Rio Grande do Sul

PANDEMIA

“Não está fácil”, diz gaúcha que vive na Espanha sobre a situação no país

“Não sigam as orientações do Bolsonaro! O isolamento funciona”, recomenda Valéria Calvi

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Rua deserta em Valência na Espanha - Valéria Calvi

Com mais de 10 mil vítimas da covid-19, a Espanha concentra quase 20% de todas as mortes do mundo em decorrência do coronavírus, ficando apenas atrás da Itália. Somente nesta quinta-feira (02), o país registrou 932 óbitos. O número de infectados chegou a 117.710 e mais de 30.000 pessoas foram curadas. Tais números que levaram o país a decretar um dos isolamentos mais rigorosos da Europa, em vigor desde 14 de março.

A situação alterou profundamente a vida dos espanhóis, conta a socióloga Valéria Calvi, gaúcha que está vivendo na Espanha desde janeiro de 2020. “Não está fácil. O país está praticamente parado e as pessoas e as famílias precisando reinventar seu cotidiano”, afirma ela que, em janeiro de 2020, foi concluir seu doutorado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vinculada ao Programa de Doutorado em Direito, Ciência Política e Criminologia da Universidade de Valência.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Valéria relata que, mesmo os espanhóis tendo um forte hábito de realizar atividades nas ruas, as medidas de isolamento são observadas pela população. “Só podemos sair para ir ao mercado, farmácia, acudir pessoas em situação de dependência e trabalhar (quem não conseguiu trabalhar em homeoffice)”, explica. A quarentena é compulsória e existe multa e até prisão para quem descumprir a medida.

Apesar disso, assim como ocorre no Brasil, há uma disputa política em relação às medidas de isolamento. Paralisação da indústria e comércio, medidas de renda mínima e restrição às demissões “são o ponto de divergência entre governo e oposição. Os sindicatos tendem a se posicionar ao lado do governo e os empresários e patronais ao lado da oposição”. Passada a crise, acredita que a União Europeia deve repensar aspectos sociais, principalmente no que diz respeito os sistemas de saúde, aos gastos sociais, à tecnologia e aos modelos de bem-estar social.


A socióloga gaúcha Valéria Calvi mora em Valência na Espanha. / Arquivo pessoal

A partir de sua experiência em solo espanhol, em meio à pandemia, Valéria faz recomendações aos brasileiros como estabelecer uma rotina de horários durante o isolamento, fazer exercícios e procurar tomar sol. A principal delas: “Não sigam as orientações do Bolsonaro! O isolamento funciona, tem respaldo científico e é um absurdo que isolar ou não isolar seja uma questão em qualquer país do mundo”.


Confira a entrevista:

Brasil de Fato RS – Como está viver atualmente na quarentena?

Valéria Calvi – Não está fácil. O país está praticamente parado e as pessoas e as famílias precisando reinventar seu cotidiano. Sei que as escolas seguem com um planejamento online, mas não sei como está o processo de aprendizado das crianças e adolescentes. O estado de alarma foi decretado dia 14 de março e, desde então, vivemos com restrições para sair à rua. Só podemos sair para ir ao mercado, farmácia, acudir pessoas em situação de dependência e trabalhar (quem não conseguiu trabalhar em homeoffice). Então nossos dias são basicamente 24h em casa.

Os espanhóis têm o hábito de viver muito na rua, de tomar uma cerveja no final do dia depois do trabalho. As terrazas, que são bares e restaurantes com mesas na rua, estão sempre cheias na hora do almoço e final do expediente e isso está sendo difícil. Li que o perfil de consumo no mercado mudou desde o início da quarentena. Se no começo o que mais vendia era o papel higiênico, hoje são a cerveja o vinho, as azeitonas, anchovas e batata-frita tipo chips. Essas são comidas que o pessoal costuma beliscar quando tomam alguma coisa. Acho que isso indica que aqui estamos tentando adaptar os hábitos para essa situação de quarentena. Passado o primeiro susto e correr para o mercado para comprar papel higiênico, as coisas vão se “normalizando” dentro do possível.

BdF RS – Qual o sentimento da população para essa alta taxa de mortes?

Valéria – De tristeza. Por mais que os pronunciamentos diários sempre tenham frizado que haveria muitas mortes, que a Espanha ainda viveria dias muito difíceis, é duro ver essas coisas tão perto. Aqui em Valência, muitos monumentos apagaram e seguem com as luzes apagadas e as bandeiras estão a meio mastro em sinal de luto pelas pessoas que morreram.

BdF RS – Quais medidas de isolamento estão em vigor?

Valéria – As restrições para sair de casa. Além das que eu citei, também se pode sair para passear com o cachorro. Em todos os casos, só se pode sair individualmente. Sobre isso do cachorro, começou um movimento de pessoas alugando seus próprios cachorros para quem quisesse sair na rua. As pessoas falam tanto no “jeitinho brasileiro”, mas as outras nacionalidades também dão o seu jeito para burlar as coisas.

Do comércio, só têm autorização para funcionar supermercados, mercadinhos e farmácias, ou seja, só o que se refere às necessidades básicas. Desde o dia 30 de março, o governo baixou um decreto para aumentar o isolamento, proibindo o funcionamento das indústrias que não estivessem ligadas diretamente às necessidades básicas. Com isso, diminui ainda mais o fluxo de pessoas que seguem trabalhando fora de casa.

BdF RS – As pessoas estão respeitando?

Valéria – No geral sim. Como a quarentena é compulsória, há punições para quem descumpre o estado de alarma. Há dois tipos de punição: as multas, que têm variado entre 100 e 600 euros, e a prisão, que varia de 3 meses a 1 ano. Segundo o El País, até dia 30 de março, tinham tramitado 216.326 multas e sido presas 1.849 pessoas.

BdF RS – Demorou muito para as medidas de isolamento serem tomadas?

Valéria – Esse é o debate que se trava hoje na Espanha. Diferente do Brasil, em que há um embate entre ter ou não ter confinamento, na Espanha o confinamento foi desde o início um consenso. A questão é se ele chegou tarde ou não. A restrição da liberdade de ir e vir é uma coisa delicada, principalmente para a União Europeia.

Os que acham que a Espanha não demorou afirmam que decretar o estado de alarma antes teria tido péssima repercussão na sociedade, porque a gravidade do coronavírus ainda não estava dada. De fato, a maioria da população – eu incluída - só começou a levar a sério o coronavírus quando o estado de alarma foi decretado. Antes disso estávamos achando a situação da Itália horrível, mas acreditando que não chegaríamos a esse ponto. Aqui em Valência inclusive, cidade onde moro, estávamos no meio das Fallas, a maior festa popular da cidade e que junta milhares de pessoas todos os dias na rua. Então, por essa ótica, o governo teria passado como autoritário.

Por outro lado, os que afirmam que a Espanha demorou o fazem com base no que o país está vivendo agora que, de fato, é a situação que a Itália viveu e vive. Afirmam que se o governo tivesse decretado o estado de alarma antes, a Espanha não teria esses números de mortos e infectados tão alto. Essa é uma discussão que passa pela disputa política daqui. Quem é governo afirma que decretou na hora que tinha que decretar; quem é oposição, que decretou tarde.

BdF RS – Temos notícias de interação entre vizinhos pelas janelas. Como está isso?

Valéria – De fato essa interação existe e é uma das coisas que aliviam um pouco a quarentena. Todos os dias às 20h as pessoas vão para as janelas e sacadas e aplaudem os profissionais da saúde e dos mercados (sei que estão fazendo isso no Brasil também). Também vejo vizinhos conversando pelas janelas e redes de apoio para fazer compras por aqueles que são população de risco.

Aqui em Valência, por exemplo, alguns bairros se organizaram para garantir que idosos não precisassem ir ao mercado. É claro que essas medidas não conseguem abarcar a todos, mas é alguma coisa. O sul da Europa é conhecido por ter uma população mais aberta e menos “fria” que o norte da Europa. Acho que a interação, além de uma necessidade humana por contato, pode estar relacionada a isso também.

BdF RS – Aqui no Brasil o governo e grupos da extrema-direita agem de forma negacionista. Existe isso na Espanha?

Valéria – Não com relação ao negacionismo. Ninguém nega, independentemente do posicionamento no espectro político, a gravidade do coronavírus e a necessidade do isolamento. Porém, há divergências com relação ao grau de isolamento e as medidas econômicas adotadas para a crise e o pós-crise.

O atual presidente da Espanha, Pedro Sánchez, é do PSOE, partido que faz parte da esquerda espanhola, e conta com o apoio de outros partidos de esquerda como o PODEMOS. Na oposição estão PP e Ciudadanos, o primeiro da direita clássica e o segundo, um partido neoliberal mais recente. O PP faz um discurso aberto de oposição ao governo, mas vinha votando favoravelmente às medidas propostas pelo Sánchez. O Ciudadanos optou por não fazer agora um discurso contrário, deixando as críticas para quando as coisas se acalmarem. Na ultra-direita temos o Vox, partido fascista e franquista, que segue a mesma linha do PP quanto ao posicionamento público.

A paralisação não do comércio, mas da indústria, da produção de mercadorias que não são consideradas necessidades básicas e as medidas para garantir renda mínima, isenção de aluguel, suspensão de hipoteca e restrição às demissões são o ponto de divergência entre governo e oposição. Os sindicatos tendem a se posicionar ao lado do governo e os empresários e patronais ao lado da oposição.

Depois que o governo endureceu o estado de alarma e decretou a paralisação das indústrias, os conflitos políticos se agudizaram por aqui. Agora estamos vendo pela TV um discurso contra o governo que vai subindo de tom a cada dia. Essa pandemia não provoca crise sanitária, econômica e política só no Brasil.

BdF RS – Quais perspectivas ecoam na sociedade espanhola em relação à pandemia?

Valéria – Difícil dizer. Ainda estamos no momento de atingir o pico de mortes então a tensão permanece. Com relação aos contágios, os números indicam que a curva já está se aplanando o que representa uma esperança de que até o verão teremos a situação controlada e, quem sabe, mais ou menos resolvida.

BdF RS – Você acha que a sociedade espanhola vai repensar alguns valores a partir dessa pandemia?

Valéria – Eu acho que não só a sociedade espanhola, mas a União Europeia como um todo. Repensar os sistemas de saúde (aqui na Espanha é público, mas em outros países não), os gastos sociais, a tecnologia, os modelos de bem-estar social e o próprio papel da União Europeia, que acabou de lidar com o BREXIT, estão na pauta.

Hoje há uma disputa grande dentro da União Europeia sobre como repartir os custos da crise econômica gerada pelo coronavírus. De um lado estão, principalmente, Portugal, Espanha e Itália (países que têm menos peso, porque economicamente mais débeis) e França (esse sim com peso) querendo que os custos se repartam entre todos os membros. De outro estão principalmente Alemanha e Holanda, querendo que os países encontrem saídas individuais.

As reuniões têm sido longas e os consensos difíceis de conseguir. Acho que como a União Europeia vai lidar com isso vai ser determinante para como a sociedade espanhola vai reagir, já que o projeto “União Europeia” não abarca apenas a economia e a circulação e pessoas, há um conjunto de valores considerados europeus que são almejados pelos países mediterrâneos, então a resposta a essa pergunta passa por aí.

BdF RS – Que orientações você pode dar aos brasileiros a partir da sua experiência?

Valéria – Em primeiro lugar, que não sigam as orientações do Bolsonaro! O isolamento funciona, tem respaldo científico e é um absurdo que isolar ou não isolar seja uma questão em qualquer país do mundo.

Agora de coisas práticas para o cotidiano, tem algumas. Tentar separar semana útil de fim de semana é uma delas. É impossível ter uma rotina normal em quarentena, mas tentar ao máximo separar o tempo de lazer do tempo de trabalho é importante. Acordar na mesma hora que se acordava pra ir trabalhar/estudar, trocar de roupa, etc. É fundamental criar uma rotina.

Também é importante exercitar o corpo e isso não é uma questão de “vou ficar gordo/a nessa quarentena”. Exercitar o corpo é importante pra manter o ânimo elevado, pra dar uma sensação de movimento pro corpo e pro cérebro.

Também estipular os horários do dia em que se vai ler notícias sobre o coronavírus. A quantidade de informação e desinformação é enorme e, se a gente não cuida, gasta muito tempo nisso. Eu vejo as notícias duas vezes ao dia: uma lá pelas 15h, que é quando já se tem os números da pandemia relativos ao dia anterior, e outra lá pelas 20h, que é quando já houve alguma reação do governo ou da oposição.

Tomar sol (se é possível) em algum momento do dia também é importante. Por fim, diria que é para as pessoas não se cobrarem um rendimento nas atividades igual ao que tinham quando não estavam na quarentena. Estamos vivendo uma situação de exceção e é normal que boa parte da nossa energia seja utilizada para lidar com o lado emocional. Estamos aprendendo a viver de outra maneira na marra e isso leva tempo.

Edição: Marcelo Ferreira