-se em projeto totalmente novo. Há uma diferença fundamental entre a demanda do Primeiro Mundo e a demanda da periferia.
EC – Qual é essa diferença?
Ponte – Nas economias mais poderosas, a demanda é por algo que ainda não existe. Isso faz com que o Estado e as empresas busquem estimular a inovação aportando recursos expressivos para a realização de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos ou processos. Na periferia, a demanda, em geral, é por algo que já existe no primeiro mundo. Essa característica, associada aos riscos que um empreendimento inovativo traz, inibe o investimento em projetos originais. Deste modo, ficamos dependentes do pagamento de royalties das chamadas montadoras ou da importação. Cabe observar que muitas montadoras também importam insumos e componentes dos produtos licenciados que comercializam.
EC – Dá para romper esse ciclo vicioso?
Ponte – Sem dúvida alguma, como fizeram os países do Primeiro Mundo, com a participação ativa do Estado. Temos uma boa base cientifica e uma grande produção de conhecimento localizada nas universidades e nos institutos de pesquisa. O grande problema é conectar a produção do conhecimento com o desenvolvimento tecnológico e a colocação do produto no mercado. Um empreendimento caro, de risco e que, em geral, requer longos prazos de maturação e de retorno para os investimentos. Um empreendimento que, na maioria das vezes, mesmo no Primeiro Mundo que conta com grandes e poderosos grupos empresarias, não dispensa o decidido apoio do Estado. Marina Mazzucato, em O Estado Empreendedor, sua obra mais conhecida do grande público, é prodiga na apresentação de exemplos dessa participação do Estado.
EC – Pode citar alguns exemplos do Brasil?
Ponte – No Brasil também temos exemplos de sucesso do envolvimento direto do Estado em processos de inovação e desenvolvimento tecnológico e industrial. Podemos citar as iniciativas de maior vulto e mais conhecidas e exitosas como a Embraer, a Embrapa, a Petrobras e a Casa da Moeda, empresas de sucesso atingidas ou ameaçadas por processos de privatização.
EC – E no campo da saúde?
Ponte – No campo da saúde, o que ainda não está claro para a sociedade é a necessária e frutífera articulação entre ciência, tecnologia, desenvolvimento industrial e o atendimento de importantes demandas sociais como a proteção à saúde, a promoção do bem-estar e a geração de empregos. Uma articulação perfeitamente possível e necessária, principalmente em um país com um passivo social como no nosso. Não podemos basear nossa economia apenas na exportação de commodities ou em serviços e excluir um enorme contingente que hoje está condenado ao desemprego e à informalidade.
EC – Em resumo?
Ponte – Precisamos de indústrias, de empregos. Precisamos de um mercado interno forte. Precisamos de uma economia para todos e mais capacitada a enfrentar crises como essas. Precisamos de um Estado que – ao contrário de promover condições de um crescimento econômico predatório, parasitário e concentrador de renda como temos experimentado ao longo de nossa história – articule desenvolvimento e bem-estar social. O que a sociedade não sabe é que o setor saúde reúne condições excepcionais para a promoção de uma alavancagem civilizada da economia. A sociedade desconhece que a saúde pode e deve participar do esforço de desenvolvimento. Um desenvolvimento que se pretende sustentável, inclusivo e soberano. Vejamos porquê e como. Estamos diante de um setor situado na fronteira do conhecimento e cujos achados de pesquisa podem ter repercussões positivas em diversos campos de atividades. Um setor com extrema relevância social que demanda e depende fortemente do desenvolvimento tecnológico. Um setor vital que precisa transformar a aplicação de recursos repetitivos na importação de vacinas, medicamentos, insumos, próteses, equipamentos e softwares em investimentos na construção de uma plataforma cientifica e industrial que atenda as inadiáveis demandas da área, gere empregos, reduza a dependência tecnologia e o déficit de nossa balança comercial.
EC – O SUS pode cumprir um papel nesse processo todo?
Ponte – Pois é! No Brasil nós temos o SUS que do pondo de vista econômico se constitui em um mercado altamente atrativo para fornecedores nacionais e estrangeiros. As compras do SUS são volumosas e envolvem uma grande quantidade de recursos financeiros. Um mercado como poucos no mundo. Na Fiocruz, desde a segunda metade da década de 1970, trabalhamos com a compra de vacinas articulada a contratos de transferência de tecnologias. Por essa via internalizamos tecnologia de ponta e nacionalizamos uma série de testes para diagnósticos, biofármacos e imunobiológicos que hoje compõem a cesta do Programa Nacional de Imunizações e outros programas do Ministério da Saúde. Trata-se da utilização estratégica do poder de compra do Estado. Uma estratégia que poderia ser mais amplamente empregada. Vale ressaltar, que as transferências de tecnologia melhoram as formas de organização, alteram a cultura institucional e nos colocam em contato com toda a cadeia produtiva de nossos fornecedores, além de conferir um maior domínio sobre a configuração dos mercados e a formação de preços.
EC – Gostaria de acrescentar algo para concluir?
Ponte – A tempestade vai passar e precisaremos reconstruir a economia do país. Nessa reconstrução o ideal seria fazer com que a proteção à vida e a promoção do bem-estar social fossem, ao lado da responsabilidade ambiental e da garantia de condições dignas para todos, os elementos centrais e prioritários do nosso projeto de desenvolvimento.
Edição: Extra Classe