No Rio Grande do Sul, a pandemia do coronavírus não se esgotará com os danos à economia e o acúmulo de óbitos, a serem contabilizados neste ano. Aqui as repercussões desta crise serão agravadas por decisões políticas pouco respeitosas à saúde da população, e se estenderão por décadas. As implicações da covid-19 devem ser vistas, desde já em sua dinâmica perversa, que será posteriormente agravada pela poluição aérea decorrente de projetos de mineração projetados e em implantação com apoio dos últimos governos.
Este é o tema básico deste texto. Entre os perigos mais relevantes e carentes de correção preventiva, imediata, que se somam ao muito já escrito sobre a covid-19, destacam-se os impactos decorrentes da gigantesca mina de carvão projetada para a região Metropolitana de Porto Alegre, conforme discutido a seguir.
Inicialmente, considere-se que o surgimento e o avanço da covid-19 seguem relações naturais bastante conhecidas. Isto, em qualquer moléstia responde a uma mesma lógica. A presença de que um agente infeccioso, alcançando hospedeiros vulneráveis em condições ambientais favoráveis, determina reações biológicas que com o tempo levam ao controle da infecção. Ou, adicionalmente, a doença se espalha em velocidade superior à capacidade de resposta do sistema imune, e o hospedeiro morre.
A explosão de contágios determina a gravidade da epidemia que, sendo incontrolável em escala global, passa a ser classificada como pandemia. Este é o caso atual, onde os estragos serão tanto mais graves quanto (e quando, e onde) mais frágeis se mostrarem os hospedeiros, a capacidade de resposta imunológica das populações afetadas e as políticas de contenção.
Então, como surgem as doenças?
No caso das viroses, os exemplos se associam às características dos agentes patogênicos. Um vírus pode ser resumido como um simples comando biológico que existe para determinar sua própria multiplicação. O vírus não nasce, não respira, não cresce, não se reproduz nem morre, da forma observada em fungos, bactérias, plantas e animais. Um vírus simplesmente infecta uma célula e a induz a produzir novas cópias de “si mesmo”. A célula atacada se torna uma espécie de escrava do vírus, condenada a multiplicar aquele modelo que a infectou. Como uma fábrica de copos plásticos, que ao ser preparada e orientada para multiplicar determinado modelo de copo, e se coloca a multiplicá-los até receber contra ordem, ou esgotar os recursos disponíveis, a célula infectada adotará o comando biológico que define as características do vírus original, e o multiplicará até o limite do colapso. Neste momento haverá extravasamento virótico e contaminação de outras células, afetando o funcionamento do organismo, em processo gradativo que, se não combatido, levará ao colapso daquele ser.
Em termos das condições favoráveis para o vírus cumprir seu papel natural, que pode ser resumido, como dito acima, a um processo de escravização de algum organismo que o multiplicará até morrer, ou até que ocorra algum bloqueio ao comando original. Devemos considerar, aqui, que as características do indivíduo (seu ambiente interno) e do ecossistema em que ele está inserido (o ambiente, lato senso) são decisivas para o sucesso do processo virótico ou, opostamente, fundamentais para seu controle.
O freamento da multiplicação de um vírus, dentro de qualquer organismo suscetível, dependerá de sua capacidade de autoproteção, que se relaciona ao sistema imunológico. Aqui se aplica o conceito básico da resiliência. Fundamental para a agroecologia e a física, a capacidade de resiliência explica o potencial de retorno à condição original após a emergência de uma crise. Uma martelada sobre uma superfície de metal ou de borracha, uma queimada em área de campo ou de floresta, a recuperação de uma criança ou de um velho, à gripe simples, expressarão distintas capacidades de resiliência. Trata-se de relação entre as características da crise e a capacidade de reação (e retorno à estabilidade anterior), por parte do sistema impactado.
Assim, os organismos bem alimentados e com maior velocidade de resposta ao dano, serão menos vulneráveis a ataques viróticos do que aqueles outros, fragilizados por substâncias químicas, agrotóxicos, por condições naturalmente relacionadas a processos de senescência e combinações destes e outros fatores. Um organismo bem alimentado poderá ativar de maneira mais efetiva seu sistema imunológico de autoproteção. Trata-se aqui de algo que ocorre de forma permanente, com maior ou menor sucesso, em todos os seres vivos. Claramente, os organismos afetados por processos de fragilização daquela capacidade de resposta e autodefesa, estarão mais propensos ao colapso.
O mesmo se dá com as populações
Aqueles grupos vivendo em condições insalubres, com dificuldade de acesso ou metabolização de alimentação adequada, saudável e suficiente, serão mais suscetíveis, mais vulneráveis a todo tipo de crise. E as debilidades naturalmente impostas em tais condições, são potencializadas por fatores externos, que simplesmente bloqueiam ou limitam a capacidade de resiliência. Destacam-se, aqui, o estresse, as superpopulações, a pressão de contaminantes, a escassez de recursos, o abandono de cada um à própria sorte, como fatores agravantes que podem levar ao colapso populacional, na presença de uma moléstia inesperada. Por isso, uma pandemia será favorecida pelo individualismo no sentido da busca do melhor para si, a despeito dos outros, pela luta de cada um contra todos, pelo que se observa na globalização capitalista. E uma pandemia será mais facilmente contida em ambiente de cooperação e solidariedade.
Neste sentido, a ecologia também explica as pandemias. Aceita-se que a covid-19 resulta de mutação em um coronavírus que se encontrava controlado em meio a animais selvagens, onde interagia com hospedeiros cujo sistema imunológico assegurava que as perdas, em termos de óbitos dos indivíduos mais frágeis, se faziam compensadas pelos nascimentos, garantindo equilíbrio dinâmico equalizador daquela realidade. A destruição de habitats naturais teria obrigado o vírus a migrar, buscando novos hospedeiros, em outros ambientes. O contato do vírus mutante, com a população humana, em ecossistema favorável à multiplicação virótica, explicaria a pandemia.
Fatos semelhantes são observados tanto em populações de frangos, suínos e aves criadas em cativeiro. Sob condição de elevado estresse, alimentados com rações a base de transgênicos que carregam resíduos de agrotóxicos, submetidos a elevadas cargas de hormônios e antibióticos que fragilizam seus sistemas imunológicos, aqueles animais frequentemente são afetados por vírus mutantes, que procedem de convivências estáveis em animais selvagens. Os casos das gripes aviária e suína ilustram este argumento, explicando também seu extravasamento, para a população humana.
Em todos os casos a presença de viroses que fogem ao sistema de controle do organismo afetado provocarão infecções iniciais em alguma célula e se espalharão às demais. Em ambiente favorável ao colapso celular e à contaminação da população a que pertence aquele organismo, ocorrerão epidemias ou pandemias sempre que a velocidade de contaminação se mostrar superior à capacidade de reação dos organismos e às políticas de controle à sua expansão.
Os milhões de brasileiros subnutridos, excluídos, que se amontoam em condições insalubres, que não podem, no abandono em que vivem, sequer atender às recomendações mínimas da OMS, para conter a expansão da covid-19, como lavar as mãos e evitar situações estressantes ou amontoamento em espaços exíguos, ilustram o que tende a ocorrer em nosso país. A estes brasileiros, o presidente Bolsonaro, surpreendentemente, pede paciência, esforço produtivo, orações e até mesmo jejum pascal.
A similaridade, o risco e as evidências acumuladas neste caso revelam que neste caso já ultrapassamos a capacidade de resiliência dos ecossistemas, individuais e global, em todas suas dimensões. Os danos, que já superam de muito aspectos biológicos, éticos, estéticos e morais, quando observados em sua amplitude, sugerem que o futuro está comprometido e que urgem medidas de retorno imediato a uma situação de estabilidade, ainda que precária.
A prevenção global, contra novas crises, exige a retomada de medidas que permitam à biodiversidade e à vida biodiversa conter em seus limites patógenos que convivem com os organismos e populações selvagens abrigadas em áreas de reserva. Trata-se de suspender os desmatamentos e a contaminação de solos e águas, revertendo as políticas que os estimulam, em apoio a métodos de trabalho mais amistosos para com o ambiente, mais respeitosos em relação aos princípios de base agroecológica.
Em outras palavras, trata-se de colocar a ciência e recursos em apoio a processos produtivos desenvolvidos por agricultores familiares e assentados de reforma agrária, povos e comunidades tradicionais. Percebe-se, aqui, que o reforço ao sistema imunológico, que corresponde à expansão na capacidade de resistência e prevenção, exige acesso a água limpa, alimentação adequada, livre de agrotóxicos e transgênicos, como o que resulta tradicionalmente de processos desenvolvidos por agricultores familiares, assentados de reforma agrária, povos e comunidades tradicionais. Mas não apenas isso, também o ar que respiramos deve ser observado com atenção.
O funcionamento dos sistemas biológicos depende – dentro de suas limitações – da saúde interna dos organismos, e pode ser ilustrado pela capacidade de reação às infecções e pela saúde das células alvo de ações patogênicas. Observa-se que com a idade, os mais velhos reduzem as atividades e “murcham”. Passam a conter menor teor de água no organismo, o que leva à ampliação no teor de acidez do sangue, com redução em sua capacidade de prevenção à oxidação e retardamento das respostas imunológicas. Os mesmos danos ocorrem em organismos jovens, debilitados pela nutrição inadequada ou pela contaminação com poluentes de todo o tipo.
O acesso a alimentos “limpos” exige expansão na sua oferta, o que dependerá de políticas públicas de estímulo aos agricultores familiares, assentados, quilombolas, povos e comunidades tradicionais. Para estabelecimento de nexo e compromissos de reciprocidade entre aqueles e as populações urbanas, são necessárias políticas de apoio à distribuição e fortalecimento da capacidade de acesso e disponibilidade de renda.
Neste sentido, políticas e programas como o PAA, a PNAE, a reforma agrária, e o reconhecimento de territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais, bem como políticas sociais includentes esvaziadas desde o golpe, devem ser retomadas com urgência, no interesse das populações urbanas como um todo, antes que se instale o caos. Recomendações da ABA, ABRA, ABRASCO, CONSEA e do FBSSANS, entre outros, devem ser levadas à sério, suspendendo o estímulo a modelos de produção ecocidas, bem como limitando a oferta e o consumo de alimentos ultraprocessados, com resíduos de agrotóxicos e outros contaminantes.
O mesmo modelo de subdesenvolvimento impositivo, expandido na agricultura e indústria alimentar de maneira surda às manifestações da comunidade científica e da população afetada, avança em outros setores da economia. Destaca-se, aqui, no caso do Rio Grande do Sul, os programas de mineração amplamente denunciados na imprensa e que evoluem na surdina, em paralelo à pandemia do coronavírus.
A mina de carvão em Guaíba é exemplo lapidar. Ali serão geradas toneladas de efluentes e partículas em suspensão aérea, com alto poder de agravo sobre a saúde humana. Observe-se, neste ponto, que, segundo o Ministério da Saúde, talvez 70% da população brasileira será afetada pela covid-19. Deste universo, aqueles indivíduos que se recuperarem, nos casos graves computados como de recuperação bem sucedida, possivelmente resultarão danos pulmonares de caráter vitalício. Em outras palavras, boa parte da população resultará com pulmões afetados.
O que esperar após a atual pandemia, levando em conta que talvez a maioria dos sobreviventes, em especial aqueles participantes dos grupos de risco, serão os subnutridos, mal alimentados, sem acesso a serviços de Saúde pública, que moram em espaços insalubres? Este também o grupo de maior risco de morte, ameaçado de não sobrevier ao coronavírus, pelos motivos já expostos e porque correspondem a maior parte de nossa população.
No caso do Rio Grande do Sul, ao fim desta crise estaremos diante de outra ameaça inédita, que desenha um futuro assemelhado à crônica de muitas mortes anunciadas. Os óbitos causados pela poluição gerada pelo carvão e outras linhas de mineração, aqui desenvolvidas sem estudos robustos e convincentes de impacto ambiental, serão ampliados, entre os que, por sorte, zelo ou privilégios, escaparem da covid-19. Estas mortes não ocorrerão na China, mas aqui, na grande Porto Alegre, e em cidades como Candiota, Eldorado do Sul, Charqueadas, Arroio dos Ratos, Butiá e Minas do Leão, entre outras.
Alertamos, mais uma vez, que o uso do carvão mineral amplia os desequilíbrios ambientais, acelera o aquecimento global e agravará de forma predatória as capacidades de resposta imune, com danos potencializados após a atual pandemia, sobre a vida e o futuro dos gaúchos e de outros brasileiros submetidos a desconsideração governamental assemelhada.
Alerta-se, aqui, que o RS neste governo, pode repetir o erro do Brasil deste desgoverno, que ignorando as informações geradas na China, permitiu que a covid-19 se espalhasse resoluta, e agora terá que correr em busca de equipamentos para os hospitais, substitutos para os médicos e caminhões frigoríficos para abrigar os corpos. Aqui, a possível instalação da mina gigante de carvão, a céu aberto, ampliará os fatores deletérios sobre a qualidade de vida de nossa população.
Este tipo de mineração e seus impactos não podem ser vistos, nesta época singular, como algo mais importante que a vida, nem poderão ser maquiados como questões dissociadas do momento e dos ecossistemas biológico e sóciopolíticos que nos envolvem. O processo que envolve a instalação desta mina deve ser descontinuado até porque os responsáveis sabem que não serão esquecidos, e que os omissos também serão responsáveis.
Não se enganem, a população saberá distinguir entre a responsabilidade da corte e o papel ilusório dos bobos que a animam.
* Engenheiro Agrônomo, mestre em Economia Rural, Doutor em Engenharia de Produção, membro do Movimento Ciência Cidadã.
Edição: Katia Marko