“O telefone tocou próximo ao meio dia, e não era o samba, era o Fidelix informando que um vizinho, lindeiro ao Quilombo, mais especificamente aos fundos da Escola Cedel, sorrateiramente teria destruído o muro da divisa com a escola e avançou cinco metros sobre a mesmo”, assim relata Onir Araújo, advogado e membro da Frente Quilombola.
Juntamente com o Areal da Baronesa, o Bar da Carla, o Boteco do Caninha, a Cabo Rocha, Conjunto Princesa Isabel, Vilas Lupicínio e Planetário, o Terreiro da Mãe Ieda, o Quilombo Família Fidelix constituem o que sobrou da presença comunitária negra da antiga Ilhota. Certificado pela Fundação Cultural Palmares desde 2005, fica localizado no bairro Azenha. Ali, desde a década de 1980, vivem cerca de 32 famílias, que tiveram seu território, localizado na rua Otto Ernest Maier, invadido, com a derrubada do muro que o separava do terreno voltado para a rua Lima e Silva nº 1565, na última sexta-feira (27).
No trecho do território invadido (cinco metros do terreno), havia a horta comunitária e árvores frutíferas (como amoreira, pitangueira, bananeira), que foram destruídas. De acordo com relato da coordenadora da Escola Cedel, Kelly Cristine Knevitz Leite, no final da manhã os moradores perceberam uma movimentação estranha nos fundos do terreno, anexo à quadra de esportes, onde são realizadas as atividades de hortas comunitárias. Quatro operários estavam demolindo o muro divisório, para levantar outro. Posteriormente veio a saber que o responsável seria o Sr. Juliano Souza, e que o mesmo seguia orientações do arquiteto responsável.
A escola atua no território há 26 anos. A horta faz parte do projeto pedagógico além do reforço nutricional e alimentar das crianças. Atende, além do Quilombo Fidelix, crianças e jovens do Quilombo do Areal, Condomínio Princesa Isabel, Comunidades da Cabo Rocha, Vilas Lupicínio e Planetário.
“Chamamos as autoridades policiais, que nos acompanharam até a entrada do imóvel dos fundos. Oportunidade que junto com a Brigada Militar e a Guarda Municipal avisamos ao sr. Juliano, que a área invadida é área quilombola de competência Federal. Determinaram a suspensão dos trabalhos e o fechamento da obra. Os operários saíram do local sem derrubar o muro construído”, relata Kelly. Um decreto, publicado no dia 26, havia proibido construção civil no município em decorrência da pandemia causada pelo coronavírus.
Agora, de acordo com Onir, se está no aguardo da decisão liminar de manutenção de posse. “Independente disso, fizemos a retomada e o desforço possessório na própria sexta-feira. A situação é bem tensa, pois a área da horta está aberta, eles seguem com a obra mesmo com o decreto e são vários homens que não se identificaram nem com o Procurador Federal que esteve na segunda fazendo uma vistoria. Além do entulho e caliça que deixaram sobre a outra parte da horta, criando obstáculos para a circulação, mantêm um cão Pit Bull solto e sem fucinheira”, expõe.
Obra não tem placa do CREA
No dia seguinte à ação dos operários, o procurador da República Pedro Nicolau Moura Sacco foi até o local e encaminhou parecer à juíza federal e uma notificação ao advogado do mandante da obra. “O Procurador federal se manifestou favoravelmente e reforçando a urgência do nosso pedido, além disso, oficiou o "advogado" deles (Escritório especializado na área criminal) para que identifique os seus clientes, em especial o tal de Juliano Souza, sujeito truculento, e que se diz responsável pela obra”, afirma Onir. Ele pontuou que se trata de uma obra bem cara e não existe placa do CREA com arquiteto e engenheiro responsável, tampouco apresentaram para a Brigada e Prefeitura qualquer documento ou licença.
“Há o agravante do Decreto Municipal que veda esse tipo de atividade em razão da pandemia. Mesmo a comunidade tendo feito a retomada está extremamente limitada em exercer o seu domínio. Se a situação fosse inversa já estariam todos presos ou mortos”, conclui.
Kelly confirma que o território segue sem nenhuma proteção, na área que havia a horta está tudo aberto. “Quem poderia nos ajudar que era tanto a Guarda Municipal, que representa o município, quanto a Brigada Militar, nenhuma das duas freou aquela obra. Eles seguem fazendo; só que a partir do local onde tinha o nosso muro, deram a palavra que eles não iriam mexer. Até então eles não mexeram mais naquela área.”
Segundo ela, onde antes havia um território frutífero e de alimentação, hoje, só há entulhos. “Nada acontece, está tudo parado, perde-se um pouco do brilho, uma sensação totalmente de impotência”, desabafa. Por conta do coronavírus, as crianças não têm vindo para as atividades, contudo, como observa, se não fosse isso, as crianças também não poderiam usar o espaço. “Janeiro e fevereiro foi uma época de plantação de algumas hortaliças da época, cenouras, beterrabas, couve chinesa, que não poderemos colher. São alguns sonhos enterrados sob caliças, maldade, agressividade. A gente conta com a ação das autoridades, mas parece que nada acontece, precisamos esperar os papéis andarem para algo ser feito.”
Edição: Katia Marko