Na última quinta-feira, 19 de março, em uma sessão plenária atípica para a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul – sem discursos nem público, com duração de apenas 20 minutos – os 48 deputados estaduais presentes aprovaram por unanimidade os projetos de lei com os quais o governador Eduardo Leite (PSDB) pretende adequar a infraestrutura da rede de saúde pública no Estado para combater o novo coronavírus.
A celeridade se justificava não só pela chance de contágio dos parlamentares no ambiente sem ventilação do Plenário 20 de Setembro. Naquela tarde noticiou-se que Porto Alegre entrava na fase três da epidemia, já contabilizando casos de contaminação comunitária, quando não é mais possível rastrear a origem do vírus. E o Estado se aproximava do 50º caso confirmado, a partir do qual o crescimento de contaminados passa a ser geométrico. Segundo as projeções do Departamento de Economia e Estatística (DEE), se o Rio Grande do Sul seguir a curva do pior cenário, nos primeiros dias de abril serão mais de 4 mil casos.
Embora tenha promovido decreto e tomado medidas “drásticas” na sua própria avaliação, do ponto de vista de recursos humanos, Eduardo Leite pretende combater essa crise apenas repondo o número básico de médicos reguladores no Rio Grande do Sul. É o que a justificativa de um dos projetos de lei apresentado na Assembleia revela:
“Atualmente, o Samu-RS possui 40 cargos médicos providos atuando como reguladores, sendo destes 20 concursados e 20 contratados emergencialmente. Registra-se que o número mínimo necessário para uma atuação em condições de normalidade na saúde pública são 70 médicos reguladores. […] O preenchimento das 70 vagas possibilitará que a SES tenha o número de médicos reguladores que contemple o exigido pelas portarias do Ministério da Saúde”.
Se todas as vagas forem preenchidas, esse contingente será menos do que previu o último concurso público feito para o cargo, em 2013. Na ocasião, foram abertas 87 vagas, para as quais “foram nomeados todos os 141 candidatos aprovados”, segundo a justificativa de outro projeto de lei, esse de 2018, que autorizou concurso emergencial para a área. Seis anos depois, apenas 20 médicos permanecem no cargo com estabilidade. Os outros 20 têm caráter emergencial. As contratações temporárias, aliás, são a regra em saúde, educação e segurança no RS, conforme revela o levantamento de dados publicado na segunda parte desta reportagem.
“Há uma carência de médicos reguladores histórica. Entendemos que deveria ter mais profissionais o tempo todo, e agora, com a epidemia, a necessidade é muito pesada. Mas está sendo suprida apenas com o número regular de médicos”, lamenta o presidente do Conselho Estadual da Saúde, Claudio Augustin.
Ele acredita que as contratações serão insuficientes para a gravidade da situação. “Talvez o governador precise aprovar novo concurso emergencial mais adiante”, projeta.
45 convocados, 35 desistências
Em seu primeiro ano de mandato, Eduardo Leite tentou repor a falta de médicos reguladores no Sistema Único de Saúde convocando profissionais aprovados em um concurso emergencial feito por seu antecessor, José Ivo Sartori (MDB). Primeiro em abril e depois em novembro de 2019, o Diário Oficial do Rio Grande do Sul trouxe a lista de convocações que totalizaram, entre as duas chamadas, 45 profissionais. Em novembro de 2018, Sartori já havia chamado os primeiros 40 colocados.
Mas a lista de profissionais que desistiram do trabalho é tão grande quanto: apenas para esse concurso, 35 médicos reguladores nomeados não apareceram para assumir suas funções. “De fato, o número de 70 médicos tem sido tentado pela coordenação (de saúde) por meio de contratos emergenciais, mas os que assumem se exoneram”, atesta o diretor do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, Marcos Rovinski.
Em 2013, houve um concurso com vagas permanentes que chamou 141 profissionais, mas, seis anos depois, apenas 20 ficaram. Eles se somam a outros 20 temporários, que completam a força de trabalho atual – pouco mais da metade do que seria preciso para atender a população gaúcha, segundo cálculo do governo com base em uma portaria do Ministério da Saúde. Agora, Leite pediu a reposição do quadro normal de médicos para combater aquela que está sendo classificada como a pior crise sanitária mundial.
O trabalho de médico regulador é complexo e carregado de responsabilidade. A este profissional compete basicamente a decisão sobre prioridades no atendimento de emergência do SUS. Uma função que pode se tornar dramática na medida em que o sistema público for esgotando sua capacidade para acolher os casos mais graves – algo que analistas acreditam que pode acontecer, como o próprio governador admitiu em pronunciamento em vídeo: “O coronavírus é real e ele vai matar; não se sabe ainda em que proporção. Mas já se sabe quem serão suas primeiras vítimas: a enfermidade vai chegar com força entre os mais vulneráveis, os de mais idade, aqueles que já possuem debilidades crônicas de saúde – os mais frágeis da nossa sociedade a quem temos obrigação de proteger. […] Não é apenas uma onda de histeria coletiva, estamos contabilizando vidas perdidas mundo afora”, alertou o governador em vídeo, cutucando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a quem apoiou nas eleições presidenciais.
Salários defasados
A lei aprovada pela Assembleia Legislativa na última quinta-feira atualiza as funções do médico regulador, que incluem desde mediar a fila para transplante de órgãos e tecidos até decidir o destino dos pacientes, podendo “negar o recurso de atendimento quando não julgar pertinente”.
“É um trabalho pesado; esse médico vai escolher quem vai morrer e quem vai viver, em termos objetivos é isso”, observa Augustin, do Conselho Estadual de Saúde.
Para o exercício dessa atividade, a oferta salarial é baixa. O salário básico previsto para o cargo é de pouco menos de R$ 3,5 mil, mas o concurso chamado por Sartori já previa uma gratificação especial que dobrava o valor. Ainda assim, segundo o próprio PL de Leite, os R$ 7 mil eram uma “distorção da remuneração frente ao mercado de trabalho”. “Além da complexidade da função – com importante nível de estresse – e das condições oferecidas de trabalho, a baixa remuneração é um problema”, observa Marcos Rovinski, diretor do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers).
Por isso, Eduardo Leite aprovou na Assembleia não um novo concurso, mas sim a autorização para aumentar o salário para a função, na expectativa de que os aprovados se apresentem quando chamados e permaneçam no cargo por mais tempo. Na prática, o médico regulador que assumir vai receber um salário de cerca de R$ 10.500.
“A vida não está fácil para ninguém, deve ter muito médico recém-formado desempregado, então estou torcendo para que isso seja preenchido. Mas tenho dúvidas justamente por causa do salário”, lamenta a presidente do Sindicato dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul (Sindsepe-RS), Diva da Costa.
Ela alerta que embora vá haver aumento para os médicos reguladores a partir da aprovação da nova lei, os vencimentos básicos de toda a categoria enquadrada como “especialista em saúde”– que inclui outros médicos, fisioterapeutas, pedagogos e outros – seguirão sendo os mesmos. “Nós até protocolamos um pedido para que as gratificações sejam estendidas a todos os trabalhadores da saúde no Rio Grande do Sul, que estarão sob grande pressão nos próximos meses”, justifica, acrescentando que servidores públicos não têm direito a receber horas-extras. “E ainda estamos tendo o salário descontado por causa da greve do ano passado”, lamenta. O caso extremo é o dos técnicos em enfermagem de hospitais públicos do Estado, cujo vencimento básico é de menos de um salário mínimo.
Lacen recebeu 24 profissionais em 2009
Além de autorizar o aumento salarial para médicos reguladores neste momento de emergência sanitária, o governo do Estado pode agora abrir concurso emergencial para outros 17 profissionais que, segundo informações do governador deverão atuar no serviço de vigilância epidemiológica, em serviços de tele-medicina e no laboratório público que faz a testagem do vírus SARS-Cov-2, que provoca a covid-19, nome oficial da doença.
O projeto de lei aprovado prevê a contratação de quatro farmacêuticos, quatro biólogos, sete enfermeiros e dois médicos, para integrar o combate à pandemia na Secretaria Estadual da Saúde, especialmente no Laboratório Central, Vigilância em Saúde e Departamento de Regulação, segundo o do PL.
“Fui presidente do Sindsepe-RS, e em todos os contratos emergenciais eu me posicionei contra. Mas nesse caso eu defendo, os contratos emergenciais foram feitos para isso, para o Estado ter resposta imediata quando há uma calamidade,”, diz Augustin.
Curioso é que, em 2009, durante a crise gerada pela influenza H1N1, a então governadora Yeda Crusius (PSDB) chamou 24 profissionais para atuar exclusivamente no Lacen, que poderia então funcionar durante as 24 horas do dia e liberar, neste intervalo de tempo, cerca de 2 mil testes do vírus. Também considerada uma pandemia pela OMS, a H1N1 entretanto era bem menos letal que a atual covid-19. Sua taxa de mortalidade foi estimada em 0,026%, enquanto as mortes provocadas pelo SARS-Cov-2 neste 2020 dão margens a cálculos que vão de 0,9% de mortos entre os contagiados (caso da Coreia do Sul, onde houve testes massivos) a 3,7%, dado sustentado até agora pela OMS.
O presidente do Conselho Estadual de Saúde, Claudio Augustin, recorda a recomendação recente da OMS de massificar a testagem na população, para garantir que mesmo os portadores do vírus assintomáticos entrem em quarentena. “São o maior vetor de contaminação”, alerta.
“Por isso emitimos uma resolução no Conselho de Saúde pedindo que fosse ampliado número de vagas neste concurso, até para garantir substituição porque várias dessas pessoas podem vir a adoecer durante o processo”, sugere.
Não houve consulta aos sindicatos nem ao conselho sobre o número necessário de profissionais a serem chamados. A redação dos PLs é confusa e parece ter sido feita às pressas. Os textos truncados tornam os objetivos das leis difíceis de entender. Isso apesar de Eduardo Leite dizer que o governo “se prepara desde janeiro para a chegada dessa doença globalizada” com um plano de contingência.
A Secretaria de Estado da Saúde e o Gabinete do Governador não responderam aos inúmeros pedidos de esclarecimentos nem às perguntas enviadas pela reportagem em mais de uma ocasião.
Edição: Marcelo Ferreira e Matinal News