Rio Grande do Sul

MEMÓRIA

Lúcida Tristeza: Este é Virgílio Gomes da Silva, assassinado pela ditadura

Nesses 56 anos do golpe militar no Brasil, confira série de entrevistas com familiares de mortos e desaparecidos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Após encontrarem o corpo de Virgílio, os militares forjaram a imagem de que ele estava desaparecido - Montagem sobre foto de arquivo pessoal

Neste segundo momento série Lúcida Tristeza, a entrevista é com a viúva de Virgílio, Ilda Martins da Silva, e um de seus filhos, o que recebeu o mesmo nome do pai. Assassinado aos 36 anos após inúmeras sessões de tortura, Virgílio teve morte confirmada por documentos oficiais somente de 2004. Ele foi um dos líderes do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, em 1969.

A série Lúcida Tristeza é composta de trechos de conversas de encontros com familiares de mortos e desaparecidos da ditadura militar no Brasil, permeados por algumas fotos e breves percepções pessoais acerca do assunto.

Leia também as outras entrevistas da série:

- Este é Devanir José de Carvalho, assassinado pela ditadura



Virgílio / Foto: Arquivo pessoal

Este é Virgílio Gomes da Silva, assassinado pelos militares aos 36 anos. Foi preso no dia 29 de setembro de 1969, na Av. Duque de Caxias, em São Paulo. Semanas antes, no Rio de Janeiro, havia sido um dos líderes do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick. No dia 30 de setembro, a polícia também detém, num sítio no litoral paulista, sua esposa Ilda Martins da Silva e três de seus quatro filhos: Wladimir, 8; Virgílio, 7; e Maria Isabel, um bebê de quatro meses. Gregório, 2, não é levado por não estar em casa. Somente em 2004 a morte brutal de Virgílio, após inúmeras sessões de tortura, é confirmada por documentos oficiais.

Em 2012, na execução do projeto Ausências, de Gustavo Germano, tive a oportunidade de conversar com dona Ilda e com o filho, que recebeu o mesmo nome do pai, Virgílio. Dona Ilda me recebe em sua casa com a mesa posta para o café da manhã: pão francês, quitutes, pães de queijo e sonhos com sabor de goiabada. Tomamos o café e nos sentamos na varanda, a fim de começarmos a conversa.

Peço que você se apresente.

Dona Ilda: Meu nome é Ilda Martins da Silva, sou viúva do Virgilio Gomes da Silva, assassinado dia 29 de setembro de 69. E desaparecido até hoje. Não temos notícia dele. E nunca a polícia falou dele, nunca a polícia deu notícia. E estamos atrás de ver se a gente encontra alguma coisa dele. Mas tá difícil, porque depois de 42 anos, 43 vai fazer agora em setembro. A busca que fizeram lá no cemitério da Vila Formosa foi bem trabalhada, ficaram uma semana trabalhando lá, tiraram muita ossada, mas não se sabe se saiu o dele. E agora tô esperando o resultado do DNA pra ver se sai alguma coisa.

Como era o Virgílio no dia a dia, Dona Ilda? O que ele gostava de fazer?

Dona Ilda: Ele era muito sociável. Como ele trabalhava no sindicato, ele tinha ligação com todo mundo. Trabalhador, ele era um popular. Era muito solidário. Se você precisava de uma camisa, ele tirava a camisa do corpo e te dava. Não fumava, não bebia. A vida dele era trabalhar. Passeava com os filhos, adorava os filhos. Um bom marido na pobreza. Gostava de esporte. Gostava de flores. Passarinhos. Uma pessoa normal, né. E bom coração... ele era uma pessoa humana.

Quando a senhora lembra dele, que imagem lhe vem a mente? E sonhos, já sonhou, ou sonha ainda com ele?

Dona Ilda: Eu, teve um tempo que eu não via o rosto dele. Mesmo em sonho, eu sonhava com ele, mas o corpo, do pescoço pra baixo. O rosto eu nunca via. Ou então via ele de costas, nunca via o rosto dele em sonho. Faz tempo que eu não sonho com ele, mas quando eu sonhava, era assim. Conversava com ele, e tudo, mas o rosto dele eu não via. E quando eu vejo a imagem dele assim, muitas vezes eu vejo ele igualzinho ao que ele era. Outras vezes, desaparece.

Agora faz tempo que eu não tenho esse sonho. A busca no cemitério parece que me fez bem. Porque antes eu tinha um peso no coração, eu não sei explicar. Como se fosse... que eu tivesse te feito um mal. Como se sem querer eu tivesse te ofendido, e eu ficava com aquela tristeza, com aquele remorso no coração. Era uma coisa assim... não sei explicar direito.

Sabe quando você faz um mal, uma coisa assim, errada? Não mal, uma coisa errada, e você fica pensando naquilo. Eu ficava com remorso, então muitas vezes eu perguntava pros meus filhos: eu ofendi vocês, eu xinguei vocês? Fiz alguma coisa que ofendi vocês? Eles falam: não. E depois que eu comecei a fazer essa busca no cemitério, desapareceu isso. Parece que era o remorso de não saber onde ele tava. De não procurar ele, de não dar uma iniciativa de encontrar ele. E agora já não tenho mais isso daí, desapareceu. Eu acho que ele tava pedindo isso, né. Ele tava pedindo que eu fizesse essa busca.

(Paramos um pouco a conversa. Dona Ilda vai buscar as fotos da busca no cemitério. É um passo importante. Ela retorna, mostra as fotos. Um grupo de pessoas busca ossadas em corpos desconhecidos. Entendo um pouco a dor de Dona Ilda. Não ter nenhum registro concreto da morte de seu marido, pai de seus filhos, deve ser uma sensação agonizante. Ainda mais quando persiste, durante anos.)


Dona Ilda / Foto: Arquivo pessoal

Dona Ilda, pelo pouco que conheço da história, sei que você é uma mulher de muita fibra, de muita luta, que passou por dificuldades enormes, e agora está aqui. Conta um pouco da sua história. Como a senhora se virou, com quatro filhos pra criar?

Dona Ilda: O Virgílio caiu dia 29 de setembro, e eu caí dia 30. Fiquei nove meses presa. Quatro meses fiquei incomunicável, sem ver meus filhos. Porque meus filhos também caíram presos. E quando eu saí, eu saí sem processo, saí sem nada, porque a minha prisão foi pra saber, só me perguntavam sobre o Virgílio. Eu não tinha nada, não queriam saber de mim, só perguntavam dele. A minha prisão era como se fosse um sequestro. Me sequestraram, deixaram lá, soltaram, e pronto.

E depois da prisão, o que aconteceu?

Dona Ilda: Aí eu fiquei aqui em São Paulo, procurava trabalho e não me davam. Ia nos lugares, ninguém me dava oportunidade. Aí ficava pensando que o Virgílio queria que eu fosse pra Cuba. Quando ele tava vivo, ele queria que eu fosse pra Cuba, pra segurança minha e das crianças. Mas com a prisão e a morte dele, e a minha prisão, parou essa história. Aí um dia eu cruzei a Rose, uma amiga nossa, e eles me arrumaram isso daí. Perguntaram se eu queria ir pra Cuba com as crianças, que eles me levavam, me mandavam pra lá. Aí eu fui. Fui pelo Paraguai, passei pela Argentina, fiquei um ano morando no Chile. Aí depois pedi pra embaixada cubana, pra convencer a embaixada cubana, que me arrumou tudo, e me mandaram pra lá. Aí fiquei 18 anos em Cuba.

E como foi viver e criar os filhos num outro país, que inclusive fala outra língua. Como era a vida por lá?

Dona Ilda: Minha vida era cubana. Eu trabalhava, eu ia passear, eu andava por tudo que é lugar. Uma vida cubana, mesma vida do cubano. O mesmo direito que o cubano tinha, eu tinha. A mesma coisa. E depois, como eu era uma viúva de um mártir, porque o Virgílio lá é considerado um mártir, então no dia das mães eles mandavam flores, no dia da mulher mandavam flores, me levavam pra passear. Foi muito bom pra mim.

Cuba é a minha segunda pátria. Porque Cuba fez mais por mim do que o meu próprio país. Cuba educou meus filhos, me deu segurança, me deu alegria. E o Brasil só me deu tristeza. O Brasil não, não vamos dizer o Brasil, né? O governo. Só me deu tristeza, me deu preocupação. Tirou o pai dos meus filhos. Muitos dos meus filhos não conheceram o pai. Então Cuba pra mim tá no meu coração, essa ninguém fala mal, porque eu brigo (risos).

E os seus filhos? O que eles acharam desta mudança, tanto no passado, quanto no presente? Afinal, eles cresceram em outro país.

Dona Ilda: Muitas vezes eu pergunto pra eles, vocês acham que eu fiz mal em ir pra Cuba? Deixando vocês longe da família aqui, que vocês não tiveram relações quase com eles.

(Súbito, como num passe de mágica, Virgilio, o filho, entra pela pela porta. Já nos conhecemos de dias anteriores. Ele sorri, cumprimenta, e acompanha o andamento da conversa. Dona Ilda continua:)

Eles dizem: imagina, essa é a melhor coisa que você fez, ir pra lá, se não eu não era hoje quem eu sou. Eu não ia dar estudo pra eles aqui. E trabalho, não me davam. Eu ia trabalhar e diziam que quarenta e poucos anos já era demais, que eles não queriam. E outros me falavam: com quatro filhos, eu não quero. Era sempre assim. Sempre tinham uma desculpa e não me davam trabalho.

Como que eu ia criar esses filhos? Eles de pequenininho já teriam de trabalhar, e sabe lá como iam estudar. No entanto, eu tenho quatro engenheiros, graças a Cuba, que agradeço de todo coração. Nunca vou ter como agradecer isso. Sempre é uma dívida que eu tenho com Cuba. Mas... foi boa. É uma dívida boa. Eu adoro Cuba, adoro Fidel, adoro os cubanos, adoro todo mundo lá.

(Sorrimos, os três. Virgílio, o filho, pelo que sei, também tem uma forte relação com Cuba. São lembranças que trazem bons fluidos às memórias da família. Virgílio vem à sacada, conversamos brevemente. Combinamos de gravar uma conversa logo mais, ele também gostaria de falar.)

Dona Ilda, conte sobre o sequestro do embaixador americano, e opine sobre o filme O que é isso, companheiro?, no qual Virgílio é representado pelo personagem Jonas.

Dona Ilda: O filme retrata ele como uma pessoa fria. Você viu o filme? Na minha opinião, tratam ele como uma pessoa fria, uma pessoa que não tinha nada na cabeça, só pensava em matar. Qualquer coisa era explosivo, fumando o dia inteiro. O cara que fez o papel dele, fumava o dia inteiro. Eu acho que como disse um jornalista aí, que eu esqueci o nome dele, que mataram o Virgílio duas vezes, uma a polícia, e outra o cinema. Tanto é que eu abri um processo contra o filme, tá correndo esse processo.

E qual a motivação desse processo, Dona Ilda?

Dona Ilda: Achei que no filme foi uma coisa desumana. Não é o que ele era. Eles não vieram me entrevistar, não vieram perguntar se eu queria que fizesse o filme, não vieram perguntar como que ele era, como você tá fazendo aqui agora, pra eles poderem filmar. Então puseram ele como um sequestrador do embaixador, pronto pra matar.

Não era esse o ideal dele. O ideal dele era fazer o sequestro, impressionar o país, o mundo, os americanos, pra poder liberar os companheiros que estavam presos. Tanto é que saíram quinze com esse sequestro. A ideia dele nesse sequestro era essa, não ser um bandido. Nem matar, nem nada, ele queria era coisa política mesmo. Salvar os companheiros que estavam presos.


Virgílio / Foto: Arquivo pessoal

Tem algum dos seus filhos que é parecido com ele?

Dona Ilda: O Virgílio é parecido com ele.

(Sorrimos, outra vez. Virgílio aparece na sacada, tomando um café. Conversamos mais um pouco. Dona Ilda recolhe as fotos e o livro. Proponho a Virgílio que desçamos, pra conversarmos num ambiente diferente da conversa com Ilda. Descemos as escadas lentamente. Percebo que ele veste uma camiseta verde oliva com os dizeres “A Religião é o Ópio do Povo” logo acima de um grande rosto de Karl Marx. Nos sentamos, frente a frente. Respiro fundo e pergunto:)

Virgílio, você lembra de algumas características do seu pai? Como ele era, no dia a dia?

Virgílio: Ele era uma pessoa de opinião, de caráter. E ele tinha uma posição dentro do grupo que era de comando, então ele era disciplinador. Mesmo com nós, ele era disciplinador. Ele não admitia, por exemplo, palavrão. Não admitia falta de respeito, teimosia. Por outro lado, ele elogiava muito as aptidões das pessoas. Aquele que tinha aptidão pra tiro, aquele que tinha aptidão pra esporte físico, alguma aptidão física também, ele elogiava muito.

Quando você lembra dele, que imagem lhe vem à memória? Consegue visualizar o rosto dele, as expressões corporais?

Virgílio: A memória infantil ela é ou fantasiosa, ou muito vaga, né? A lembrança do rosto em si, a gente remete ele as fotografias que a gente vê. Tem uma foto que é muito legal, ele tá com um bigode enorme. Então tem aquela foto, aquela imagem que se junta com a fantasia e a imaginação, ligando os fatos com aquele rosto. Mas se pensar realmente no rosto dele, são várias imagens. São vários rostos, várias facetas, porque ele mudou muito de rosto durante o período que a gente lembra. Mesmo a questão da clandestinidade. Uma hora tá com bigode, outra hora tá sem bigode. Uma hora tá com peruca, outra hora tá sem peruca. Então, o rosto em si não é o que mais traz a lembrança e a memória.

Mas então tem alguma história, situação, ou sentimento específico que te remeta diretamente a alguma lembrança dele?

Virgílio: Quando éramos crianças, o lugar de brincar era na rua. E quando ele chegava em casa, ele assobiava. E onde você tivesse, tinha que sair correndo, porque tinha que tá por casa, na hora do assobio. Não tinha segunda vez, se assobiasse duas vezes, apanhava, né (risos). Então na realidade... não podia dar tempo pra ele assobiar a segunda vez. E eu sonhei muito tempo com esse assobio. Eu escutei muito tempo esse assobio. E é engraçado, que não sou só eu, meu irmão também, ele conta que ele escutou muito tempo esse assobio. Ó, tão me chamando, né... Ou então tava brincando e de repente sentia o assobio, quando... puts, mas o meu pai não tá lá. Acho que talvez o subconsciente fica trabalhando...

Ele assobiava longo assim, né... (repete o assobio). Mas alto, ia alto (outra vez o assobio). E eu peguei pra assobiar com os meus filhos, eles sempre me responderam também (risos). O Jonas, meu filho, em qualquer lugar que tá, a Edileuza (esposa) fica assombrada. Lá no prédio, ele chega no prédio e desce pra brincar, quando tá na hora da janta eu vou na janela assobio, não dá dois minutos ele tá na porta, e ela: mas como! E é... o ser humano é assim, é adaptável, né.

Falando em adaptação, Virgílio, como foi viver em Cuba? A morte do pai. Essa mudança brusca, ainda criança, de país, de cultura. Conta um pouco como foi essa transição.

Virgílio: Cuba foi a salvação da gente. A situação aqui no Brasil era muito difícil, a gente jamais imaginaria no que poderia terminar, como poderia ter sido. Porque era uma situação muito crua mesmo, muito difícil. E Cuba, ela veio como um presente. A falta do meu pai foi Cuba quem supriu. Tudo que o meu pai representava, eu via lá no dia a dia, em Cuba, com os cubanos. Coisas que o governo fazia pelo povo.

O ideal cubano ajudou a formar o teu caráter? A te afirmar como pessoa?

Virgílio: Cuba tem uma importância enorme na minha formação. Não só profissional né, acho que profissional você consegue, assim, autodidatamente falando, você consegue se tornar um sapateiro, você consegue se tornar um ferreiro, você consegue se fazer útil em alguma coisa. Agora um homem, um ser humano, você não consegue se tornar se não tem um exemplo a seguir, se não tem uma fé em que o mundo pode ser melhor. Formar o homem, essa coisa que o Che falava né, do Homem Novo. O cara que é intelectual, mas por ser intelectual ele não se nega a fazer trabalho laboral. É o cara que se dedica aos outros, é o cara que é culto. O cara que é simples, dedicado. Eles me inculcaram muito, não só a mim... eles... a Edileuza fala que eu sou o Homem Novo, né... (chora)

(Virgilio respira fundo. Olha para os lados. Ainda embargado, retoma:)

Virgílio: Pra mim um ícone, um exemplo, é o Fidel, cara. O que me assombra nele é essa consequência, essa dedicação, essa perseverança, essa honestidade. Não tem cara igual na história. Não tem igual. E ele sonha em levar isso daí pro povo, pro país, pro mundo.

(Paramos brevemente a conversa. Compreendo a situação. Espero Virgilio se recompor e dizer: vamos lá.)

E a dor da perda, em si? Como foi conviver com esse vazio forçado?

Virgílio: No momento, existia a ausência, existia sim a dor, mas ela tava lá mais como um orgulho, pelo jeito como ele tinha sido morto, do que ele tinha feito, de como todo mundo falava dele. Isso daí me enchia de orgulho. E o orgulho suplantava a falta... aquela dor da falta. Você ter um exemplo desse, era o que amaciava um pouco essa dor. Pelo que todo mundo fala, ele era respeitado, era querido. Acho que partindo da origem dele, de ser uma pessoa de origem muito humilde, sem preparo intelectual nenhum, ele conseguiu ganhar a admiração dos outros, né.

E mais ainda eu acho no fato da situação em que ele morreu. Ele foi consequente com o que ele falou sempre. Ele falou que não se entregaria. Sempre falava isso pra todo mundo.

Todo mundo comenta que se um dia ele caísse preso, ele preferia morrer do que delatar. E que ele ia dar trabalho pra ser morto. E foi bem assim. Ele foi consequente com o que ele falou. Isso daí ninguém pode negar. E o que criou aquela raiva dos seus algozes, que fizeram aquilo tudo com ele, foi isso, foi precisamente ver a dignidade dele morrendo. Enfrentando. Todo amordaçado, todo ensanguentado, e ainda enfrentando. Não baixou a crista. Não se humilhou. Não se rendeu, nunca.

 

Edição: Marcelo Ferreira