Estima-se que vivam no país 896,9 mil, segundo o último dado censitário de 2010, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Deles, 64% estão na zona rural e 36%, nas cidades. No estado do Rio Grande do Sul, seriam em torno de 18,5 mil entre Guarani, Mbya Guarani, Kaingang e mistos. Vivendo muitas vezes em áreas degradas, em acampamentos às margens de rodovias, ou áreas devolutas sem as mínimas condições ambientais, sem saneamento básico, infraestrutura e terra para subsistência. Em um contexto de pandemia, o que era ruim, torna-se mais preocupante. Soma-se a isso o fato de que, por conta do isolamento social, não poderem se locomover e vender seu artesanato, ainda mais em uma época, como a Páscoa, onde o rendimento se eleva um pouco mais que em outras ocasiões.
“Toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos brancos, o rastro de vocês na terra", afirma Davi Kopenawa Yanomami, publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil. Varíola, gripe, tuberculose, pneumonia, coqueluche, sarampo e outras viroses foram responsáveis pela dizimação de inúmeros povos indígenas. Suscetíveis a doenças respiratórias, diante da pandemia causada pelo coronavírus, soa-se o alarme para essa população, uma vez que já existe o registro de no mínimo cinco indígenas. A primeira foi uma jovem de 19 anos, agente de saúde . Até a tarde desta quarta-feira (08), já são 13.717 casos confirmados no país, sendo 667 mortes pela covid-19. No Estado, são 555 casos confirmados, sendo nove mortes. Nenhum caso em indígena foi registrado até o momento no RS.
“Sabemos que as epidemias foram uma das principais causas da dizimação de vários povos indígenas. Sabemos também que as doenças por infecção respiratória são as mais comuns e as que mais matam os povos indígenas no Brasil”, aponta Alice Martins, guarani kaiowá, mulher indígena no contexto urbano. Ela também salienta que as entidades responsáveis pelos povos indígenas, Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), devido em grande medida pelo sucateamento das mesmas, não estão preparadas para essa pandemia. O Sesai é o órgão responsável pelo atendimento de mais de 765.000 indígenas no país.
CIMI está preocupado com as comunidades indígenas
Para o indigenista e coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Sul, Roberto Liebgott, vivemos uma realidade bastante dramática no país em função da pandemia do coronavírus. “A situação é tensa porque há toda uma realidade em que grande parte da sociedade está submetida a condições inadequadas, quanto a habitação, saneamento básico, alimentação e também no tocante a uma assistência em Saúde de forma continuada no âmbito da prevenção”, ilustra ao destacar que esses fatores afetam as comunidades indígenas do Sul do país, que vivem em vulnerabilidade.
Entre os aspectos, Roberto destaca a questão territorial. De acordo com ele muitas dessas comunidades não estão localizados no âmago, mas nas margens dos territórios e nessa condição estão submetidos a uma série de transtornos cotidianos. “Embora haja agora todo cuidado no sentido de restringirem o acesso das pessoas às comunidades e aldeias indígenas, como muitas estão situadas perto de rodovias, perto de cidades, o trânsito acaba ocorrendo e isso impacta na vida e no dia a dia das pessoas das aldeias.”
Outro ponto destacado tanto por Alice quanto Roberto diz respeito à alimentação. A carência alimentar dessas comunidades são também reflexo do local em que habitam, onde não há as condições adequadas de produção de alimentos. Soma-se a isso a vulnerabilidade sanitária, uma vez que em muitos desses locais não há saneamento básico, não há água potável suficiente nas comunidades, requisitos essenciais ao combate da pandemia. “Raras são as exceções em que as comunidades têm uma infraestrutura, com poços artesianos, água potável e saneamento básico. Na maioria dos casos as comunidades estão situadas em regiões degradadas em que as águas que eles têm acesso são águas de córregos ou de rios que estão evidentemente contaminados, poluídas”, assinala Roberto.
Conforme complementa Alice, os indígenas são os mais vulneráveis, mais expostos por causa das condições de vida. “Se essa pandemia continuar, se continuarmos como estamos, infelizmente vamos ter sim mortes dos povos indígenas, se não pelo vírus, sim pela fome”.
Diante desse cenário, pontua Roberto, há uma dependência muito grande de políticas assistenciais que nos últimos tempos vêm sendo negligenciadas pelo poder público. De acordo com ele, a própria Funai, através de sua presidência em Brasília, tem determinado que servidores do órgão indigenista não prestem assistência àquelas comunidades que não têm os seus territórios, as suas áreas regularizadas, demarcadas. A última demarcação aconteceu no governo de Michel Temer.
Por outro lado, o indigenista frisa o desempenho das equipes de Saúde nas comunidades indígenas, que junto com os profissionais ligados à Assistência são os únicos que podem acessar nesse momento as comunidades, e que levam até elas informações e recomendações sobre o coronavírus e a covid-19. “As comunidades indígenas em geral estão convencidas da necessidade de não circularem para fora dos seus territórios, aldeias, e eles têm impedido o trânsito de pessoas que não fazem parte do convívio comunitário, apenas abrem uma exceção no tocante a presença das pessoas ligadas à Saúde e à Assistência”.
Outro agravante, por conta do isolamento social, é a impossibilidade da venda dos artesanatos, em especial na época da Páscoa. Tradicionalmente nesse período as ruas da capital gaúcha, assim como tantas outras cidades, estariam repletas de cestas, ramos de marcela, confeccionados e vendidos pelas mulheres indígenas. A venda de artesanatos, de acordo com Alice, é a única fonte de sobrevivência dessas famílias, e que nessa data ganha um incremento em suas vendas, visto que “em alguns dias, elas não conseguem se quer vender um colar”, frisa. Muitas dessas mulheres, acrescenta, não têm acesso ao bolsa família.
Órgãos públicos, ações e recomendações
Segundo Roberto, a pandemia chega em um momento em que temos uma estrutura política bastante deficitária, em que há um déficit muito grande na execução de política de Saúde. “Vem também em um momento de ausência total do Estado no sentido de assegurar a essas comunidades o mínimo de assistência”, assinala.
“Isso nos traz a preocupação de que mais adiante corre-se o risco das comunidades indígenas, dentre as afetadas, serão os que mais sofrerão em função da negligência estatal, que é anterior à pandemia, e que comprometeu toda uma política de ação no âmbito da Saúde, de garantia dos direitos territoriais e a precariedade das infraestruturas das equipes da Saúde que estão postas nesse contexto de pandemia.”
Para Alice nesse momento em que o Estado se isenta, em que todos se isentam, os povos indígenas continuam sendo invisibilizados e sendo mortos principalmente pela falta das políticas públicas e pelos direitos que têm adquiridos não serem colocados na prática.
Diante de toda essa situação, no último domingo (5) o defensor regional de Direitos Humanos no Rio Grande do Sul (DRDH-RS), Gabriel Saad Travassos, protocolou na Justiça Federal uma Ação Civil Pública (ACP) em face da União, Fundação Nacional do Índio (Funai), e do Estado do RS para garantir o fornecimento de alimentos, materiais de higiene, assistência médica e assistência social às comunidades indígenas no estado que estão isoladas em função da pandemia da covid-19.
De acordo com Travassos, apesar das tentativas de solução extrajudicial do caso, nenhum dos réus sinalizou medidas no sentido de garantir a subsistência dos povos indígenas durante a pandemia. Conforme frisa o defensor, o colapso humanitário das comunidades indígenas no RS somente pode ser evitado mediante intervenção incisiva do Estado de modo a garantir-lhes os alimentos, insumos e equipamentos necessários à preservação da vida, da saúde individual e coletiva. “Como não há qualquer perspectiva de que os órgãos responsáveis, em nível federal e estadual, cumpram as obrigações constitucionais e legais no que diz respeito à garantia do mínimo existencial às famílias, urge que a garantia do acesso à justiça seja invocada de modo a fazer cessar a lesão ao direito subjetivo da coletividade indígena.”
A ação, que tramita na 9ª Vara Federal de Porto Alegre, pede, em tutela de urgência, o fornecimento mínimo do total de 7.169 cestas básicas mensais para as famílias indígenas, insumos e equipamentos de proteção e prevenção, disponibilização de equipes multiprofissionais de Saúde indígena para atendimento em todas as comunidades e o cadastramento de todos os indígenas no Cadastro Único do Governo Federal, habilitando-se aqueles que preencherem os requisitos legais ao recebimento do Bolsa-Família, do Benefício de Prestação Continuada e aos demais programas governamentais.
O Conselho Estadual dos Direitos Humanos (CEDH-RS), no dia 27, fez também uma recomendação aos órgãos públicos estaduais e municipais, das áreas da Assistência Social e da Saúde uma atuação especial e urgente junto às comunidades indígenas e quilombolas do Estado do Rio Grande do Sul. Entre elas a distribuição de cestas básicas de alimentos em todas as comunidades indígenas e quilombolas, fazendo uso do “benefício eventual” previsto na legislação de Assistência Social; e fazer chegar a estes grupos sociais materiais de higiene e limpeza, vestuário e materiais que emergencialmente melhorem as condições de moradia e o saneamento e de acesso à água potável, em especial nas comunidades em estado de maior necessidade.
Um centro de referência de empoderamento e troca de experiências
Diante da ausência de políticas públicas que contemplem para se ter um centro de referência afroindígena no estado, Alice, que também milita no movimento dos sem teto e de luta pela terra, fez da Ocupação Baronesa esse espaço, uma retomada de território ancestral, em uma região central de Porto Alegre, na Cidade Baixa.
Nos últimos 10 meses o espaço tem funcionado como centro de referência para as mulheres que saem de suas aldeias para vender seus produtos na capital, para que tenham um lugar para ficar, se alimentar. Além disso, são realizadas no espaço rodas de conversa, oficinas de cestarias e de artesanato. “A cultura de dentro da aldeia é colocada dentro desse espaço como um potencializador de busca de sustentabilidade dessas mulheres. A nossa luta pela defesa de território em um centro urbano para que essas mulheres tenham como se movimentar melhor, para que não precisem estar voltando para as aldeias todos os dias” expõe.
Diante das necessidades relatadas pelas mulheres indígenas, e por elas estarem impedidas de vir trabalhar por conta da pandemia, o espaço junto a seus apoiadores tem feito cestas básicas com alimentos e produtos de limpeza e tem levado para essas mulheres em suas comunidades. Até o momento foram feitas três ações, Aldeia do Cantagalo, Tekoa Jataiti, Aldeia de Itapuã Pindo Mirim. Durante essa semana serão feitas mais duas ações em outras duas comunidades.
O espaço também formou uma comissão de voluntários e apoiadores que estão pegando os dados das mulheres que não têm registro no CadÚnico para depois ajudá-las a fazer a declaração e ter acesso ao auxílio emergencial aprovado pelo governo essa semana.
“O que nos faz humanos é nossa capacidade de sermos solidários, nesse momento que o mundo doente se manifesta em uma grandeza inimaginável, nós mulheres mais uma vez somos as que mais sentimos esse impacto em nossos habitats, ser solidária é respeitar essas mulheres nesse momento”, finaliza Alice.
A ocupação criou a Rede Indígena Porto Alegre, uma vaquinha via doação legal. Para contribuir clique aqui.
Com informações da Defensoria Pública da União.
Edição: Katia Marko