“Estamos vendo um monstro nascendo aqui de novo, que é o monstro da fome. Esse monstro, quando aparece, pode ser até mais assustador que o coronavírus”, lamenta Ronaldo Souza, um dos coordenadores da União de Vilas da Grande Cruzeiro. A organização comunitária está prestando um importante trabalho de solidariedade na região periférica de Porto Alegre, distribuindo cestas básicas com alimentos e materiais de limpeza às famílias mais necessitadas.
O fantasma da fome com o crescimento da pandemia é uma situação vista em todas as grandes cidades brasileiras. Conforme pesquisa do Instituto Data Favela realizada em março, em todas as regiões do país, um a cada três moradores de favela no Brasil terá dificuldade para comprar produtos básicos em decorrência da quarentena contra a pandemia do novo coronavírus.
O isolamento é necessário, mas a realidade das periferias é de uma massa de trabalhadores autônomos e informais, que nesta situação ficam sem fonte de renda, destaca Ronaldo: “O governo pede para se isolar, mas não está dando alternativa. Aqui o desespero já era grande, as mães, os idosos, as pessoas com doenças crônicas, nós temos muitas aqui, e essas estão em alta situação de vulnerabilidade. Não é alarmismo, é extrema calamidade, mães com 4 ou 5 filhos que viviam como diaristas estão começando a ter que catar comida no lixo”.
A União de Vilas da Grande Cruzeiro está realizando aquilo que os governantes têm dificuldades de realizar, explica Ronaldo, que é atuar junto à comunidade e a partir de suas especificidades. Desde sexta-feira (27), mais de 50 famílias das comunidades que pertencem à União estão recebendo cestas básicas em suas casas. “Criamos um protocolo de higiene para os agentes que estão fazendo o recebimento e entrega das doações”, destaca. Os produtos são arrecadados através da doação de pessoas, organizações e instituições apoiadoras. Além disso, a organização distribui sabão para os moradores, produzido a partir de óleo reciclado que é coletado na cidade.
Victor Lisboa, jovem da Cruzeiro e militante do Levante Popular da Juventude, está empenhado na iniciativa e avalia como fundamental a existência desta rede de solidariedade. “Muitas famílias estão precisando dessa ajuda aqui na Grande Cruzeiro. Eu como membro do Levante, me coloco nisso porque a ação comunitária é importante para estar se somando e a juventude está junto nisso”, afirma.
“Esta é uma luta da rede de solidariedade da União de Vilas, iniciativa para minimizar o sofrimento das famílias por conta do isolamento social que precisa ser feito. Tudo feito com cuidado para evitar aglomerações e evitar a transmissão”, destaca o advogado comunitário e morador da Cruzeiro, Fabiano Negreiros. “A gente espera que não chegue, mas se piorar a situação, a gente vai ter o mínimo de preparo para poder atender as famílias através das lideranças locais”.
Organização supre ausência do Estado
Historicamente, o movimento comunitário vem tapando os buracos nos momentos em que o Estado se ausenta das periferias, conta Fabiano. “A União de Vilas da Grande Cruzeiro foi fundada em 1979, quando a situação na região era de completo caos social em relação à sobrevivência”. Foi a partir do movimento comunitário que se criou a organização. É suprapartidária, conta com o apoio de diversos movimentos e funciona através da atuação de lideranças das comunidades, numa lógica de fortalecimento coletivo.
Destacando a importância de líderes históricos que atuaram na União, Ronaldo explica que se reorganizaram recentemente e, há cerca de um ano, está sendo tocada por moradores mais jovens. “Agora nesse último mês a gente botou pra andar ela através de rede de solidariedade. Nossa ideia é que o movimento comunitário saia mais forte desse processo para que possa fazer lutas e cobrar do governo aquilo que ele realmente tem que dar. Lideranças estão mapeando as necessidades e nós da coordenação estamos recolhendo doações e levando para as lideranças de forma igualitária”, conta.
Rede de apoio
O líder comunitário ressalta a importante contribuição de movimentos sociais e de alguns sindicatos de trabalhadores para o trabalho comunitário na região. “Quando nós retomamos a União de Vilas, o MST veio para cá com um grupo de pessoas que ficaram acampadas na Cruzeiro. Foram feitas assembleias com moradores e refundamos a organização com tudo o que o movimento poderia oferecer, que é mão de obra, suor, apoio e algumas comidas”. Já no período de isolamento por conta do coronavírus, salienta Ronaldo, “a CUT-RS também esteve com carro de som e o Sindipetro-RS tentou fazer distribuição de gás, o que só não foi possível por não conseguir distribuição. Os sindicatos do nosso campo no geral estão ajudando e várias outras organizações da sociedade civil”.
O advogado Fabiano também destaca a importância das parcerias para o trabalho da União de Vilas. “Tudo o que a União de Vilas vem fazendo só é possível porque estamos tendo parcerias muito legais de alguns coletivos, como por exemplo os professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estão dando uma baita mão para poder atender minimamente as pessoas. Não só na questão dos alimentos, mas também educativa”, afirma. “Também tem o Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (SIMPA), que tá sendo parceiro de primeira hora, disponibilizando carro de som”, complementa.
UFRGS atua na região
Professor de Educação Física da UFRGS, Luiz Fernando Silva Bilibio trabalha em projetos de extensão e disciplinas na região da Cruzeiro que visam o combate à desigualdade social. Apoiando e acompanhando a distribuição das primeiras cestas básicas pela União de Vilas da Grande Cruzeiro, ele destaca que o drama social da comunidade é agravado nesse momento de pandemia. “Nós da UFRGS, professores, alunos e outros colaboradores, estamos numa rede de apoio no sentido de ajudar a população que está com dificuldades como não ter comida e material de higiene em casa. Também fazendo orientação de cuidados pessoais e dos familiares”, conta.
A iniciativa da UFRGS voltada à prevenção da pandemia chama-se Rede de Solidariedade com e pela comunidade contra o coronavírus e atua em parceria com os moradores nas comunidades carentes do Morro Santana, Glória e da Vila Cruzeiro, alcançando mais de 300 mil pessoas. “Nesse momento é o que precisa ser feito. A gente não quer substituir o poder público, que tem a função de dar resposta contundente de ajuda à população mais vulnerável. Mas entendemos que estamos colaborando de alguma maneira enquanto comunidade acadêmica integrada à população de Porto Alegre”, afirma o professor.
Ação fortalece o movimento comunitário
A ação de solidariedade da União de Vilas da Grande Cruzeiro está organizada em três etapas. Primeiro, tem o trabalho de comunicação, com iniciativas como passar com carros de som e explicar para a comunidade os detalhes sobre o coronavírus e como se proteger, levando em conta as poucas condições dos moradores.
Depois, vem a ampliação e criação de rede de solidariedade interna e para fora, com setores que querem ajudar e não podem sair de casa. Por último, a distribuição das cestas. “Ressaltamos que não é fazer caridade. É fortalecer a organização comunitária, isso serve para nos fortalecer. Todo mundo que está recebendo as cestas está em volta de lideranças e instituições da região. A grande batalha está por vir, depois temos que organizar a luta pelo plano econômico e político”, conclui Ronaldo.
Rede para cobrar poder público
Ronaldo conta que na manhã desta terça-feira (31) foi criado um Comitê de Saúde para pressionar o governo e entidades pela devida assistência à região. A formalização reuniu mais de 20 pessoas, com a presença de agentes comunitários, agentes de Saúde, a coordenadora distrital de Saúde e pessoas dos bairros Cruzeiro, Glória, Cristal e Cascata. Aconteceu em local aberto e com os devidos cuidados de distanciamento adequado entre os participantes.
“Estamos construindo agora um grupo para cadastramento da renda básica e também para fazer o mapeamento da saúde das famílias que estão sendo visitadas”, explica Ronaldo. A partir dessa organização, os agentes que estão entregando as cestas básicas vão fazer a coleta de informações sobre a situação das famílias, para mostrar ao poder público a necessidade de estar presente com ações efetivas e realizadas em diálogo com a comunidade.
Como contribuir
A União de Vilas da Grande Cruzeiro pede doações de produtos de higiene, alimentos ou contribuições em dinheiro para a aquisição das cestas básicas. Quem tiver a oportunidade de ir pessoalmente, pode deixar as doações na sede da Associação dos Moradores e Amigos da Vila Tronco e Arredores (Amavtron), que fica próximo ao Postão da Cruzeiro, na rua Caixa Econômica, 605. O atendimento está com horário reduzido, de segunda a sexta, das 9h às 16h.
Doações em dinheiro podem ser realizadas em qualquer uma das seguintes contas:
Banco do Brasil
Agência 185-6
Conta 56513-0
Caixa Econômica Federal
Agência 0428
Tipo de conta 023
Conta 00010291-8
Telefone e whatsapp para contato: (51) 981-452-235 ou (51) 991-425-075
Mais informações podem ser conferidas na página da União de Vilas.
Edição: Katia Marko