O professor de direito constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano lançou a campanha Vidas Iguais, que defende a liderança do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro na coordenação de todos leitos dos hospitais, públicos e privados, durante a pandemia do novo coronavírus no Brasil.
Em entrevista a Opera Mundi, o autor do livro Autoritarismo e Golpes na América Latina (Alameda) disse que a campanha se baseia juridicamente no art. 5º da Constituição Federal, que prevê que poder público em casos de emergência ou calamidade pública possa requisitar bens, serviços e instalações necessárias para poder realizar o atendimento à população.
"É como se fosse um empréstimo compulsório", explica. "Estou propondo que este instituto seja utilizado para efeito de requisitar os bens privados de todos os leitos", afirmou Serrano.
O professor explica que outros países da Europa, como Itália e Espanha, adotaram a medida. No entanto, ele ressalta que a decisão foi tomada tardiamente, um atraso que ajudou a provocar o caos no sistema de saúde.
"Uma parte da complicação que vemos lá, dessa crise imensa que eles estão vivendo, de não conseguir controlar a epidemia, é por conta de ter atrasado nesta medida", disse.
Serrano defende que tal medida deve ser adotada imediatamente para evitar que o sistema brasileiro entre em colapso.
"Essa medida deve ser adotada agora, em um período anterior da pandemia atingir intensamente as periferias. Pois até você estruturar o SUS para esse gerenciamento, fazer acordo com hospitais privados e organizar esse sistema, demora um tempo", pontuou.
Leia entrevista na íntegra:
Opera Mundi - O sr. lançou a campanha #vidasiguais defendendo que o SUS assuma a coordenação de todos os hospitais, públicos e privados, durante a pandemia do coronavírus. Como seria isso?
Pedro Serrano - Na realidade, a ideia é muito simples, embora nós já tenhamos todo o instrumental jurídico para realizá-la. E é natural, eu diria que é até uma medida natural para este tipo de momento. Acredito que os próprios agentes estão aguardando isso ocorrer.
Nós temos uma média de a cada 10 mil habitantes, 2,6 leitos, o que não é tão ruim, embora haja uma má distribuição geográfica. Você tem 25% da população brasileira que tem convênio médico ou dinheiro para pagar o serviço de saúde. Esses 25% têm disponíveis para si 56% dos leitos de Unidade de Tratamento Intensiva (UTI) disponíveis, são cerca de 44 mil leitos ao todo. Enquanto isso, 3/4 da população tem disponível para si 44% dos leitos de UTI, que são os leitos públicos, do Sistema Único de Saúde (SUS) e conveniados. Ou seja, nós temos um problema estrutural na saúde que é a desigualdade social, que vai se manifestar nessa delicada questão que são os leitos de UTI nessa síndrome do coronavírus e que significam fundamentalmente vida.
A chance de um indivíduo sobreviver, que tem uma complicação do coronavírus, é o leito de UTI. Em uma hipótese de você ter um chamado caos no sistema de saúde, o leito de UTI é a chance de qualquer um sobreviver. Então, a ideia é que não haja essa divisão. Que o SUS passe a controlar e gerenciar todos esses leitos, em uma fila única. Em uma fila única para a sua utilização. Ter um gerenciamento único e estatal dos leitos de UTI é algo absolutamente fundamental para você poder enfrentar a pandemia, não apenas para realizar de uma forma mais justa a ideia de que uma vida por ter dinheiro não vale mais do que uma vida que não tem.
Além da ideia de justiça, a própria necessidade do combate à pandemia leva você ter uma centralização das possibilidades de uso e critérios para utilização desses leitos, com critérios baseados na vida e não no dinheiro. Portanto há uma necessidade pública de conter a pandemia que depende de você ter capacidade de gerir todo seu universo de leitos centralizadamente.
Por que isso é importante? Uma medida dessa não seria complexa demais no meio da epidemia?
Não, na realidade é uma medida própria para uma pandemia. Ela é o tipo de medida que serve justamente como mecanismo de solução para problemas da sociedade em momentos de crises e pandemias. É o que nós chamamos no direito de "legalidade extraordinária". Ela é uma medida própria para a situação. Medidas semelhantes foram adotadas na Irlanda, na Itália e na Espanha. Agora começam a ser adotadas também nos Estados Unidos, mas ela é semelhante, é requisição administrativa E pelo menos na Itália e na Espanha, do que eu observei, há uma crítica de que se demorou para adotar essa medida. Uma parte da complicação que vemos lá, dessa crise imensa que eles estão vivendo, de não conseguir controlar a epidemia, é por conta de terem atrasado a adoção desta medida.
Os três países europeu adotaram uma medida até mais radical do que a que estou propondo, fizeram a estatização provisória dos hospitais e também das empresas farmacêuticas, na produção de remédios, o que nós aqui no Brasil não precisamos, pelo menos por enquanto, creio eu. Nós podemos utilizar desse instituto jurídico que eu falei para que o SUS gerencie apenas os leitos, os serviços inerentes a eles, os equipamentos, as instalações e o pessoal. OU seja, requisitar serviços, bens, instalações e pessoal relacionados aos leitos, assim você não precisa pegar o hospital como um todo.
Qual o mecanismo legal que permitiria essa medida?
O mecanismo legal é previsto no parágrafo 25 do art. 5º da Constituição Federal, é a primeira previsão, que fala justamente do instituto da requisição. É um instituto antigo do direito administrativo, que estabelece que o poder público, em situação de emergências ou calamidade pública, pode requisitar bens, pessoal e serviços de instalações para atender a emergência ou calamidade pública, indenizando posteriormente. Ou seja, indenizando após acabar o estado de calamidade pública. Portanto, é como se fosse um empréstimo compulsório. Eu estou propondo que este instituto seja utilizado para efeito de requisitar os bens privados, de pelo menos os leitos de UTI, embora eu acho que tenha que ser requisitado todos os leitos, não só o de UTI. É óbvio que essas requisições podem ser em etapas, requisitando primeiro os leitos de UTI e depois os outros.
E o critério administrativo de como isso é feito cabe ao SUS estabelecer. O mecanismo legal é um instituto próprio da legalidade extraordinária, que é a legalidade que existe nos tempos de emergência, como o que nós estamos vivendo.
Esse instrumental jurídico é bem prático e muito utilizado. Além da Constituição Federal, há previsão dessas medidas na lei ordinária de decretação da calamidade pública e nos decretos dos governadores e do prefeito de São Paulo. Há assim uma ampla previsão legal, não há muita dúvida do âmbito da sua legalidade. Esse que seria o instrumento, a requisição administração dos leitos, dos demais equipamentos que são necessários, do pessoal e das instalações para que o SUS teria de gerenciar.
Quando você acha que essa medida deve ser adotada?
Essa medida deve ser adotada agora, antes que a pandemia atinja intensamente as periferias. Pois, até você estruturar o SUS para esse gerenciamento, fazer acordo com hospitais privados e organizar esse sistema, demora um tempo. Se a gente for esperar, vamos dizer, espalhar a pandemia para aí tomar uma medida como essa vai ocorrer o mesmo problema que ocorreu na Europa, a adoção tardia da medida. A pandemia está chegando às periferias de São Paulo e acho que a medida tem que ser imediata nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
Edição: Katia Marko e Opera Mundi