“Quando no meio de uma quarentena para atenuar a disseminação do Covid-19 (novo coronavírus) você acorda numa segunda-feira pela manhã e tem um decreto do governo dizendo que seu salário pode ser cortado por quatro meses, mesmo voltando atrás, fica muito claro quais são os grupos que estão sendo protegidos pelo governo e quais aqueles que estão sendo jogados na pandemia para que virem literalmente gado”.
É o que diz Fernando Horta, historiador formado pela Ufrgs, doutor em Relações internacionais pela UnB e pós-doutor pela Universidade de Denver. Para ele, os pronunciamentos e escolhas do presidente Jair Bolsonaro evidenciam a ênfase na “economia” e o pouco caso que faz das vidas que “serão perdidas”.
Bolsonaro é adepto da teoria Herd Immunity (imunidade do rebanho), que consiste no confinamento vertical, defendida por Donald Trump e, inicialmente, pelo primeiro ministro inglês Boris Johnson, depois abandonada – ele próprio contraiu o coronavírus e passou a recomendar o confinamento total.
Entre os motivos do britânico, as experiências catastróficas da Itália e da Espanha confrontadas com o êxito Chinês na contenção. Italianos e espanhóis tiveram de mudar tardiamente para um segundo modelo após o colapso dos sistemas de Saúde. Passaram a adotar o chamado Social Distancing (distanciamento social), que em parte aplica os procedimentos que os chineses também adotaram tardiamente, mas de forma radical.
Porém, os europeus só mudaram de rota depois de colher os prejuízos (e cadáveres) provocados pela escolha inicial. A opção dos europeus pelo isolamento vertical causou um número de mortos superior aos da China, onde surgiram os primeiros casos e a epidemia, já está controlada.
Fernando Horta explica a disputa no mundo capitalista ocidental entre esses dois modelos Herd Immunity e Social DIstancing, assim como também a alternativa apresentada pelas experiências chinesa, sul-coreana e cubana, embora consideradas modelares pela Organização Mundial da Saúde (OMS), temidas por questões ideológicas. Para ele, há uma insuficiência do capitalismo liberal em dar respostas à crises como essa e um medo do mundo ocidental de que a China se apresente como modelo.
Sobre as declarações do presidente brasileiro ao longo da semana ele é contundente: “é apavorante que haja tantas pessoas alienadas que ainda apoiem esse tipo de projeto que, em tudo, se assemelha ao pensamento nazifascista da primeira metade do século passado”.
De acordo com o entrevistado, vivemos um momento histórico de grandes mudanças e teremos pela frente um período difícil. Ele fala sobre a possibilidade de ruptura institucional, caos social, o abandono das camadas mais pobres e uma possível explosão de violência nos próximos meses.
EC – Como o senhor avalia a conduta do governo e as ações efetivas diante da pandemia de Covid-19, provocada pelo novo coronavírus?
Fernando Horta – Existem dois projetos hoje no mundo de como enfrentar a pandemia. No caso, esse enfrentamento demonstra mais uma das crises do capitalismo. Para o mundo inteiro já ficou muito claro a diferença de forma de combater o vírus: no sistema capitalista e no sistema chinês, por exemplo. Fica evidente, quando a gente olha para os hospitais de concreto e tijolo da China e as tendas que estamos montando em frente dos nossos hospitais. E, diante disso, uma disputa sobre qual dos dois sistemas se entende como responsável por agir e resolver problemas a longo prazo e qual aquele que quer resolver as coisas até a próxima crise. Numa é uma atitude passageira e noutra, uma atitude que se perpetua no tempo.
EC – Dentro do mundo capitalista também existem duas formas distintas de abordar o combate à pandemia. Gostaria que o senhor explicasse quais são e seus conceitos.
Horta – Sim. Dentro do campo capitalista, no hemisfério ocidental ou hemisfério norte, o Norte Global como é chamado, também existem dois grandes projetos de como tratar essa crise. O primeiro projeto é o do presidente norte-americano Donald Trump junto com o primeiro ministro britânico Boris Johnson, seguido pelo presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Eles chamam esse projeto de Herd Immunity. Herd significa rebanho em inglês. A ideia é que essa crise vai atingir todos nós. O vírus não pode ser tratado. Os efeitos poderiam, de acordo com esse pensamento, no máximo ser amainados. Uma boa quantidade da humanidade vai pegar esse vírus, senão toda ela, e emergiria desse processo um grupo imune. Todo esse ciclo: contaminação, apresentação de sintoma, sobreviver à doença, gerar anticorpos, provocar imunidade em toda a humanidade, enfim, todo esse processo deveria durar em torno de 90 a 180 dias. Com esse conceito na cabeça, esses líderes se colocaram nas redes sociais para mitigar as informações em contrário, assumindo que as mortes serão definitivamente questões incontornáveis. Que não são evitáveis. Portanto, que as pessoas morram mesmo e o mais rápido possível e que não prejudiquem a economia. Então, todos os argumentos deles, dos três, se observarmos, são todos nesse sentido. Os planejamentos que eles fizeram ou a falta de planejamento são, na realidade, um grande projeto de compreensão desse momento em que estamos vivendo. Trata-se de um projeto neoliberal duro, cujo objetivo é olhar para o futuro, porque um dia isso vai passar e a economia precisa ficar funcionando para aqueles que sobreviverem. Se pegarmos as entrevistas dos três e seus pronunciamentos, seguem nesse sentido.
EC – Mas sofreram resistência interna.
Horta – Nos Estados Unidos, Trump sofreu uma oposição muito forte, inclusive dos Democratas, até pela questão eleitoral que está ocorrendo lá. O principal opositor, apesar de Joe Biden ter um grande número de votos, é Bernie Sanders, que tem uma plataforma que envolve saúde pública. Portanto, os efeitos do coronavírus podem mudar drasticamente a questão das eleições nos EUA. Na Inglaterra, o Boris Johnson começou com os planos da herd immunity ou seja, deixar a coisa acontecer. Depois voltou atrás.
EC – Essa lógica aposta na esperança de que o mercado resolva?
Horta – Temos essas percepções desses líderes calcadas no mecanicismo econômico. De que o mercado vai resolver todos os problemas. Que o que acontecer no meio disso são danos colaterais dos quais não podemos evitar nem resolver muita coisa. Não importam as pessoas o que importa é a economia.
EC – Mas existem economistas que dizem que se não cuidar das pessoas, ali na frente isso vai impedir a retomada econômica. Como fica isso?
Horta – Esses economistas que estão dizendo isso têm uma visão um pouquinho diferenciada, mas erram num aspecto. Na lógica desses líderes não interessa se sou eu ou você quem vai comprar. Não interessa quem vai trabalhar. O que interessa é que alguém vai. Para a economia somos números. O que eles calculam é a perda. Quanto da população vai morrer? Talvez dez porcento. Se essa perda pode ser acomodada pelo sistema, tudo bem para eles. Principalmente se o alvo dessas mortes forem pessoas mais velhas que hoje são tidas pelo sistema capitalista como um problema.
EC – Mas não são só as mortes que impactam. E as pessoas que vão ficar sem salário?
Horta – A questão dos sem-salário a gente tem de olhar com calma. A economia brasileira já vinha há muito tempo com pessoas sem salário. Pessoas trabalhando na informalidade, pessoas se virando, literalmente, para tentar sobreviver. O impacto sobre nós é muito menor, por exemplo, do que na Inglaterra. E, é nisso que o governo Bolsonaro se baseia, que não vai mudar muita coisa, pois já vínhamos de um processo de crise profunda, que faz com que o governo fique alienadamente repetindo asneiras que todos nós sabemos que não são verdade. Para países como o nosso, essas questões não diferenciariam em essência o que está acontecendo. Bota um pouco mais de pressão no sistema. E, o que esse grupo acredita é que as engrenagens do sistema capitalista vão voltar a funcionar praticamente imediatamente, repondo os prejuízos que eles tiveram num determinado tempo. A ideia é sempre retomar os prejuízos no tempo. Os prejuízos dos próximos 60 dias seriam recuperados em um prazo de um ou dois anos, por exemplo.
EC – E isso procede?
Horta – Essa é uma visão muito clássica da economia já há algum tempo. É assim que se pensavam as grandes guerras. E ela tem um erro muito evidente, que é não contar com o fato de que os efeitos dessa crise serão potencializados, exatamente nas áreas urbanas, em países extremamente populosos e que isso gera um processo de desarranjo na economia muito maior do que o próprio sistema capitalista consegue repor. O que nós vamos ver nos próximos 60 e 90 dias será um processo de caos social no Brasil e em todos os países em que não houver medidas claras dos governos na proteção social.
EC – A crise do petróleo agrava esse caos? Essa disputa entre Rússia e Arábia saudita por preços no barril nos afeta?
Horta – Para nós essa disputa não vai influenciar muito porque estamos com os preços altos. Então se cair um pouco, talvez a Petrobras tenha algum prejuízo, mas consegue acomodar esse prejuízo sem maiores problemas.
EC – O país é autossuficiente?
Horta – Não somos mais autossuficientes desde que eles destruíram as refinarias que a Petrobras tinha. Inclusive, nós aumentamos a compra de derivados do petróleo dos EUA, de forma exponencial. Estamos perdendo divisas por conta disso, mas isso é outro problema. A questão do petróleo nesse momento não nos afeta de forma direta. Vai afetar certamente a Venezuela, Russia, Irã e Arábia Saudita. O Brasil tem um processo produtivo que corre ao largo da Petrobras.
EC – Mas falávamos do equívoco na concepção econômica e o senhor mencionou caos social…
Horta – Eles estão imaginando que vai cair uma tormenta. E que nesta grande chuva algumas pessoas vão morrer afogadas e depois nós nos reorganizamos, plantamos e semeamos tudo de novo e o sistema vai continuar como estava. Só que eles não imaginam o custo social disso. Porque nós vamos entrar num processo de caos social. Nós devemos entrar num processo e de violência extrema nos próximos 30, 60 dias, quando esse vírus atingir as populações mais pobres e mais carentes. Por enquanto, o maior número de casos reportados ainda é por hospitais como o Albert Einstein, que são de pessoas ricas que têm dinheiro para se internar ou de classe média. Daqui a apouco esses números já começam a refletir os casos que chagam nos postos de saúde. Profissionais de saúde serão atacados. Vai chegar um pai de família com uma criança, com um familiar para atendimento e não terá leito nem espaço para essas pessoas. E esse pai ou mãe de família não quer saber o que vai acontecer, pois estará movido pelo desespero. Os profissionais de saúde vão entrar em perigo e vai começar a desorganizar todo o processo de seguridade social, que já vinha, na realidade sendo destruído polo próprio governo Bolsonaro, que provocou gargalos de dificultação do acesso ao sistema. Só que de uma hora para outra ele precisa disso como nunca e não tem mais as ferramentas.
Agora, por exemplo, seria o momento do Ministério do Trabalho estar atuante na busca de soluções e ajudando o planejamento das respostas para compensação aos trabalhadores.
EC – São soluções de estado fraco, quando se precisa de estado forte? E o falecido Ministério do Trabalho faz falta nessas horas?
Horta – Exatamente. O coronavírus mostra que o capitalismo não consegue prever as coisas. O que o capitalismo prevê é o quanto de mais valia ele vai extrair do trabalhador no próximo ano. Mas ele não tem como prever o resto. E o mundo existe além disso. E quanto ao Ministério do Trabalho, faz muita falta sim. Agora, por exemplo, seria o momento do Ministério do Trabalho estar atuante na busca de soluções e ajudando o planejamento das respostas para compensação aos trabalhadores.
EC – E nem estamos falando de socialismo, um capitalismo com uma visão de bem-estar social daria melhores respostas, não?
Horta – Então, o segundo projeto, é esse projeto do Dória (João Dória, do PSDB, governador de São Paulo). É o projeto renovado da Itália. Porque a Itália tentou o primeiro, de Trump e Bolsonaro, e se deu muito mal. Que é o projeto de Social Distancing, a grande medida que eles estão criando. Inicialmente eles tentaram a mesma medida proposta pelo Bolsonaro e fizeram pouco caso das informações que estavam à disposição, só que não se deram conta que a população italiana era de pessoas muito mais velhas, num país latino, cuja cultura é justamente da proximidade, do beijo e do abraço. O vírus lá se disseminou de uma forma absurda. E agora eles tiveram de puxar o freio, pois se tornaram o país com a maior quantidade de mortos do mundo, ultrapassando inclusive a China. Eles perceberam que erraram e passaram para essa segunda forma de frear o contágio, que é a mesma que o Dória está tentando. Uma espécie de neoliberalismo humanizado. E é o Social Distancing, que os epidemiologistas tentam fazer para conter o agravamento do vírus. A premissa é de que nós todos vamos pegar e não tem outra forma, nem discussão. Isso só vai passar depois que tivermos imunidade enquanto grupo imunológico. Que é exatamente a premissa do primeiro. A diferença é que para conter o caos social, eles procuram estabelecer um número de infectados ao longo do tempo, dentro da capacidade de acomodação dos sistemas de saúde pelo mundo. A ideia não é evitar que as pessoas se contaminem, mas evitar que todas se contaminem ao mesmo tempo. Porque, caso contrário, vai ficar gente de fora desse sistema de saúde. E essas pessoas vão morrer e isso vai causar caos social. Essa é a segunda forma de um neoliberalismo humanizado, que pretende entender a crise também como passageira. Os esforços serão todos ad doc. Agora, se aumenta o número de médicos, se constrói tendinhas para que as equipes de saúde possam trabalhar, mas em nenhum momento pensam o processo de crise a longo prazo. E, tem essa visão mais humanizada porque percebe que os grandes perdedores dessa crise podem ser exatamente os indivíduos de classe média rica, urbana e mais velha das cidades. Então, todas as medidas são para proteger esse grupo. Se você parar para pensar as próprias medidas que o João Dória está lançando são para proteger a classe média, rica, urbana e mais velha das cidades.
EC – E a periferia?
Horta – Você não pode pedir para um pai ou mãe de família que mora na periferia, que tem cinco ou seis filhos morando em uma ou duas peças que fique em casa. Quando você assiste o Jornal Nacional, o Jornal Hoje ou qualquer jornal das grandes redes de TV aberta e vê eles ensinando como fazer exercícios dentro de casa via internet, não estão falando com a população, mas com uma parte. Grande parte da população não tem aquele cômodo para fazer exercícios e muitas vezes nem internet. A população mais pobre desse país não tem nem espaço para fazer confinamento, quem dirá exercícios.
A população mais pobre desse país não tem nem espaço para fazer confinamento, quem dirá exercícios
EC – Esses dias, num telejornal foi mostrada uma casa com um contaminado na periferia e mais de uma dezena de pessoas, sem condições de isolamento.
Horta – Eles acordaram para um problema que será generalizado daqui 30 ou 60 dias. Não há como conter esse vírus quando chegar às populações mais pobres. Viveremos um momento de caos social. Só que essa segunda forma mais humanizada do capitalismo, ela procura usar um outro léxico. A primeira forma é o léxico da guerra, de cunho militar, criando a ideia de inimigo. E o governo Bolsonaro tentou criar a ideia da China como inimigo e já estabeleceram essa ligação. Mas Dória não usa apenas o léxico da guerra, até porque esse léxico também é usado como o combate contra algo impessoal que é um vírus. Ele também usa o léxico da cidadania do amor, do respeito à vida para tentar dar uma cara mais humanizada para medidas que no fundo só vão beneficiar um pequeno grupo de classe média urbana. O resto vai ter de continuar trabalhando e vai morrer igual. O único objetivo deles é que isso tudo não leve a nenhuma mudança social. Estão com muito medo disso. Já vínhamos num processo de crise econômica continuada no mundo. Vínhamos num processo de guerra acelerado. E, agora, uma pandemia.
EC – Pode ser um momento histórico de grandes mudanças como houve nas primeiras décadas do século passado?
Horta – Há por conta de certos indivíduos que têm poder de decisão sobre vastas quantidades de recursos do mundo a percepção de que as coisas podem mudar de uma hora para outra. Nós estamos num momento de inflexão e de reflexão sócio-política como nunca tivemos no século 20, desde a segunda guerra mundial.
EC – Grandes mudanças ocorreram no período das duas grandes guerras. Podemos estar vivendo algo semelhante?
Horta – A primeira guerra, teve a gripe espanhola que aconteceu logo depois. O processo das crises econômicas de 1929 (grande depressão econômica) culminou na Segunda Guerra. Temos uma trajetória mundial ao longo de 30 anos que foi uma desconstrução das nossas formas de humanidade e de como se organizavam no século 19. Houve toda uma mudança, tanto que dali surgem os regimes socialistas de fato, que vamos encontrar especialmente na União Soviética.
EC – E até uma inflexão do capitalismo rumo ao estado de bem-estar social, não é?
Horta – Acontece essa inflexão do capitalismo e surge justamente em função, como consequência e alternativa à criação da União Soviética. Então, as coisas nunca mais foram como eram antes. E nós podemos estar vivendo um momento histórico desse tipo. Então, todo trabalho dos núcleos de poder do mundo capitalista, nesses dois campos de abordagem contra a pandemia, está mirando justamente em evitar que se criem as condições para o surgimento dessas novas percepções críticas e de novos modelos de combate a essa crise, os quais a China vem capitaneando. Por isso há um ataque, absurdamente criado pelo governo Donald Trump, copiado de forma acrítica e abestalhada pelo nosso governo, para criar na China a mácula de inimigo do mundo.
EC – A China que já está bastante avançada na busca de uma vacina e métodos de controle…
Horta – Eu expliquei as duas formas de combater essa crise adotadas pelo mundo ocidental e há uma luta entre esses dois modelos Herd Immunity e Social Distancing. Porém, nenhuma das duas formas prevê qualquer medida humana e efetiva para dar conta das necessidades do trabalhador. Na primeira é visto como algo dispensável e de fácil reposição, as pessoas. O que interessa é o número, não importando se é Maria, João, André o ser humano que morre. E, a segunda, de novo temos uma cara humana para as medidas, mas essa humanidade é para quem? Não é para o pobre, não é para o proletário. Essa humanidade é para a classe média, que está recebendo showzinho pela televisão. Que tem amplo acesso à internet de banda larga, nos celulares. Fica em casa assistindo séries ou buscando alternativas para abrandar e apaziguar os problemas físicos e psicológicos da quarentena. Só que é o seguinte: quatro filhos passando fome dentro de casa não é problema psicológico. E isso não está contemplado em nenhum dos dois projetos.
EC – E como é esse terceiro projeto?
Horta – O terceiro projeto é o que a China encabeça e que de alguma maneira alguns países já estão buscando, pelo menos, um pouco ou partes desse projeto para si. Que consiste na construção clara e evidente de barreiras contra essas crises que devem ficar cada vez mais comuns. Especialmente pandemias. E nesse projeto se tem um reforço do papel dirigente e organizacional do estado. Então a gente viu a China fazendo isso de forma muito clara, embora eles também tenham demorado a se dar conta do que era efetivamente o tamanho do problema. Mas depois os chineses agiram de forma modelar e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que as formas como China e Cuba atacaram o problema eram consideradas modelares. O segundo caso mais meritório é o caso da Coréia do Sul, que utilizou alta tecnologia para resolver o problema da crise. Não sei por que, até agora, o Brasil não criou um aplicativo para que as pessoas baixassem e colocassem ali os seus sintomas e já houvesse um mapeamento imediato com uma radiografia instantânea. A tecnologia já permite. Só que China e a Coreia já trabalham com isso há muito tempo. E um terceiro ponto fundamental que a China está trabalhando é o aumento das medidas de seguridade social. Lá ninguém está perdendo emprego, nem salário por estar em quarentena. Então, a possibilidade de termos lá algum desarranjo em termos sociais é muito pequeno. Agora, quando no meio de uma quarentena você acorda numa segunda-feira pela manhã e tem um decreto do governo dizendo que seu salário pode ser cortado por quatro meses fica muito claro quais são os grupos que estão sendo protegidos pelo governo e quais aqueles que estão sendo jogados na pandemia para que virem literalmente gado. Embora o presidente Jair Bolsonaro tenha voltado atrás, o que mostra que o seu próprio planejamento e sua própria forma de governo em nenhum momento contempla os trabalhadores e em nenhum momento contempla os cidadãos mais pobres. Aliás, em nenhum momento contempla nada do que aquele economicismo duro, que trata a todos como número e força de trabalho dentro de um processo econômico, rezando para que esse processo se refaça ali adiante e tudo volte a funcionar e todas as mazelas e os problemas do mundo sejam resolvidos pelo mercado.
EC – Por isso a iminência de caos?
Horta – Nós temos um processo violento a partir daí de caos social se instaurando se instaurando no Brasil em 60 dias. Porque nós temos um problema na oferta e na demanda. A nossa economia vai ser atacada pelos dois lados. As pessoas estão parando de produzir literalmente e também não terão mais condições de comprar. E, se o governo não atuar nas duas pontas. Se o governo literalmente não criar uma forma integrada de ação na economia, liberando as pessoas de pagar luz e água, para as populações mais pobres… De eliminar a necessidade de pagar os impostos imediatamente, exigindo de empresas que mantenham empregos mediante mecanismos de socorro financeiro.
EC – Principalmente as pequenas empresas, que estão menos assistidas e talvez nem tenham condições de reabrir depois da quarentena?
Horta – O problema é esse. O governo precisa focar cada vez mais em processos de proteção nas empresas pequenas, lá na parte de baixo da pirâmide empresarial. Não é nos bancos. Não é no grande empresário. Os grandes têm capital suficiente para passar um, dois meses, até mais, sem maiores problemas. Agora, aquelas empresas que são menores não têm reservas. Aquelas pessoas que tinham alguém trabalhando com elas estão com problemas para manter salários.
Nesse momento o ministério do trabalho estaria pensando como proteger os empregos, a estrutura e como as coisas acontecerem
EC – E são justamente as pequenas empresas as que mais empregam.
Horta – Exato. Justamente por isso toda a forma de pensar do governo está totalmente errada. Eles não só estão com a forma errada, como estão com pessoas mal preparadas pensando soluções. Além disso, destruíram as próprias ferramentas que haviam sido criadas há anos para proteger o país desse tipo de situação. Por exemplo, o Ministério do Trabalho. Nesse momento o ministério do trabalho estaria pensando como proteger os empregos, a estrutura e como as coisas acontecerem. Em como criar novas formas de produção para essas pessoas. Como garantir esses sessenta dias. De onde tirar recursos. Eles teriam todos os dados disponíveis. Os profissionais que já estavam trabalhando ali já saberiam como fazer, pois já tinham enfrentado isso, talvez não com tanta severidade, mas quando tivemos hiperinflação, quando tivemos a reorganização em função de planos econômicos nas décadas de 1980 e 1990. Haviam profissionais que tinham esses contatos. Toda essa rede de proteção foi desestruturada. Para nossa sorte essa pandemia não nos pegou daqui a uma ano. Porque se a coisa continuasse como estava, nós não teríamos nem SUS daqui a um ano. E, aí sim, o caos seria inda mais violento.
EC – Quais as perspectivas, então?
Horta – As perspectivas que nós temos a curto prazo são assustadoras. Veremos caos dentro das cidades. Vamos ver fome. Vamos ver violência. A proteção do estado não vai mais funcionar. Infelizmente, quando esse vírus atingir as populações mais pobres não haverá controle. E, ainda com ajuda de pastores evangélicos neopentencostais que continuam querendo lucrar em cima de qualquer coisa, teremos ainda, apesar das restrições recentes, já funcionaram como vetores de disseminação. Não vi ainda um pastor, com o seu dinheiro criar um hospital, que e possa atender aos fiéis que eles ficam sugando dízimos nos cultos. Ainda se fosse um sistema ao menos sustentável, em que do ponto e vista da ação de saúde. Digamos que existam 1.200 pessoas em um culto mas essa igreja tem um hospital que possa atender com 150 leitos, eles até poderiam justificar o funcionamento das igrejas as quarentenas, mas nem isso. O que eles fazem é ser vetores da doença e depois largam nas costas do estado, aliás o mesmo estado que eles defendem que não exista ou que seja mínimo. Esse processo não vai fechar. E daqui 30 ou 60 dias essa ruptura pequenininha vai se tornando cada vez maior. Em 60 ou 90 dias, a se continuar o que estamos vendo. Sabemos que Dória já ampliou a quarentena por mais 30 dias. No Rio de janeiro a mesma coisa. Brasília mais 15 dias.
EC – E as retiradas de direitos?
Horta – Num primeiro momento, quem está sendo usado é o trabalhador com antecipação de férias. Aliás, os sindicatos precisam começar a se organizar e dar respostas, porque eles estão tentando resolver crise com o dinheiro do trabalhador. Ali adiante nós vamos perder as férias. Ou seja, a primeira coisa que se faz é comprometer um direito que o trabalhador tem de se recompor do estresse do trabalho de um ano para ajudar o capitalismo nesse momento. E lá adiante o trabalhador que trabalhe mais um ano e oito meses para pagar isso. Todo o custo de reorganização fica nas costas do trabalhador formal.
EC – Sem contar as propostas que ferem os direitos inclusive dos trabalhadores da saúde, que estão na linha de frente.
Horta – A situação é que não temos armas, porque os governos dos últimos quatro anos vem destruindo toda e qualquer forma de organização do estado, do sistema de seguridade por meio de cortes. Trataram os pobres como criminosos. Criminalizaram a pobreza e o trabalho informal no Brasil. A pandemia chegou ao nosso país por conta das populações mais abastadas, que não cumpriram desavisadamente nenhuma das regras. Ficaram passando para as pessoas e postando vídeos na internet. E, agora o grosso da classe média se deu conta do tamanho do problema que está enfiada, incluindo aí setores da mídia, e estão pedindo “pelo amor de deus medidas” e outra parte da classe média permanece completamente alienada. Mas daqui a sessenta dias vão cair na real.
EC – E a classe médica mudando de posição, inclusive médicos que ocupam cargos executivos e legislativos.
Horta – A classe médica vai colapsar já, já, logo ali na frente. Conforme a OMS nós já temos um déficit médicos por habitantes no Brasil. Esse déficit é amainado nas cidades. Mas temos um Brasil profundo – pra usar um termo do Milton Santos – que não tem médicos. Nas capitais, eles aparecem um pouquinho melhor. O que vai acontecer nos próximos momentos é que essa pandemia vai pesar demais nos sistemas urbanos e esses médicos não vão suportar essa pressão. E não é porque eles não recebem bem. Eles até recebem. Quem recebe muito mal no Brasil são os técnicos e enfermeiros. Digo isso, porque a pressão vai ser enorme.
EC – E o sistema privado.
EC – Nem mesmo o sistema privado dará conta. Não há como suportar porque não há estrutura suficiente. Esses dias comentei com minha esposa: “imagina que você está se preparando para o natal e alguém vem na tua casa e te entrega duas mil bolinhas, que você é obrigado a colocar; e você não tem nem a árvore para colocar as bolinhas. Se tivesse árvore e não tivesse bolinhas para colocar tudo”. É isso, nós não temos estrutura para suportar. E, também porque as ferramentas que nos permitiriam isso – informação, mapeamento, organização, cadeias organizadas de atuação estruturadas nacionalmente – foram desmanteladas, destruídas ou precarizadas por um governo que achava que o mercado ia regular tudo e o resto que se exploda.
Não se discute se o capitalismo é bom, se é ruim, se é a melhor ou pior alternativa. O que coronavírus está ensinando ao mundo é que o capitalismo não é suficiente para os problemas do século 21
EC – Mas tem um aprendizado nisso, não?
Horta – O coronavírus está ensinando no mundo inteiro que o capitalismo não é suficiente. Não se está discutindo se o capitalismo é bom, se o capitalismo é ruim, se é a melhor ou pior alternativa. Não é isso. O que ficou evidente é que o capitalismo como ele é hoje não é suficiente para os problemas do século 21. E isso fica muito claro com a pandemia do coronavírus pois expõe a fragilidade do sistema. Vamos sair com uma sociedade totalmente transformada disso tudo. Agora, esse processo de transformação vai ser um processo doloroso. Vai ser um parto muito complicado. Muita gente vai ficar pelo caminho. E as perspectivas a curto, médio e longo prazo são terríveis. O que me impressiona, e que tem me deixado muito preocupado é que esse era o momento da esquerda brasileira, onde ela governa, especificamente, de marcar posição e fazer a diferença. Tomar medidas diferentes e com planos diferentes nas cidades e nos estados onde a esquerda governa. E o que se vê é todos seguindo a mesma cartilha. Achando bonito o Dória, que tá fazendo algo um pouco diferente, mas que não serve para as populações mais pobres, nem do proletariado. Pode ver que todas as medidas q eu são lançadas de alguma forma são excludentes, pois há grupos aos quais ela não se aplica.
EC – A indústria?
Horta – Pois é. O capitalismo deve achar que o proletário de chão de fábrica é imune. Ele não vai pegar a doença. Não vai acontecer nada. Então, o que estamos vendo é um grupo social que vai ter de suportar e pagar a conta.
EC – E mal-compreendendo que também existe um cyberproletariado que é esse pessoal de TI que mantém tudo conectado.
Horta – Aumentou em 40% o uso da rede. Pelo menos esse trabalho é mais seguro. Não se iguala em risco e exposição ao operariado chão-de-fábrica. É um operariado completamente diferente que pode trabalhar em regimes de maior segurança. Mas tem uma parte da população que não está sendo sequer olhada. A prova disso é quando você liga a TV e umas pessoas estão ensinando as outras como se exercitar em casa. Para elas não existe proletariado. Quando um governador ou um prefeito manda dar ordem de prisão para que não se saia de casa. Claramente esse gestor não dá mínima noção do que é morar com quatro ou cinco filhos dentro de um cômodo. É um político fora da realidade que não sabe nem o pais, estado ou município que governa.
O alto capital pensa dentro da lógica da Herd Immunity: ‘vai morrer gente, vamo embora’. Se morrer gente, maravilha, se contrata outras pessoas e daqui noventa dias está tudo resolvido
EC – Muitos setores da indústria seguem produzindo.
Horta – E nem vão parar, porque o alto capital pensa dentro da lógica da Herd Immunity: “vai morrer gente, vamo embora”. Se morrer gente maravilha, se contrata outras pessoas e daqui noventa dias está tudo resolvido. Ninguém tá procupado com a dona Zeffa ou com seu José. Com as vidas e histórias que vão se perder. Tudo é número e número se repõe. Ainda mais num mundo em que a mão de obra está baixíssima. E ninguém vai chorar por essas pessoas. Essa é que é a verdade. Nenhum senador. Nenhum deputado. Nenhum dono de empresa. Nenhum C.E.O. vai chorar. No máximo que vai fazer é mandar uma cartinha de condolências e era isso. O capitalismo segue. As pessoas estão completamente perdidas. E o que me impressiona é ver ainda, por conta desse êxtase apalermado, que que estamos vendo no Brasil, uma série de pessoas apoiando isso. Pessoas que não tem onde cair mortas. Pessoas que vivem do trabalho, do dia-a-dia, que plantam de manhã para comer de noite. Esse povo não se deu conta que está sendo colocado literalmente no abatedouro. São essas pessoas que estão sendo colocadas para morrer. É uma coisa impressionante o que estamos vivendo. E repito, a curto, médio e longo prazo, a tendência em países como o Brasil, onde temos um governo totalmente inepto, é de nós estrarmos num processo de violência extrema. Quando chegar nas populações mais pobres não terá mais como conter o caos. Pois tanto o ferramental que está sendo proposto por Dória, quanto por Bolsonaro, que são os dois projetos que estão rivalizando, são ambos insuficientes e incapazes de satisfazer os anseios dessa população. E vai descambar para a violência.
A alternativa autoritária está na manga desses dois projetos, tanto de Dória quanto de Bolsonaro
EC – E diante de um cenário de caos não se cria a alternativa perfeita para uma alternativa autoritária?
Horta – A alternativa autoritária está na manga desses dois projetos, tanto de Dória quanto de Bolsonaro. O Dória, inclusive, já avisou que vai botar a polícia a proibirem as pessoas de saírem e dar voz de prisão. Sempre costumo dizer que a mão invisível do mercado aparece sempre segurando um bastão para dar porrada na população, se ela não seguir as regras que está sendo imposta. Então essa opção autoritária ela vai acontecer. Só temos de lembrar o seguinte, os efeitos da pandemia são imunes aos processos de ideologia e até mesmo de ideologização de classes. Vírus não tem ideologia. Soldado mora em periferia. E quando a irmã dele, o pai a mãe, a esposa ou filhos, o vizinho caírem com a doença não adianta você mandar ele fazer o que for fazer porque ele vai ver a diferença.
EC – A história já mostrou isso.
Horta – E mostrou recentemente. Os tiros que foram dados no Senador Sid Gomes foram uma demonstração disso. Mesmo existindo uma situação de milicianos, o que há ali também para muita gente, é a percepção clara e evidente que a inflexão de classe ainda responde por parte dos problemas. Que esses indivíduos ainda que armados são de outros grupos que não os grupos que estavam no poder naquele estado. E aí você começa a ter essa inflexão de classes em todos os processos. E a pandemia traz isso à tona. Como na guerra. Se formos ler tudo o que foi produzido sobre os processos revolucionários no período entre guerras e como foi gestado na segunda guerra, dá para ver o tamanho do problema que estamos enfiados. Nós, porque estamos nessa sociedade e vamos sofrer isso. Mas as estruturas capitalistas do mundo também estão muito preocupadas com isso. Como eles vão agir a partir de agora não tenho a mínima ideia. Mas a carta do autoritarismo está esperando para ser usada. O quanto ela será efetiva num cenário de pandemia, de desestruturação da produção, de desestruturação da pequena seguridade social e a partir da incapacidade do estado em responder efetivamente pela segurança do cidadão é uma discussão que a gente pode ter.
EC – Uma resposta autoritária resolve?
Horta – Eu acho que ela não será efetiva. Uma coisa é você ter uma situação normal de uma situação normal, de uma sociedade civil produtiva e que de repente sofre um golpe e para imensa maioria das pessoas é só o patrão que está trocando. Não é mais um presidente. É um militar, maravilha, segue o baile. Outra coisa é viver uma situação como a nossa, em que o estado foi dilacerado nos últimos dois anos e de repente se requer que ele esteja atuante, funcionando, a pleno vapor para resolver os problemas da população. Nesse cenário, a opção de mais estado pelo lado da repressão agrava.
EC – E esse cenário de diversos setores questionando o presidente da República e até mesmo segmentos que deram apoio e sustentação à eleição e ao seu projeto de poder fazendo críticas severas. Inclusive muita gente até mesmo fora da oposição, falando em impeachment abertamente? O senhor acha que esse caldo político pode resultar num novo processo de ruptura?
Horta – Precisamos tomar três cuidados. Os questionamentos ao Bolsonaro vem de antes da pandemia do coronavírus. Desde o momento que se anunciou que a economia crescia e não estava crescendo sequer para repor o processo vegetativa da população ele entrou em colapso já. Ele vinha mantendo apoio porque não havia essa pressão organizada do lado de fora. Agora, mais do que atacar ou destituir Bolsonaro nesse momento temos de ver quais são as alternativas. E quais são? Nenhuma. Esse é o grande problema. Nós temos na estrutura dos três poderes do Brasil pessoas que estão lá colocadas que são totalmente insuficientes para os cargos que ocupam. Todos eles, Mourão, Alcolumbre, Rodrigo Maia, até os ministros do STF são todos insuficientes.
EC – Num quando de meodiocridade institucional em que vivemos, o que a história nos diz?
Horta – Nós vivemos uma mediocridade coletiva nos nossos cargos dirigentes que é apavorante. E a pergunta é essa: quem vai resolver o problema? Se fosse a Roma antiga existia uma função de estado chamada ditador, e é daí que vem o termo, que era o indivíduo que recebia todo o poder do império para enfrentar crises e guerras. Momentos exatamente como o que estamos vivendo. esse sujeito era chancelado pelo senado e recebia os poderes de estado por seis meses e não podia ser renovado. Obviamente esse indivíduo era pago, uma espécie de gerente de crise. Tinha uma grande quantidade de informações. Eram pessoas devidamente capazes para fazer esses processos. Nós não temos nada parecido no sistema capitalista e nem na democracia. Se existe uma coisa que a democracia tem como falha é a incapacidade de respostas na crise. As respostas que a democracia traz, especialmente em crises rápidas como guerras e pandemias. São bastante falhas do ponto de vista da efetividade dos seus resultados. Mas ainda assim são melhores que as outras respostas que temos à disposição.
EC – Se Bolsonaro sair melhora o quadro?
Horta – Sinceramente eu não consigo ver hoje um ganho efetivo em tirar Bolsonaro ou manter Bolsonaro. Não consigo pensar isso. Aliás, o peso de mais uma remoção traumática em nosso sistema político é bastante complicado. As pessoas que tiraram Dilma Rousseff deveriam ter pensado nisso. A questão é, nossos pactos sociais e políticos estão afetados por um período de cinquenta a cem anos. Nós vamos começar a entender a importância de se manter instituições como eleições só daqui a um bom tempo. E o que vamos fazer agora, vamos fragilizar de novo o nosso processo democrático? Este indivíduo que vai entrar, ele entra em que sentido? Ele não entra fragilizado? O próximo presidente não vai enfrentar os mesmos problemas que se viveu aqui? Desde o momento em que Aécio Neves levantou a boca para dizer que não aceitava o resultado das urnas e que ficaria na oposição e não permitiria que Dilma governasse nós entramos nesse looping de erosão das nossas instituições que está nos cobrando um preço bastante caro. Ainda não sei o preço que nós vamos pagar. Agora, pouquíssimas pessoas na sociedade conseguem perceber esse elo. A maioria ainda está achando que as culpas são de A ou de B e não está percebendo que estamos entrando num processo degenerativo das nossas instituições.
EC – Muito dedo para apontar culpado e pouca seta para indicar a solução?
Horta – Exatamente. Essa busca de culpados encontra cenários positivos apenas na luta político-eleitoral. Mas não nos resolve a longo prazo enquanto sociedade.
EC – Foi mais ou menos isso que parte da esquerda ao não se dar conta do que estava acontecendo contribuiu para a queda da presidente Dilma?
Horta – O processo de impeachment contra a Dilma se deu muito claramente quando houve o voto de três deputados dentro do conselho ética contra o Eduardo Cunha. Esses deputados eram do Partido dos Trabalhadores e se rebelaram contra a decisão do partido. E o PT havia pedido internamente que eles não votassem contra o Eduardo Cunha naquele momento que era de extrema fragilidade e eles chutaram o balde, se rebelaram e votaram. Isso foi pela manhã e por conta disso o Eduardo Cunha, à tarde aceita o pedido de impeachment mais débil entre todos os dezessete que ele tinha à disposição, que era o da Janaína Paschoal. E deu no que deu. [Nota do redator: os deputados referidos eram Zé Geraldo (PA), Leo de Brito (AC ) e Valmir Prascidelli (SP)]. Em política, as tomadas de decisões tem de ser tomadas com algo mais do que o fígado. Sou particularmente contra essa política de DCE que a gente vê acontecer nas esferas onde se deveria praticar a grande política. Mas infelizmente essas pessoas que ainda não saíram da política estudantil elegem seus inimigos como se o mundo fosse dividido meramente entre brancos e pretos, ricos e pobres, bons e maus e o resto que se exploda. Há muito mais do que isso. Existe uma micropolítica que tem uma influência enorme nas questões macropolíticas. Estamos pagando um preço enorme porque as pessoas que estão lá colocadas não estão à altura dos acontecimentos.
EC – E se não tivessem confrontado Cunha?
Horta – Como historiador não me permito fazer a retórica do “se”, porque as alternativas se perdem no emaranhado do tempo. Eu prefiro ver, na atual situação com esses atores que caminhos nós temos? Eu vejo muita angústia nos próximos noventa dias no Brasil e os próximos dois ou três anos em termos de mundo. Vamos precisar nos organizar muito enquanto grupos para defender nossos direitos, porque o mundo está mudando. E, é nos momentos de mudança que podemos fazer os grandes avanços ou os grandes retrocessos. Estou com muito receio dos próximos 90 dias no Brasil.
Edição: Extra Classe