Tão perigoso e intratável quanto o covid-19 é a ignorância e a desinformação epidêmicas com que temos enfrentado o vírus. Ao medo puro e simples, à ausência de uma estrutura suficiente do sistema de saúde, soma-se então a desorientação cognitiva, o que só embaralha ainda mais nossa capacidade de reagir com precisão.
Um desses discursos traiçoeiros que têm povoado as redes sociais nos últimos dias é o discurso de culpabilização da China. Neles, são atribuídas ao Estado chinês uma intencionalidade escusa, a prática de um “jogo sujo” necessário para vencer disputas econômicas globais e/ou se impor ideologicamente, alterando assim o delicado equilíbrio da ordem mundial.
Nada mais fantasioso. Pensar em termos de culpabilização e polaridades simplistas desse tipo (“culpa” x “absolvição”) é o fundamento de qualquer explicação sociológica equivocada. Diversos setores da comunidade científica já se pronunciaram quanto à improcedência quase criminosa desse tipo de narrativa.
Além do mais, do ponto de vista estritamente jornalístico – ou factual, de modo mais abrangente –, tais registros promovem imprecisões grosseiras. Nem todas as grandes pandemias vêm ou vieram da China. Dizer isso é professar uma sinofobia, uma guerra étnica. O primeiro grande surto de gripe A, em 1918, veio de Kansas (EUA), por exemplo. Há casos que se deflagraram a partir de Cingapura, da antiga União Soviética, da Tailândia.
Uma crítica procedente que se pode fazer a China diz respeito ao controle de informação e ao cerceamento à imprensa livre, à demora na divulgação dos primeiros casos identificados. Uma coisa, no entanto, é vacilar diante de uma ameaça, um fenômeno biológico extremo, novo e assustador. Outra, bem diferente, é assumir riscos falseando informações.
No Brasil, o que temos visto é o presidente eleito esforçando-se para desacreditar a imprensa profissional, restringindo-lhe o trabalho, e, além disso, disseminando informações falsas, irresponsavelmente contrárias àquilo que recomendam os organismos internacionais e os setores sensatos que compõem seu atual governo. No dia 19 de março, a hashtag #VirusChines chegou aos Trending Topics no Twitter. Uma investigação recente coletou evidências de utilização de robôs ou processos automatizados para interferir no debate público em torno do assunto. Redes e influenciadores bolsonaristas estariam implicados no impulsionamento (em parte, programado) dessas mensagens.
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O sociólogo e urbanista norte-americano Mike Davis, em 2005, quinze anos atrás, escreveu um livro sobre a gripe aviária H5N1. O livro saiu no Brasil traduzido como O Monstro Bate à Nossa Porta. É um ensaio leve, agradável de ler, bastante detalhado, falando sobre a pandemia que ameaçara a todos entre 2003 e 2004. Semana passada, durante minha quarentena, terminei a leitura e saí com a sensação de que as sociedades não aprendem e que os vírus – esses seres inteligentes, rápidos e ardilosos, “bandos mutantes” – operam, fundamentalmente, no espaço sempre alargado de nossa ignorância. Os políticos e os empresários, por exemplo, seriam mais espertos e perderiam quantidades muito menores do capital que valorizam (seja o capital político ou o capital econômico) se ouvissem um pouco mais os cientistas.
O estudo de Davis deixa isso bem claro: o que se faz na China – embora não só lá – é organizar um determinado sistema produtivo tendo em vista responder às demandas de competitividade e consumo globais. É uma combinação explosiva: convívio interespécies, alta densidade populacional, condições precárias de trabalho, trabalhadores despreparados e mal pagos, ausência de direitos trabalhistas e de condições de higiene, exigência de produtividade em larga escala, expectativas de lucros máximos, consumo elevado de proteína animal e cidades com péssima infraestrutura de saneamento básico e saúde pública. São condições muito similares àquelas induzidas pelas economias neoliberais e pelo necrocapitalismo extrativista e hiperespeculativo hoje hegemônico em nosso país e em várias outras partes do mundo.
É lamentável que milhares de mortos sejam necessários para que possamos nos convencer de que o atual sistema político-econômico precisa ser freado, que regulações são benéficas e que as universidades e os cientistas precisam ser ouvidos.
Vale, portanto, repetir: colocar a questão em termos de “culpa”, além de ser um modo muito empobrecedor de enquadrar o problema, é também um modo de pensar que está enredado numa estrutura de valores católicos (e isso, no mínimo, seria algo alheio ao confucionismo e ao ethos chinês). O fato de que possamos encontrar indícios de responsabilização política – ou riscos políticos assumidos em nome de projetos econômicos a serem perseguidos, a todo custo – não significa que exista intenção consciente (o que seria também um impulso suicida) de produzir e disseminar o vírus. Nesse caso, se recorrêssemos à terminologia jurídica, haveria dolo, mas – outra vez, é até patético dizê-lo – não haveria “culpa”.
Além disso, a narrativa infantil de “culpabilização” da China soa como uma teoria conspiratória, como se o chinês – o “nosso outro”, exótico e estranho – fosse o estrangeiro maquiavélico, representante do “eixo do mal”, o agente de um estado bioterrorista ou bobagens desse tipo, que, antes de tudo, só reforçam o desconhecimento, a pseudoexplicação e o nonsense. Típico dos filmes de Bruce Willis ou Sylvester Stallone.
Teorias conspiratórias, como sabemos, proliferam em tempos de crise. Proliferam também quando faltam condições de apreender uma realidade complexa qualquer. Acreditar na estipulação da “culpa” – e esse é outro ponto a destacar – seria o mesmo que dizer, na contramão, que os norte-americanos inventaram o Anthrax, que o HIV também foi calculadamente produzido num laboratório, nos confins de algum país africano, pelo Vaticano ou por forças malignas com interesses de dominação do mundo.
Uma outra razão – e paro por aqui, sem mencionar as questões diplomáticas e de comércio internacional envolvidas – é o fato de que discursos precários como esse prestam-se a uma captura ideológica, produzem adesão inconsciente num cenário de disputas econômicas entre China e EUA. O sujeito que dissemina narrativas como essa não quer compreender, com seriedade, um importante tema do cenário de tensões globais. Antes disso, quer apenas se deixar instrumentalizar numa disputa ideológica, assumindo, dentro dela, o polo que mais lhe acalma, que o reconforta tanto quanto limita sua compreensão de mundo. E isso, sem dúvida, não ajuda em nada.
* Fabrício Silveira é professor universitário
Edição: Marcelo Ferreira