O livro Gomorra. História real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana, de Roberto Saviano (2009), é um relato paradigmático, embora involuntário, daquilo que o filósofo italiano Franco Berardi chamou de “splatterkapitalismus”. A expressão “splatter”, como sabemos, designa um subgênero do cinema de horror caracterizado pela franca exposição de mortes violentas, vísceras e atrocidades diversas. Não há economia de detalhes. Não faltam close ups. Para Berardi, o sistema capitalista transformou-se num sistema criminal, no qual a aceitação do crime passou a ser um princípio competitivo. Sem praticá-lo, não há como sobreviver.
Diz ele:
O crime não é mais uma função marginal do sistema capitalista, mas um fator decisivo para vencer num quadro de competição desregulada. A chantagem, a violência, a eliminação física dos adversários, a tortura, o homicídio, a exploração de menores, a indução à prostituição, a produção de instrumentos para destruição massiva e a utilização delitiva de incapacitados se tornaram técnicas insubstituíveis para a disputa econômica (Berardi, 2007, p. 126 – tradução minha).
Em janeiro de 2015, na ampliação desse mesmo debate, Franco Berardi lançou um livro terrível, encantadoramente terrível – Heroes. Mass murder and suicide –, cuja força é a de expor um manancial de informações e reflexões agudas sobre o capitalismo absolutista (o ultraliberalismo tecnototalitário e etnonacionalista) contemporâneo não apenas como indústria do crime, mas também como máquina indutora de doenças mentais, pensamentos e ações suicidas.
O foco específico são os costumeiros massacres, tristes e reincidentes massacres, levados a cabo por adolescentes, jovens estudantes, em vários países do mundo, sobretudo nos EUA. São chacinas grandiosas, de inflexão midiática, produzidas na convergência entre a psicopatia, o caos mental e a publicidade. Muitas vezes, são atos deliberados, planejados ao máximo, produzidos como se fossem uma vendetta ou o cuidadoso roteiro de um filme hollywoodiano. Não é raro encontrarmos – nas buscas criminais posteriores – o making off videográfico com os preparativos, as cenas de bastidores, os rastros digitais do assassino-suicida. São os “heróis de uma era de niilismo e estupidez espetacular”, diz o autor italiano (Berardi, 2015, p. 03).
Não me causou espanto nenhum quando encontrei, em meio às horríveis descrições – o desespero e o sangue pareciam mesmo verter das páginas do livro –, menções à Telecom francesa e à onda de suicídios de funcionários que ali teve lugar por volta de 2009. Trinta e cinco empregados se suicidaram em cerca de dois anos. Alguns deles, inclusive, deixando notas explicativas, bilhetes de despedida e listas de razões: chantagem, meritocracia punitiva, humilhação, individualismo extremo, pressões insuportáveis, metas inatingíveis. Vidas precarizadas, em suma. Um deles se referiu à utilização de “técnicas de administração através do terror” (Berardi, 2015, p. 171) – horror management.
Foi essa faceta tanatológica – definida por Berardi, ilustrada por Saviano – que irrompeu no cenário político brasileiro, nas últimas semanas, com os depoimentos dos proprietários-gestores das empresas Havan, Madero, Giraffas e Localiza. Roberto Justus, outro necroempreendedor, expôs, sem constrangimento algum, sua gerontomaquia. “O que é morrer entre 10 a 15% dos mais velhos [dentre aqueles que podem se contaminar], comparando-se com o estrago [a ser produzido] na economia?”, ele se perguntou. Tudo potencializado, de forma dramática, pela letalidade e pelos efeitos sociais disruptivos – e intrínsecos – da epidemia de coronavírus.
A aceitação da morte, na esteira da precarização extrema, e a suposição de que algumas vidas valem menos do que outras, de que há corpos que não merecem sequer o luto, são os vetores agora indisfarçáveis da axiomática do capital. Diante de um presidente inepto, que já não pode (em realidade, nunca pôde), não sabe ou não quer fazer mais nada, é sintomático que recaia sobre Luiz Henrique Mandetta, o atual ministro da Saúde, a condução de um projeto biopolítico (ou necropolítico, numa expressão equivalente) cujo maior sucesso será o de minimizar o número de mortos, administrando, em paralelo, o colapso da rede hospitalar e a paralisia relacional que o vírus propaga.
O funcionamento do sistema capitalista, como vemos, se torna biologicamente insustentável sem uma infraestrutura global de saúde pública. Além da saúde – o acesso a medicamentos, um número seguro de leitos disponíveis, as condições básicas garantidas aos médicos, enfermeiros e laboratoristas, a todos os profissionais da área –, também a ciência e a informação confiável e de qualidade (a educação, em suma) são dimensões da vida humana que não podem estar submetidas ao mercado ou aos governos, com suas crises e suas instabilidades cíclicas. Os governos passam, os humores do mercado variam. A continuidade da vida da espécie precisa se alicerçar em algo mais perene: saúde, educação e pesquisa científica precisam estar blindadas em relação aos interesses escusos e à incompetência dos políticos, ao jogo de ganha-ganha dos especuladores financeiros e dos mercados de risco.
Mandetta, convertido num “homem razoável”, um bolsonarista “técnico e instruído” (!) – capaz de discutir os “papers publicados” a respeito da pandemia –, com certeza, não é santo. E isso se torna ainda mais paradoxal (e até irônico) quando o vemos vestir, em seus pronunciamentos à nação, um colete com a insígnia do Sistema Único de Saúde.
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O mundo, de fato, nunca foi compreensível. Mas tenho a impressão de que agora, para muitos, se tornou absolutamente incompreensível, “transbordou” dos esquemas explicativos que, para eles, ainda persistiam: o maniqueísmo político, a síndrome persecutória, as teorias da conspiração, o discurso pronto da ocasião, os discursos de ódio. Para essas pessoas, não há quase nada além do negacionismo, da caça aos “bodes expiatórios” e aos falsos culpados (os complôs difusos, a oposição política simétrica, a mídia, quase sempre). Resta-lhes muito pouco além de se entregarem, como voluntários, aos “pais da pátria”, ao charlatanismo, ao diversionismo alienado e à crença metafísica numa salvação divina (a descoberta de uma “cura milagrosa”).
Os apelos de retorno à normalidade, à abertura das lojas e do comércio inessencial, como temos visto – na retórica necroempresarial, na carreata patriótica do último sábado –, é, na superfície, uma tomada de posição pelo mercado. Menos superficialmente, no entanto, é um tipo de negacionismo mascarado de vocação cívica, pragmatismo empreendedor, cálculo racional e apego ao trabalho. É a hipocrisia do covarde que prefere não entender as razões pelas quais poderá morrer, tão logo a estrutura de crenças na qual se apoia termine de estertorar e adormeça em paz, por um período longo e arrastado, antes dele.
Referências
BERARDI, Franco ‘Bifo’. Heroes. Mass murder and suicide. New York & London: Verso Futures, 2015.
_______. Generación Post-Alfa. Patologías e imaginarios en el semiocapitalismo. Buenos Aires – AR: Tinta Limón, 2007.
SAVIANO, Roberto. Gomorra. A história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana. Rio de Janeiro – RJ: Bertrand Brasil, 2009.
* Fabrício Silveira é professor universitário vinculado ao PPGCom da UFRGS.
Edição: Marcelo Ferreira