Só a solidariedade, o cuidado e o esforço comum podem salvar as pessoas, nestes ‘tempos de cólera’
Só a solidariedade, o cuidado e o esforço comum podem salvar as pessoas, nestes ‘tempos de cólera’, e até, quem sabe, produzir uma sociedade melhor no futuro.
Estou em ‘confinamento’ desde o dia 15 de março. Tenho cumprido à risca a orientação dos gestores da Saúde e especialistas, ficando no isolamento social, recomendado especialmente e mais que obrigatório para os idosos acima dos sessentinha. Felizmente, não vou morrer de fome. Tenho à disposição, na casa de mamãe e irmãos mais novos, na Vila Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, e ao lado de casa, laranjas, goiabas, butiás, coquinhos, bergamotas, sem falar em verduras e legumes em quantidade. É trabalho de agricultores familiares que, duas vezes por semana, vão à cidade para a Feira do Produtor, Fruteira Heck, há algumas décadas, de onde tiram o sustento da família.
À distância, e contribuindo dentro do possível, tenho acompanhado, e estimulado, diferentes iniciativas da sociedade civil, que se combinam e articulam crescentemente entre si. Articulações e ações brilhantes que só a sociedade civil organizada é capaz de fazer e protagonizar.
O Consea RS (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional), do qual sou conselheiro, lançou o Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome, com doação de alimentos ou dinheiro, e construindo Comitês locais, através dos Comseas municipais, movimentos sociais e populares, movimento sindical, igrejas e pastorais e todos os que de boa vontade queiram participar e contribuir: “Campanha para levar alimentos a grupos vulneráveis como comunidades indígenas, quilombas, moradores de rua, catadores de materiais recicláveis, etc. (Ver em facebook.com/ConseaRS).
Surgiu o Comitê Popular em Defesa do Povo contra o Coronavírus, integrado por dezenas de entidades de todos os setores da sociedade: “O Comitê deve trabalhar em defesa da vida, do emprego e da renda básica, por quarentena já, Fora Bolsonaro, Fim da EC 95, defesa do SUS, taxação das grandes empresas e grandes fortunas, defesa do serviço público.” Está organizado em vários Grupos de Trabalho (GTs), construídos em Plenária virtual, e aberto a todas e todos que queiram participar: GT Defesa das/os Trabalhadoras/os; GT das Ações Emergenciais (segurança alimentar, moradia, etc.); GT organizar a Pressão aos Governos; GT Infraestrutura; Coletivo Jurídico; GT Comunicação.
O Núcleo de Reflexão Política da Lomba do Pinheiro reuniu-se virtualmente e tirou três encaminhamentos: “Elencar quem precisa de alimentos e organizar a entrega para estas pessoas; fazer o mapeamento das campanhas que estão sendo feitas na Lomba e os pontos críticos para ajuda urgente; passar carro de som pela Lomba falando da doença, da importância de ficar em casa e da renda mínima.”
Há diferentes ações sendo feitas e acontecendo na Lomba do Pinheiro, que se repetem em outros bairros da periferia de Porto Alegre: Plataforma on line – Solidariedade Lomba do Pinheiro – cadastro de pessoas que precisam de ajuda; Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, na Vila Herdeiros: campanha para recolher materiais recicláveis; Solidariedade Vila Mapa – campanha de solidariedade da Associação de Triagem de Resídios sólidos domiciliares –processar resíduos hospitalares; Time do Bem, da Quinta do Portal – arrecadação de doces e montagem de cestas de Páscoa para crianças; ação solidária, da Mocidade Independente da Lomba do Pinheiro, com ponto de coleta de doações no Espaço Cultural Terreiro de Jorge; Solidariedade ativa, comunidades em luta – arrecadação financeira de cestas básicas para famílias da Lomba do Pinheiro, da Restinga, do Campo da Tuca e do Rincão.
Na base, o povo se mobiliza e, na ponta, as ações acontecem, já que o atual governo federal não sabe o que é solidariedade, não sabe o que é se juntar e agir coletivamente. Um governo que praticamente acabou com todas as políticas públicas que envolviam a população e atendiam os mais pobres entre os pobres, a começar pela extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e da CNAPO (Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica), entre muitos outros Conselhos, Comitês e Comissões que foram sumariamente extintos, onde a sociedade civil não só se expressava, quanto contribuía decisivamente para a elaboração de políticas públicas e sociais.
São tempos de resistência e desobediência civil, garantindo comida para quem precisa, dignidade e democracia. Ausente o governo/Estado, a sociedade assume o protagonismo.
Em tempos de coronavírus, ‘tempos de cólera’, seja pelo vírus em si, seja pela intolerância e ódio reinantes, é fundamental a ação da sociedade, de preferência articulada e em diálogo com os governos, quando estes se abrem à participação social e popular. Isso não sendo possível, a própria sociedade cria, na sua autonomia, seus instrumentos e salvaguardas. E age, com mobilização na base e ações na ponta.
Edição: Katia Marko