Bergson foi morto na região do Araguaia, em 1972, onde vivia na clandestinidade após ser condenado pela Justiça Militar por participar do movimento estudantil. Neste terceiro momento série Lúcida Tristeza, a entrevista é com a irmã mais velha de Bergson, Tânia Gurjão de Farias.
A série Lúcida Tristeza é composta de trechos de conversas de encontros com familiares de mortos e desaparecidos da ditadura militar no Brasil, permeados por algumas fotos e breves percepções pessoais acerca do assunto.
Leia também as outras entrevistas da série:
- Este é Virgílio Gomes da Silva, assassinado pela ditadura
- Este é Devanir José de Carvalho, assassinado pela ditadura
Este é Bergson Gurjão Farias, assassinado pelos militares aos vinte e cinco anos. Teve seu corpo pendurado no galho de uma árvore, de cabeça pra baixo, para ser agredido por paraquedistas e outros agentes das forças repressivas. Veio a se tornar o primeiro desaparecido da Guerrilha do Araguaia.
Em 2012, durante a execução do projeto Ausências, de Gustavo Germano, tive a oportunidade de conversar com Tânia, irmã de Bergson. Em uma praça tranquila, no centro de Fortaleza (CE), nos sentamos à sombra de uma árvore de jambolão. Pergunto:
Qual a primeira coisa lhe vem à memória, quando pensa no Bergson? Consegue ter uma lembrança visual, de como ele era fisicamente?
Tânia: O que eu me lembro demais assim, do Bergson, muito mesmo: ele era muito brincalhão, muito. E por conta disso, eu acho até, o sorriso dele era a coisa mais bonita que ele tinha. Não é aquela coisa, o mais bonito, mas ele nem falava nada, ele já ia rindo, pra depois falar, pra depois... sabe? Então eu me lembro muito. A feição dele, eu me lembro perfeita, perfeita, com óculos, sem óculos. Mas assim, a primeira coisa, quando eu me lembro dele, a primeira coisa... eu faço um gesto, um ar de riso, quando eu me lembro. Porque é ele rindo que eu vejo. Sempre que eu me lembro, é ele rindo.
Tem alguma história que você lembre, de alguma coisa que ele gostava de fazer?
(Súbito, Tânia canta, sorridente:)
Agora vou mudar minha conduta
Vou pra luta
Pois eu quero me aprumar
Vou tratar você
À força bruta
Pra poder me reabilitar
Pois esta vida não está sopa
E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa, eu vou?
Pro samba que você me convidou?
Tânia: Ele adorava cantar isso (risos). Ele gostava muito de fazer serenata pras namoradas. Juntava-se ele, com mais dois ou três amigos. As vezes um sabia tocar violão, as vezes não, e eles contratavam uma pessoa pra tocar violão e cantar as coisas que eles queriam que as namoradas soubessem. Adorava cantar. Louco pelo Noel Rosa. As serenatas, normalmente eram Noel Rosa. Quando estavam brigados, lá ia ele com aquela música do Noel Rosa pra namorada.
E alguma história do ambiente de casa, a família e os irmãos, você recorda?
Tânia: Tem uma que é muito engraçada. Ele toda vida entrou em casa beijando todo mundo. E aí a minha irmã as vezes se afobava, por alguma razão, que ela tava fazendo alguma coisa e ele chegava, agarrava e dava um beijo e tudo e ela dizia: “para Bergson, sai pra lá. Eu não quero mais isso não”. Aí um dia ela tava danada de braba com alguma coisa que eu não sei o que era, ele chegou e beijou todo mundo, todo mundo beijou ele e tudo. Quando ele chegou perto dela, beijou ela e ela: “Eu não quero isso mais. Papai, mande o Bergson parar de me beijar, eu não quero mais que ele me beije, eu não gosto”. Aí o papai disse: “Pronto, vamos legalizar já essa situação. Bergson a partir de agora passa a ser o beijador oficial aqui de casa”. Aí ele obrigava ela a beijar: “agora eu tô autorizado!” Mas tudo era questão de brincadeira (risos).
Naquela época, Tânia, como era o movimento estudantil em que o Bergson agia? Você, como irmã mais velha, participava também?
Tânia: Tava todo mundo envolvido no movimento estudantil. Eu era a única apartidária, eu não tinha partido, mas eu gostava. Quer dizer, eu andava muito bem em todos os comitês de estudantes, frequentava os eventos. Todos os campeonatos brasileiros de esportes universitários eram lá na universidade, no CEU, numa quadra assim grande, num ginásio grande. Era denominado CEU, Centro de Estudantes Universitários. Então a gente comparecia tudo, dava o maior apoio. No ano de 68, eu estava terminando a minha faculdade, terminaria no final do ano, e o Bergson cursava o Instituto de Química, estava fazendo o segundo ano.
Foi aí que aconteceu a passeata?
Tânia: Isso, em 68 foi a passeata, que ele foi preso nessa passeata, foi muito massacrado. Teve uma fratura, num vaso do crânio, ficou hospitalizado três meses. Quando ele saiu, aí passou a ser perseguido. A gente lá em casa, no mínimo uma vez por semana, a gente tinha uma visita de um destacamento, com metralhadora atrás dele, mas ele não tava lá em casa. Quer dizer, a gente foi muito perturbado. Mas depois disso ele chegou à universidade, que também foi obrigada a demiti-lo antes de jubilá-lo.
Ele chegou e disse “papai, não tenho mais condição de ficar aqui, porque nem estudar eu posso. Então eu vou procurar outro lugar onde eu possa terminar a faculdade pra pensar o que que eu vou fazer da minha vida”. Então foi quando ele saiu de casa, isso em 68. Aqui, a convivência com ele era espetacular, mas depois que ele foi expulso dessa cidade eu... eu não sei mais como era ele. Ainda me encontrei com ele pela última vez em São Paulo, em 1969.
E tem alguma história que você lembre desse período?
Tânia: Quando ele ficou preso. Tinham quatro guardas na porta do quarto dele, que ele tava, e a mamãe com ele. A fila dos estudantes, pra entrar, visitar, e sair, fazia a volta pelo prédio. Foram três meses, que ele passou. Nesses três meses, esses guardas que iam lá, fazer a escolta dele, ficar lá de guarda dele, aprenderam, pro resto da vida deles: matemática, física, química, estavam todos no segundo grau, fazendo essas coisas todas. Ele ensinava pros guardas, os deveres que eles traziam, dos cursos que estavam fazendo. Ajudava eles a resolver os problemas deles, ensinando mesmo. Ele era fora de série... Não tem outro igual, não.
(Sorrimos. Talvez como faria Bergson.)
Tânia, como foi sentir esta ausência, na época, e conviver com esse vazio, durante os anos seguintes?
Tânia: Olha, vou te dizer uma coisa, André. Eu perdi muitos namorados por quem eu era apaixonada. Perdi muita gente, fiquei muito magoada, sofri muito. Mas o meu maior sofrimento, realmente, foi a perda do meu irmão. Porque me tiraram todas as chances de um direito que eu tinha adquirido de nascença, de usufruir da companhia dele até enquanto por Deus fosse dado vida a ele. Não era pra ter sido assim. Na minha cabeça, né. Aquele lá de cima sempre é quem sabe das coisas, não posso nem tá discutindo isso aqui agora. Mas realmente a minha maior perda, na minha vida, foi o meu irmão.
E hoje em dia, lidar com essa dor, como é acessar esse sentimento?
Tânia: A gente já tá muito distante, eu já procurei amenizar. Dor, a gente não consegue sarar não. Eu acho que não. Que a cada vez que você fala, dá uma pontada assim... É bastante crucial. Mas vai amenizando as mágoas, aquele sentimento ruim... Eu já tô deixando tudo por menos. Já não sofro mais tanto, não.
Edição: Marcelo Ferreira