Rio Grande do Sul

PANDEMIA

Bolsonaro aposta no caos para impor medidas autoritárias, alerta Valdete Souto Severo

Para a juíza do trabalho, Bolsonaro está se aproveitando da pandemia para retirar direitos dos brasileiros

Sul 21 | Porto Alegre |
A juíza do trabalho Valdete Souto Severo fala sobre a situação trabalhista e o enfrentamento ao coronavírus - Guilherme Santos/Sul21

Após o governo federal editar a Medida Provisória 927 alterando regras trabalhistas para o enfrentamento do coronavírus no Brasil, uma série de entidades de profissionais que atuam na área do Direito Trabalhista e em defesa dos trabalhadores divulgaram uma nota alertando para o risco de um golpe de estado estar em curso no Brasil, uma vez que, com as medidas excepcionais que estava implementando, o presidente Jair Bolsonaro estaria apostando no “caos social”. A medida mais criticada da MP 927 era a autorização para a suspensão de contratos de trabalho por um período de quatro meses sem remuneração. Diante da repercussão, Bolsonaro recuou da medida no dia seguinte.

Na última quinta-feira (26), o Sul21 conversou por telefone com a juíza do trabalho e integrante da Associação Juízes para a Democracia, uma das entidades signatárias, para entender os motivos que levam as instituições a alertarem para a possibilidade de Bolsonaro promover uma ruptura autoritária aproveitando o avanço da epidemia de coronavírus pelo País.

“É  muito mais fácil fazer valer, inclusive com uma certa aquiescência, uma certa cumplicidade da maioria da sociedade a uma ordem autoritária quando se está numa situação caótica”, alerta Valdete. “Esse aproveitamento da crise sanitária para retirar ainda mais direitos sem que ninguém se oponha claramente a isso, para mim, é uma demonstração bem evidente de que a gente está caminhando para uma forma mais totalitária de gestão do estado”.

A conversa também aborda os impactos trabalhistas das medidas apresentadas na MP e o que poderia ser feito para proteção da classe trabalhadora enquanto durar a crise sanitária. Como a entrevista foi feita antes da Câmara dos Deputados aprovar uma medida emergencial de renda básica, a conversa foi complementada posteriormente. Confira a íntegra a seguir.

Sul21: O que leva as entidades signatárias a acharem que há a possibilidade de uma escalada autoritária e de um golpe de estado pelo presidente Bolsonaro?

Valdete Souto Severo: Diante da crise sanitária que a gente está enfrentando, o governo teria duas opções: uma era dar auxílio social, acomodar as tensões e deixar as pessoas mais tranquilas para enfrentar um momento tão ímpar como que a gente está vivendo; e a outra seria deixar as pessoas abandonadas à própria sorte. Isso é um caminho que é mais ou menos uma aposta no caos social. Porque, numa sociedade capitalista, em que a maioria das pessoas depende do trabalho para sobreviver, uma quarentena como essa, que é necessária, indispensável em função do desse vírus cujos efeitos a gente sequer sabe bem quais são sobre o organismo humano, essa quarentena significa simplesmente interromper a lógica de produção para consumo e para troca. Num momento como esse, se o governo aposta em precarizar ainda mais as condições de quem vive do trabalho, ele está apostando no caos. E o caos, a história nos mostra, é tudo que se precisa para poder vender uma ideia autoritária, porque as pessoas ficam desesperadas, ficam sem saber para que lado andar. Então, é muito mais fácil de aceitar medidas extremas como, por exemplo, o cancelamento de eleições — aliás já falaram em cancelamento das eleições municipais desse ano –, fica muito mais fácil adotar medidas de exceção como algumas que estão sendo adotadas, inclusive não só em nível federal, mas também em nível estadual e municipal. Fazer, por exemplo toque de recolher, que são medidas que muitas vezes extrapolam o que seria necessário para a contenção do vírus e que acabam sendo, de certo modo, naturalizadas porque as pessoas perdem um pouco o parâmetro do que é o limite de medidas que poderiam ser adotadas num momento como esse. Então, quando a gente enxerga, especialmente no governo federal, uma clara opção pela precarização, o que se vislumbra no horizonte é exatamente essa vontade de promover uma tensão social tamanha que, a partir de então, qualquer medida seja possível, porque os parâmetros de convívio democrático se perdem completamente. E a MP 927 e a 928 são trazem isso de forma muita clara.

A 927 fala de medidas trabalhistas para enfrentar o estado de calamidade pública, que é como o governo chama. As medidas ali não têm absolutamente nada de proteção social, não se fala em garantia contra despedida, não se fala em renda mínima, não se fala em redistribuição de riquezas de quem tem realmente condições de devolver um pouco do que auferiu de vantagem financeira nos dois últimos anos. A gente sabe que as instituições financeiras tiveram lucros de bilhões em 2019, mesmo em meio à toda crise econômica. Não há uma linha sobre uma ajuda que esses beneficiados do capital teriam que dar num momento como esse. Não, a única preocupação da MP 927 é em facilitar a vida das grandes empresas, porque, na verdade, as pequenas empresas não vão ser beneficiadas com medidas como extensão de jornada na área da saúde, suspensão de fiscalização de normas de segurança e saúde no trabalho ou com a declaração de que contrair a Covid-19 não é doença ocupacional. São medidas que ou são inócuas ou atendem o anseio do grande capital e deixam sem nenhuma proteção, tanto quem trabalha, quanto os pequenos e médios empregadores, que são aqueles que realmente geram emprego no País. Então, quando a gente vê o texto da 927, a única conclusão que se tem é que existe uma aposta na ruptura completa do tecido social. Imagina aquele artigo 18, que depois foi revogado na MP 928, mas que o governo já anuncia que vai ser objeto de uma nova Medida Provisória e o que se diz é que ou vai haver o pagamento de metade do salário durante o período de suspensão do contrato ou apenas a percepção do seguro-desemprego, que, na verdade, usa fundos que são da própria classe trabalhadora, porque usa fundos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Essa é uma aposta em deixar as pessoas numa completa desproteção, numa situação de impossibilidade de saber se vão ter dinheiro suficiente para comer na semana seguinte. É evidente que, se tu coloca uma sociedade inteira numa situação dessas, as pessoas vão começar a perder…A gente aprende nos livros do Saramago que as pessoas colocadas em situação extrema como essa vão começar a reagir de forma pouco ordeira. E qual é a consequência? Numa das suas falas, o presidente disse que “essa histeria coletiva pode ocasionar saques em supermercados”, dando a entender que é a campanha para que as pessoas fiquem em casa que pode gerar o casos. E é exatamente o contrário. Se o governo diz que é possível as pessoas serem confinadas nas suas casas por até quatro meses sob uma lógica de adiantamento de férias ou de feriados e sem perceber salário, ele tá jogando essas pessoas numa condição em que, daqui a pouco, elas não vão ter opção que não seja saquear supermercados. E aí, quando elas fizerem isso, é muito mais fácil vir o discurso de ordem e dizer “já que estão ocorrendo saques em supermercados, é preciso uma força estatal que comande esse caos”. Isso a história nos mostra.É  muito mais fácil fazer valer, inclusive com uma certa aquiescência, uma certa cumplicidade da maioria da sociedade a uma ordem autoritária quando se está numa situação caótica. E a MP 928 também é um indicativo claro disso porque ela tem dois propósitos: um é revogar o artigo 18 da MP 927, que na verdade não retira o efeito lesivo dessa Medida Provisória e já tem o anúncio de que alguma coisa virá em seu lugar, e o outro é suspender a exigência de prestar informações com base na Lei de Acesso à Informação por parte do governo federal. Quer dizer, isso é uma medida claramente autoritária que indica que há razão nessa suspeita que temos, nessa ideia que surge a partir dessas medidas do governo, de que está em curso um golpe de estado no nosso País.

(A entrevista foi gravada antes da Câmara dos Deputados aprovar o projeto que estabelece uma renda básica emergencial para autônomos e famílias de baixa renda. Em razão disso, a juíza foi contatada para complementar sua resposta e a avaliar a medida nos termos que foi aprovada).

Valdete: A aprovação é urgente e necessária e é incompreensível que se demore tanto para aprovar. Por que isso não sai por Medida Provisória? Por que tem que ser iniciativa do Congresso uma renda mínima, e ainda assim com resistência do governo, porque o governo queria que fosse 200 reais por pessoa e foi aprovado 600. É uma medida que já se faz retardada no tempo, porque as pessoas já estão passando fome. Essa falta de agilidade, e resistência do governo mesmo, porque poderia ter colocado na Medida Provisória, já que gosta tanto de fazer MPs, aliada a essa verdadeira campanha que o presidente deflagrou para que as pessoas saiam do isolamento físico pode custar muito caro para o Brasil nos próximos dias e nas próximas semanas. De qualquer forma, é positivo. Ainda assim, é uma medida de valor extremamente baixo, porque, no mínimo, a garantia tinha que ser de um salário mínimo por pessoa.

(A seguir, continua a entrevista tal como feita na última quinta-feira, 26). 

Sul21 – Foram apresentados pedidos de impeachment recentemente e artigos de jornais sugeriram a renúncia do presidente. Nesse momento, a senhora acha que é mais provável que ele dar um golpe de estado ou deixar o poder?

Valdete: Na verdade, eu nem tenho condições de dizer se eu acho que é mais fácil que ele permaneça e se consolide como líder autoritário ou que ele caia. Mas eu acho que o problema não é bem esse. O problema é que ele não está isolado nessa vontade de gerir um governo de exceção. Esse é o problema. A gente pode imaginar os dois cenários. Se ele consegue permanecer, apesar de tudo, porque, veja, o pronunciamento que ele fez [na terça-feira, 24] é um pronunciamento assustador sob qualquer perspectiva, não tem como justificar racionalmente que um líder de governo fale da forma como ele falou para a população brasileira. E, até agora, nada aconteceu. Então, cenário um, ele se mantém no poder de algum modo e se fortalece como o líder de um estado de exceção. Mas tanto nessa situação, quanto na situação dele cair, ser afastado ou sofrer um impeachment, ele não está sozinho nessa lógica de apostar no caos. A redação da MP 927 não é dele, é do ministro da Economia. A gente tem outros atores, o Rodrigo Maia, por exemplo, anunciando que é preciso converter as medidas provisórias em lei, mesmo fora do rito que tem que ser observado pela Constituição, e dizendo que vai propor redução de valor de salário de servidores. Ou seja, a gente tem pessoas diversas em diversos postos de poder que estão apostando na mesma coisa, porque nenhum deles, nenhuma das instituições ditas democráticas têm se pronunciado com veemência para dizer: ‘Olha, o momento agora não é de apostar em mais reforma trabalhista, em mais retirada de direitos, é o contrário’.

Agora é preciso, inclusive olhando para os exemplos de outros países, garantir renda mínima, permitir que as pessoas fiquem em casa e recebam a totalidade da remuneração, distribuir alimentos e medicamentos, etc. Não há, se tu parar para perceber, ninguém, de nenhuma instituição, dizendo isso com clareza. Não há ninguém defendendo, por exemplo, com clareza e objetividade, que se acelere a regulamentação da regra constitucional que fala sobre o imposto sobre grandes fortunas. Não há ninguém defendendo que instituições financeiras ou que aquelas 200 famílias mais ricas do País e que detém não sei quantos porcento do PIB nacional deem a sua contribuição para que as pessoas que não têm como sobreviver possam sobreviver com dignidade durante o período de pandemia. Então, na verdade, o ponto para mim é que a queda ou não do Bolsonaro não vai resolver o nosso problema. O Bolsonaro não é o Bolsonaro, ele é uma equipe de pessoas, em diferentes lugares de poder, que estão todas direcionadas para uma mesma ideia, que é uma ideia autoritária e perversa, muito mais no sentido de retirada de direitos sociais do que de qualquer outra coisa. Isso que chamam de agenda ultraliberal é uma aposta numa economia que já não funcionou em tempos anteriores, que é uma economia de concentração de renda e de produção de miséria para quem vive do trabalho, não é feita por ele, nem exclusivamente, nem principalmente. Então, o problema eu acho é que, tudo bem ele estar na berlinda agora, mas ele ser afastado ou não do governo vai mudar muito pouco o cenário que a gente tem. Teríamos que tirar toda uma estrutura de poder, porque, bem ou mal, o vice-presidente não rompe com o discurso que ele faz, o ministro da Saúde não rompe com o discurso que ele faz, o ministro da Economia não rompe. Quer dizer, todos eles, de algum modo, silenciam em nome de reformas que dizem necessárias e que vão no mesmo sentido de promoção do caos social. Então, esse aproveitamento da crise sanitária para retirar ainda mais direitos sem que ninguém se oponha claramente a isso, para mim, é uma demonstração bem evidente de que a gente está caminhando para uma forma mais totalitária de gestão do estado.

Sul21 – A jornalista e escritora Naomi Klein cunhou a expressão “doutrina de choque”, que ela usa para se referir a momentos de crise, de dramas humanitários, em que governos liberais se aproveitam para implementar uma agenda cada vez mais radical de retirada de direitos. Aconteceu isso, por exemplo, nas enchentes de Nova Orleans. Pelo que a senhora vê, é isso que está acontecendo? Tu percebe que o governo está aproveitando o momento para destruir o pouco que restava das garantias trabalhistas?

Valdete: Eu acho que é isso e com um componente novo. O que a Naomi Klein aponta e o que é a experiência histórica que nós temos é que em momentos de pós-guerra ou de guerra, momentos em que a humanidade estava realmente desestruturada, houve esse aproveitamento. Só que agora a gente está numa realidade diferente e acho que é mais profunda ainda a perversidade, porque agora a gente está diante de uma doença que a gente não sabe bem ainda o que vai provocar na humanidade. Se tu olhar, por exemplo, o número de mortes que têm na Itália e o fato de que eles não estão conseguindo controlar, que não são só os grupos de riscos que estão sendo atingidos, mostra que, daqui a pouco, essa doença pode, inclusive, ter um efeito que ainda não está completamente dimensionado. Então, por que eu acho que isso é pior? Porque agora a gente está diante de uma ameaça concreta à possibilidade de continuidade de vida humana na terra. E, mesmo assim, a lógica capitalista de aproveitar esse momento para aguçar ainda mais, o que eu acho que é característica objetiva do capital, não é nenhuma novidade, por isso que a Naomi Klein consegue detectar que esses são momentos que se aproveita da crise para promover uma receita mais liberal de convívio social. Porque, na verdade, a sociedade capitalista faz isso. Esse é o objetivo do sistema. Se é um sistema em que todo mundo é tratado como mercadoria, tanto as pessoas, os seres vivos, quanto à natureza, é muito mais razoável que esse sistema desconsidere a humanidade das pessoas no momento em que ele tem que fazer uma opção. E aí, nesse ponto, a fala do Bolsonaro é muito clara e muito coerente, inclusive, com tudo que ele diz desde que ele era candidato. Quando ele diz, ‘Bem, as pessoas vão morrer, mas a economia é o que importa’, ele está, na verdade, traduzindo um pensamento que não é só dele.

O que eu quero deixar claro é que isso é um pensamento que é próprio do sistema que a gente vive. É próprio do capitalismo. Porque o capitalismo faz exatamente isso. Se a principal relação social que a gente tem no capitalismo é a relação em que uma pessoa se vende para outra para conseguir dinheiro para poder pagar aquilo que ela precisa para sobreviver, esse é um sistema que facilita que, num momento de crise, não se enxergue a humanidade das pessoas ou a necessidade de preservar a vida humana, e, sim, que haja uma preocupação, que não é só do presidente, várias pessoas compartilham com ele, de que é preciso salvar a economia mesmo que isso signifique a vida de milhões de pessoas.

Então, acho que o diagnóstico dessa autora está certo, mas o que eu acho é que o temos que perceber é que talvez agora a gente esteja, digamos, numa fase posterior, mais aguda ainda. Me parece que nunca foi tão claro o que é a espinha dorsal do sistema capitalista como agora. A ponto da gente estar diante de uma doença que pode dizimar parte da população mundial e estejamos preocupados, especialmente em países que tem governos liberais como o nosso, em saber como a gente vai fazer para que a economia não pare de funcionar. E não é nem para que a economia não pare de funcionar, e não é nem para economia não parar de funcionar sobre outras bases, porque a preocupação não é se as pessoas vão ter alimento para comprar no supermercado, ou se vai ter remédio na farmácia, a preocupação é que as empresas não podem quebrar. Claro, cada país reage de forma diferente, mas aí fica muito claro que, no nosso caso, além de tudo a gente tem um governo que não tem mesmo uma preocupação minimamente humanitária. Além de ter uma lógica liberal de raciocínio, e aí eu já acho que o liberalismo já leva mesmo a desconsiderar séries humanos em favor da economia, mas, além disso, ainda tem uma perversidade que para mim está melhor traduzida naquela parte da fala do presidente quando ele diz assim: ‘Sim, as pessoas têm doença e pessoas de mais de 80 anos podem morrer e isso faz parte da vida’. Ou seja, ele está dizendo claramente que existem seres humanos que são descartáveis. E isso é levar ao limite máximo essa característica do sistema capitalista. O sistema capitalista não é para todo mundo. E, se a gente tinha essa ilusão, agora esse episódio da Covid-19 está mostrando que realmente é uma ilusão. O sistema capitalista não é para todo mundo e quem o defende com unhas e dentes não disfarça esse fato.

Sul21 – Voltando à questão trabalhista, embutida nessas MPs, nessas propostas do governo, tem uma espécie de minirreforma trabalhista ou até não tão mini assim. Mudanças em regras de teletrabalho, mudança em diversas regras trabalhistas. Existe a possibilidade de mudanças trabalhistas serem temporárias ou medidas que estão sendo implementadas vão acabar sendo permanentes no pós-crise?

Valdete: Essas medidas não enfrentam a crise, elas não fazem nenhum sentido sob nenhuma perspectiva, nem pela perspectiva estritamente econômica as medidas da MP 927 fazem sentido para combater uma crise. Porque elas não estão falando, sequer, em salvaguarda das empresas. Não tem uma linha na MP 927 que auxilie financeiramente pequena empresa, por exemplo. Então, não faz nenhum sentido. Se não faz nenhum sentido, a única conclusão é que a gente pode chegar é que se trata de um aproveitamento do momento. Utilizou-se desse momento em que existe essa crise sanitária para fazer a reforma que já estava na agenda. Não é toda a reforma que estava na agenda, porque existem mais coisas, mas é corresponder a uma vontade que já existia por parte do governo, que nunca foi escondida, já estava no projeto desse governo retirar mais direitos, fragilizar mais a jornada, permitir extensão de jornada de trabalho e redução de salário. Então, agora o que houve foi simplesmente aproveitar o momento para poder fazer com que essa reforma fosse feita de forma mais rápida. Se isso é verdade, elas não serão temporárias. A MP 927 vai no mesmo sentido da 905, que tem lá pelo meio questões trabalhistas, e todas no sentido de descosturar a noção de vínculo de emprego, acabar com a limitação da jornada e permitir redução dos patamares de remuneração.

Sul21 – Tem alguma proteção que o trabalhador teria para que, passada a crise, ele possa recorrer de demissões injustas, de reduções de salários? Há alguma proteção para o trabalhador contra eventuais medidas que se tome nesse momento?

Valdete: Em tese, sim. Porque ele vai discutir, inclusive, formalmente essas medidas, já que, em tese, não é possível fazer regulação de regra trabalhista por medida provisória. Ele vai poder discutir essas medidas do ponto de vista de constitucional, porque elas afrontam a Constituição. Tu imagina, a regra do artigo 26 da MP 927 diz que é possível estender jornada para além de 12 horas, dando a entender que há possibilidade inclusive de jornada de 24 horas. Isso evidentemente vai poder ser questionado junto à Justiça do Trabalho posteriormente. A grande questão é que a descostura está sendo tão grande desde a reforma trabalhista de 2017 que os parâmetros vão se perdendo. Tu alia isso ao fato de que a gente tem uma magistratura trabalhista conservadora, cuja forma de seleção foi alterada nos últimos anos, com a concentração do concurso público em Brasília e com a realização de concursos técnicos, inclusive com a valorização da remuneração dos magistrados, atraindo pessoas que talvez nem tivessem tanta identidade assim com o Direito Social. Então, se tu colocar tudo isso em conjunto, embora haja a possibilidade de questionamento futuro, tem também o risco grande de que essas alterações acabem sendo, de algum modo, assimiladas pela jurisprudência e aí a gente vai ter, realmente, um Direito do Trabalho completamente desfigurado, que vai perder inclusive o sentido. Porque o Direito do Trabalho historicamente só faz sentido se ele impõe limites e tensiona a ordem do capital. Se ele é mais um Direito para resguardar os interesses de quem detém o capital, ele se soma ao Direito Civil, ao Direito Comercial, mas, como Direito do Trabalho, já não faz mais sentido.

Sul21 – Que medidas a senhora acha que deveriam ser tomadas ou que seriam possíveis de serem tomadas nesse momento que pudessem dar mais garantias e salvaguardas ao trabalhador nesse momento?

Valdete: Tem várias medidas que podem ser tomadas e algumas são muito simples. Por exemplo, os tribunais do trabalho poderiam, de imediato, determinar a liberação de todos os depósitos recursais. Todas as empresas que recorreram e depositaram valores para recorrer, esses valores estão parados em contas bancárias. Poderiam ser imediatamente liberados para os trabalhadores. Já ia ajudar a sobrevivência nesse período de caos. Essa é uma medida. O imposto sobre grandes fortunas está caindo de maduro, está na Constituição de 88, já faz 30 anos e nunca foi regulado. Poderia ser regulado e isso significaria um aporte financeiro que resolveria a vida do governo, porque a arrecadação seria estratosférica, dependendo de como regular, evidentemente, mas permitiria um deslocamento dessa renda para as famílias que realmente precisam. A revogação da emenda constitucional 95 também é urgente, porque não tem como contingenciar gasto com despesa social no momento em que tudo que se precisa para não haja o caos é que haja investimento social por parte do estado. A revogação também das reformas trabalhista e previdenciária é urgente. Vê só, se a gente tivesse redução de jornada em vez de acréscimo, nós teríamos muito mais empregos disponíveis e, portanto, muito mais pessoas trabalhando do que a gente tem hoje. Então, na verdade, o caminhar do governo deveria ser no sentido contrário daquele que está sendo, com medidas de proteção. E a instituição de renda mínima universal, que é algo que já vem sendo discutido há um tempão, que vários países já têm estudos demonstrando que é uma medida que facilitaria, inclusive, o desenvolvimento do capital, porque geraria consumo imediato. O que não dá para fazer é reduzir ou retirar salário. Então, essa proposta, por exemplo, de redução de salário de servidores é uma outra proposta que vai atingir diretamente, em igual medida, os servidores e aqueles que empregam no País, porque os servidores vão parar de consumir, vão contrair dívidas e não vão pagar, vai sair dinheiro do mercado. Então, na perspectiva da economia, é um tiro no pé.

Sul21 – Alguma coisa que a senhora gostaria de acrescentar?

Valdete: Outra medida que seria importante é não limitar o tempo do seguro-desemprego. Impedir a despedida seria importante para que as pessoas sigam trabalhando e o governo teria que garantir, como outros países estão fazendo. Na França, por exemplo, o governo garantiu o salário dos trabalhadores durante o período em que a empresa não consegue funcionar. Essa é outra medida que poderia ser tomada. Então, medida tem para tomar, a questão é que tem uma opção social que tem que ser feita antes. A escolha prévia é se a gente quer realmente enfrentar a crise sanitária e evitar o caos ou se a gente quer apostar no caos. O que me parece é que o governo está apostando no caos.

Edição: Sul 21