Especialista em Medicina Intensiva, Cristiano Franke atua nas UTIs do Hospital de Pronto Socorro e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, capital gaúcha, e integra a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) e a direção do curso de Manejo Intensivo em Desastres.
Em contato direto com pacientes com Covid-19, ele destaca como está a realidade nas UTIs e as maiores necessidades do sistema de saúde para o atendimento do crescente número de infectados graves pelo coronavírus, que já levou três pessoas a morte no Rio Grande do Sul até esta segunda-feira, 30, com mais de 240 infectados.
Para além de leitos e equipamentos, o médico intensivista alerta para a insuficiência de equipes de profissionais preparadas para atuar nas UTIs. O médico destaca ainda a nova e difícil tarefa de comunicar por telefone a situação dos pacientes aos familiares impedidos de visitar os internados.
Extra Classe – Qual é o panorama nas UTIs do RS por Covid-19?
Cristiano Franke – Aumentou bastante a quantidade de doentes em situação crítica na última semana, especialmente em Porto Alegre. Tenho conversado com os colegas de UTIs do interior e há vários casos suspeitos. Nesta manhã tivemos mais uma morte confirmada.
Extra Classe – Qual a capacidade atual das UTIs no estado e a previsão de aumento de leitos?
Cristiano Franke – O Rio Grande do Sul conta com aproximadamente 3.200 leitos de UTI públicos e privados. Destes, 1.630 são vagas exclusivas para adultos. A previsão é aumentar em cerca de 300 leitos até final de abril. Cerca de 60% desses leitos estão na capital e região metropolitana. Esperamos não estar errados na previsão, mas pode acontecer de precisar de muito mais do que isso. Alguns hospitais de medicina complementar não públicos também estão se preparando para aumentar a capacidade. Vemos a Espanha, a Itália e agora os EUA expandir a capacidade em até três vezes. Mas o nosso quantitativo nos preocupa.
Extra Classe – O diretor de regulação da Secretaria Estadual da Saúde (SES), Eduardo Elsade, afirmou nessa segunda-feira, 30. que o “RS não tem chances de entrar em colapso” diante da pandemia de coronavírus. O senhor concorda?
Cristiano Franke – Acho cedo para fazer essa afirmação. Em muitos locais isso não pode ser evitado. Estamos trabalhando e torcendo para que não ocorra aqui. Temos que contar com o máximo apoio de todas as autoridades para mitigar os danos dessa pandemia e salvar o maior número de vidas.
Extra Classe – Qual a medida para aumentar a oferta de leitos? Hospitais de campanha são indicados?
Cristiano Franke – A estratégia da secretaria de Saúde de aumentar o potencial dentro dos hospitais é bem adequada. As nossas UTIs têm potencial de aumento adaptando as unidades de recuperação pós-anestésicas, coronarianas, de emergência e depois passar para os quartos ou leitos de enfermaria. Criar UTI em hospitais de campanha é muito difícil. Recomenda-se aumentar as vagas nos hospitais existentes e reservar hospitais de campanha para doentes não críticos. Quando chega muita gente muito grave o hospital e a UTI não consegue dar conta. Então sobra gente fora da UTI sem o cuidado adequado com mais chance de não sobreviver.
Extra Classe – Além dos leitos e equipamentos quais são os demais desafios?
Cristiano Franke – Temos grande limitação de profissionais de terapia intensiva. Precisamos aumentar nosso quantitativo. O que tem a possibilidade de salvar vidas é quantas equipes existem cuidando desses pacientes.
Respiradores, monitores, bombas de infusão de medicação, equipamentos de proteção individual, medicamentos e todos os insumos precisam estar supridos. Mas o ventilador sozinho não se liga, não se regula.
Os respiradores e a cama não salvam ninguém. Só leitos e equipamentos não resolvem. São necessários um técnico de enfermagem que cuide de um ou dois pacientes, fazer avaliação frequente dos sinais, uma monitorização intensiva; um enfermeiro para cuidar desses pacientes, fisioterapeuta, médico intensivista, nutricionista. Enfim, uma equipe de UTI para cuidar desse doente.
Extra Classe – Como garantir ou capacitar novas equipes em pouco tempo?
Cristiano Franke – A formação em Medicina Intensiva é de pelo menos quatro anos. Então não tem como transformar enfermeiro, fisioterapeuta ou médico intensivista em alguns dias ou semanas. Usualmente temos que recrutar os outros profissionais do hospital que não trabalham em UTI para fazerem algumas tarefas supervisionadas por profissionais que já tenham formação. Conseguimos aumentar a capacidade de tratamento de doentes críticos e salvar mais vidas com outros profissionais de saúde somando forças na medicina intensiva.
Outra medida são contratos emergenciais de profissionais com formação para compor as equipes de intensivistas. Alguns hospitais estão se organizando. Mas as ações são muito tímidas frente a necessidade. A coordenação e organização de pessoal é muito importante.
Extra Classe – Qual a demora média entre o exame e a confirmação?
Cristiano Franke – Devido a grande demanda, cerca de quatro a sete dias nos diferentes laboratórios.
Extra Classe – Qual é o perfil dos internados no Brasil?
Cristiano Franke – Tem relatos de muitas UTIS do Brasil de pessoas acima de 40 anos bastante graves, precisando de respirador, de medicação. Alguns saudáveis previamente, praticantes de atividades físicas. Não são a maioria, mas estão ficando doentes e em estado crítico mesmo.
Extra Classe – Qual a diferença no grau de agressividade ou letalidade de uma pneumonia por coronavírus e a pneumonia bacteriana?
Cristiano Franke – São graves da mesma forma. O que acontece com grande quantidade de casos é que realmente o vírus se caracteriza por ser facilmente transmissível e contagioso.
Extra Classe – Como repercute nos profissionais das UTIS e dos hospitais saberem que podem transmitir aos seus familiares, seus afetos, sua comunidade?
Cristiano Franke – Bem importante isso. Os profissionais estão numa situação psicológica, emocional bem delicada. Muito crítica. Estão no seu trabalho mas têm medo de ficarem doentes, de levarem a doença para seus familiares e comunidades.
Sugerimos à Secretaria Estadual de Saúde que sejam disponibilizados abrigos para os profissionais de saúde se sentirem mais seguros, poderem trabalhar e não voltar para casa. Eu consegui ficar em casa num quarto separado. Não consigo abraçar minhas filhas. É bem difícil (embarga a voz). Mas nem todo mundo pode ficar em casa assim.
Extra Classe – Sabe-se que muitos profissionais da saúde adoeceram tanto pelo vírus como psicologicamente. Vários médicos e profissionais foram a óbito, a exemplo da Itália. Qual o quadro no RS?
Cristiano Franke – A gente sabe de vários profissionais infectados no Brasil inclusive internados na UTI em que trabalham. Esses casos graves ainda não chegaram aqui. Temos infectados, mas ainda não internados. Os hospitais têm feito um controle rigoroso, com atendimento rápido para identificar e afastar imediatamente. O profissional de saúde infectado não pode trabalhar de jeito nenhum porque coloca em risco seus colegas e os outros doentes.
Extra Classe – Os dados oficiais dão conta da realidade da pandemia? Há possibilidade de subnotificações ou pessoas podem estar indo a óbito sem diagnóstico confirmado de Covid-19?
Cristiano Franke – Os doentes internados e os óbitos passam todos pelos exames e são identificados. É muito difícil um óbito pela infecção não ser notificado. Mesmo que demore o resultado do exame será identificado se foi pela Covid-19. As novas notificações são de casos que precisam estar internados. Não teremos um aumento muito significativo das notificações porque as pessoas estão em isolamento e não farão o exame. O que acontece numa fase de transmissão comunitária é que as pessoas que não estão graves, não estão internadas, não tem diagnóstico realizado. Não saberemos exatamente qual é a presença do vírus em números, mas ele está presente. Posteriormente não saberemos quantas pessoas ficaram doentes. Haverá estimativas por amostragem.
Extra Classe – Como o senhor percebe a questão das reações das pessoas infectadas e de seus familiares?
Cristiano Franke – A gente vê os doentes e seus familiares com muito medo. As pessoas não estão podendo visitar seus familiares no hospital. A novidade para nós médicos é não poder falar pessoalmente com os familiares sobre o estado do paciente, sobre o agravo da situação, ou mesmo comunicar o falecimento. Estamos sendo obrigados a dar essas informações por telefone. Essa questão de não falar olho no olho com as famílias é um desafio bastante grande. Várias coisas são novas e temos que aprender. Não há um roteiro prévio estabelecido.
Extra Classe – O paciente isolado fica mais fragilizado sem poder ver seus familiares.
Cristiano Franke – Exato. Historicamente lutamos para que a família pudesse estar com o familiar na UTI. Mas nesse momento não dá pelo alto risco de contaminação. Isso é difícil também para nós.
Extra Classe – Nas UTIs, os pacientes por outras doenças estão separados dos que têm Covid-19?
Cristiano Franke – Os com suspeita ou confirmados com a infecção ficam em isolamento numa unidade específica, separados dos demais pacientes com necessidades intensivas.
Extra Classe – Como avaliar o impacto da Covid-19 em comunidades mais vulneráveis?
Cristiano Franke – A relação da pobreza com a letalidade da doença nos preocupa muito. Não sabemos ainda qual será o comportamento porque temos poucas informações e evidências. Nosso temor é que os efeitos sejam devastadores.
Extra Classe – Algumas lideranças políticas e econômicas defendem que a redução do Estado é boa para a sociedade. Como o corte de recursos para o SUS – como a Emenda Constitucional 95 – impactam nesse momento de combate a pandemia?
Cristiano Franke – As pessoas estão se dando conta que a saúde pública é importante e que o servidor não é um parasita. Recebemos reconhecimentos de autoridades e lideranças valorizando o serviço público, que antes tinham discursos totalmente opostos. Pode ser tardio, mas as pessoas têm a oportunidade de rever alguns conceitos. O SUS está longe de ser perfeito e tem muito para ser melhorado. Mas é uma base muito forte e sólida. Demonstra isto como no combate ao H1N1, na tragédia da boate Kiss e cotidianamente oferecendo vários recursos no atendimento às vítimas como ocorre agora com a Covid-19.
Extra Classe – Como o corpo médico analisa a postura do presidente Jair Bolsonaro em minimizar a pandemia?
Cristiano Franke – É uma postura de exceção entre todos os governantes e líderes no mundo. Entendemos as preocupações com a economia, mas se estima que os impactos econômicos sejam muito piores se as medidas orientadas pelas autoridades de saúde forem ignoradas. E não tem como medir o valor da perda de uma vida.
Extra Classe – Como proceder em caso de sintomas da Covid-19?
Cristiano Franke – Primeiro é ficar em isolamento. Consultar o seu médico. O Conselho Federal de Medicina autorizou a teleconsulta para esta situação específica. Ou procurar atendimento médico e colocar a máscara cirúrgica. Se for paciente do SUS pode ir às Unidades de Pronto Atendimento e nas barracas de avaliação em Porto Alegre. Se os sintomas forem graves, como falta de ar, dificuldade para respirar, coloração escura ou azul nas pontas dos dedos deve ir a um Pronto Atendimento ou hospital que atenda emergência.
Extra Classe – Que aprendizados podemos estimar após a pandemia?
Cristiano Franke – É muito cedo para dizer. É um grande desafio para a civilização. Teremos que mudar muita coisa depois disso.
Edição: Extra Classe