Rio Grande do Sul

Coluna

Rafa Rafuagi e a força da luta social das juventudes periféricas gaúchas

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"Ser jovem, negro, de baixa escolaridade, de periferia e ter sucesso, realizar sonhos e obter reconhecimento profissional não é algo tão próximo do que conhecemos ou tão comum" - Rafa Rafuagi
Rafa é incomum e traz a experiência da resistência através de uma arte-ativismo

Desde 2010, na rádio corredor da Secretaria de Segurança Pública de Canoas eu ouvia falar do Rafa Rafuagi. No meu sentir parecia alguém de muita luz e com algo especial para trocar. Logo soube que se tratava de um jovem de 20 anos que coordenava o estúdio de música popular no bairro Guajuviras em Canoas. A história do Rafa se intercruza com a história dos territórios de paz dessa cidade, com projetos financiados pelo PRONASCI através do Ministério da Justiça. Esse Programa beneficiou e induziu o protagonismo dos municípios brasileiros na segurança, sobretudo, entre 2008 e 2012. Um legado político importante do Governo Lula e do Ministro Tarso Genro às políticas de proteção e prevenção social às violências dos municípios e das Guardas Municipais do país. Integração, territorialização, inteligência e base local em áreas de expressiva taxa de homicídios foram as diretrizes do Programa demarcado por projetos sociais e comunitários como Mulheres da Paz, Protejo, Comunicação Cidadã, Justiça Comunitária, Praça da Juventude, Audiomonitoramento, Videomonitoramento e Observatório da Segurança Pública.

Eu coordenava à época o Observatório da Segurança Pública de Canoas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e realizava avaliações dos projetos PRONASCI, fiz um livro com o Eduardo Pazinato, Secretário de Segurança à época, sobre esse trabalho chamado assim: “Muitas Cabeças Muitas Sentenças”. O Rafa naquele momento atuava no Protejo do território de Paz Guajuviras, no bairro considerado a Bagdá gaúcha em razão do elevado número de homicídios com arma de fogo. Planejei com a equipe uma pesquisa in loco com grupos focais para escutar jovens do bairro que participavam do projeto e jovens de mesmo perfil que não participavam de nenhum projeto social, homens, de 15 a 24 anos e de intensa vulnerabilidade social.

Quando eu cheguei para aplicar a pesquisa na Casa da Juventude, no 2° andar de um prédio todo grafitado, na Avenida 17 de abril, no Guajuviras, deixaram-me esperando em um sofá vermelho a coordenação da Casa que logo me recebeu e me encaminhou para a sala da pesquisa. Fiquei observando a dinâmica do espaço por um tempo. O que lembro nitidamente desse momento é do Rafa passando com passos largos e bem marcados no hip hop de um lado e de outro da Casa, acompanhado de jovens que vinham conhecer o estúdio para gravar as suas músicas autorais ou que estavam fazendo oficina com ele, conforme me disseram.

Comecei a fazer o primeiro grupo focal com meninos, quase todos negros, e vários jovens contaram que dentre as suas motivações o Rafa era uma delas, “por ser artista negro e de comunidade”. Ouvindo a história de um deles, um menino de 21 anos, eu tive a nítida impressão de que o Rafa tinha resgatado aquela vida, mesmo antes de conhecê-lo. Esse jovem Protejo sobreviveu a uma série de tiros desferidos contra ele em um beco no Guajuviras - por ter sido supostamente “confundido” como bandido por pessoas ligadas ao tráfico de drogas. Essa história é muito recorrente nas periferias. E quase sempre envolve jovens, cada vez mais jovens, negros e que estão fora da escola. Cresceram expressivamente no Brasil os homicídios de jovens negros desde 2005 até agora, todavia os de nao-negros decresceram.

Ser jovem, negro, de baixa escolaridade, de periferia e ter sucesso, realizar sonhos e obter reconhecimento profissional não é algo tão próximo do que conhecemos ou tão comum. Rafa é incomum e traz a experiência da resistência através de uma arte-ativismo potente que fala de amizade, de solidariedade, de Porongos, “povo que não tem virtude acaba por escravizar, viemos cobrar” e também de feminismo com o “Dissconstruir”, poesia escrita por mim e gravada na voz da atriz Denise Fraga e mais uma das muitas articulações protagonizadas por ele. Rafa é uma referência para o slam e para os poetas da periferia - a exemplo do que foi para o Well MC que foi brutalmente assassinado em fevereiro na zona leste de Porto Alegre com a carteira de trabalho na mão. Quem tá na periferia segue ecoando a seguinte frase sobre esse rapper executado: ele não merecia morrer porque era trabalhador. As mães falam muito isso. Então, alguém merecia morrer? Rafa luta contra essa lógica também!

Rafa recebeu vários prêmios e tem conquistado muitos admiradores e apoiadores ao longo da sua caminhada, acreditando na ideia de que “estamos há 5 pessoas de alguém que que admiramos no mundo” e certamente ter recebido a homenagem de duas escolas de samba da Região Metropolitana de Porto Alegre, Canoas e Esteio, em 2020, no último sábado na sua cidade natal, foi das maiores emoções para ele. As escolas destacaram com precisão o perfil do Rafa Rafuagi, coroado em reconhecimentos públicos como o Prêmio Estadual de Direitos Humanos na categoria Direitos da Juventude do RS em 2013 e em mais de 25 outras láureas, incluindo o Prêmio Zumbi dos Palmares da ALRS (2017). Além disso, 10 países já acolheram o rap deste brilhante jovem do sorriso largo que transmite uma mensagem de força para as juventudes periféricas que só ele consegue fazer - tá na gíria, na estética, na performance, no ritmo, no tênis que arrasta seus sonhos e os de seus seguidores.

Boaventura de Sousa Santos tem apostado muito nele e juntos criaram a Universidade Popular dos Movimentos Sociais Vozes da Periferia em Porto Alegre. Em 2019 aconteceu a primeira turma com formatura na Casa da Cultura Hip Hop de Esteio, a maior casa independente do gênero na América Latina e o maior projeto implementado pelo Rafa até o momento. Jorge Drexler, MV Bill, Criolo, Athaíde e Emicida são outros grandes parceiros dele nesta jornada. “É nós por nós, família”, como costuma lecionar o Rafa.

Em 3 anos, Rafa se forma em Direito na Fundação do Ministério Público (FMP) através de uma bolsa fornecida por essa instituição. Já vislumbro a certeza de que para além de levar sua música, sonhos e projetos como o Partiu Aula - que já atingiu mais de 30 mil jovens das periferias gaúchas com um projeto antirracista, conforme ele conseguiu mensurar, especialmente jovens negros em conflito com a lei, ele levará a segurança de outros direitos dos daqueles que são invisibilizados, para além e muito antes da pandemia do coronavírus, clamando pela sensibilidade da arte e da potência que faz pulsar a vida. Mas cada vez que leio a notícia do assassinato de um jovem negro eu penso que quem pegou uma arma na mão para matar o seu “igual” ainda não conheceu o Rafa ou o Rick. Rick é o parceiro dele no Rafuagi. Conheço o que é lealdade e a potência de uma dupla ao vê-los juntos!

Desejo que o Rafa Rafuagi seja sempre “vencedor de batalhas” e que ele carregue de uma forma ou de outra o legado dos seus pais em todas as avenidas do seu carnaval por fazer a periferia cruzar fronteiras, como disse o seu samba na verde e rosa de Esteio no último sábado. Vou revelar: somos amigos e só não estive na avenida com ele porque precisamos ficar em casa neste momento para evitar que o coronavírus se alastre mais do que o previsto e atinja os mais necessitados. Sejamos solidários, empáticos e defendamos ações coletivas em dias obscuros e que imperam o individualismo. Se o “tempo permitir”, como aponta uma das músicas do Rafuagi, estaremos juntos para comemorar a oportunidade de estarmos vivos, de criamos os nossos filhos como amigos, o meu Theo e o dele Augusto, e que consigamos ecoar para o mundo que o maior prêmio seja a nossa compreensão da valorização da vida em coletividade. Eis a história real de um dos maiores rappers brasileiros que mora aqui ao lado. Você conhece o Rafa Rafuagi? Se não, deveria!

 

 

Edição: Marcelo Ferreira