As relações de poder de sexo e gênero presentes nas sociedades patriarcais são um elemento fundamental no contexto das vulnerabilidades das mulheres frente à epidemia de Aids. Também parece consensuado o impacto das violências estruturais ancoradas no machismo, na misoginia, no racismo, na heteronormatividade e desigualdades sociais nas dinâmicas da epidemia no Brasil. Apesar disso, na última década, temos assistido à desconexão da agenda proposta pelo governo federal no campo da prevenção com as questões relacionadas a garantias dos direitos humanos e em especial, os direitos humanos das mulheres e o enfrentamento às violências de gênero.
As ações de prevenção à Aids no Brasil têm negligenciado de forma inquestionável as mulheres. A agenda de enfrentamento à feminização da epidemia, que alcançou seu ápice em 2007 com a elaboração do Plano Nacional e dos Planos Regionais de Enfrentamento a Feminização da Aids, foi enterrada na última década. Atualmente, quais são as estratégias de prevenção ao HIV/Aids para as mulheres? Onde estão contempladas as especificidades das mulheres na “Mandala da Prevenção”? Prevenção Combinada pra quem mesmo? Qual o lugar das mulheres neste cenário?
As estratégias construídas a partir de políticas focadas em populações-chave parecem ter apenas desempoeirado o conceito rançoso, estigmatizante e excludente dos grupos de risco da década de 80. Neste cenário, as mulheres voltaram a ser consideradas pelos seus comportamentos ditos “desviantes” (trabalhadoras sexuais/mulheres trans) ou através de abordagens centradas no período de gravidez/gestação/puerpério. Aliás, em relação à transmissão vertical, cabe ressaltar que a própria tradução do conceito - de MÃE para filha/filho - atribui toda a responsabilidade da transmissão para a mulher, culpabilizando e potencializando o estigma destas mulheres.
No campo da prevenção, as lacunas são imensas. A última aquisição de preservativo interno (PI) de látex, em detrimento ao PI de borracha nitrílica, foi realizada contrariando todas as reivindicações e evidências apresentadas por pesquisas mundiais, movimentos sociais e usuárias do SUS. Além disso, as últimas campanhas sequer apresentavam o PI como uma estratégia de prevenção. Indispensável destacar a relevância deste insumo na promoção da autonomia das mulheres no gerenciamento de suas vidas sexuais e práticas seguras. Nesta seara, as discussões sobre as políticas de redução de danos no uso de álcool e outras drogas e de gerenciamento de risco nas relações sexuais perderam espaço paulatinamente frente a predominância de narrativas biomédicas centradas em estratégias medicamentosas.
O protocolo da Profilaxia Pré Exposição (PrEP), uma das principais estratégias de prevenção do governo, restringe de forma insidiosa o acesso das mulheres. Esta exclusão contrapõe inclusive um dos princípios fundamentais do SUS, a garantia de universalidade no acesso. Em relação Profilaxia Pós exposição (PEP), seja nos casos de exposição sexual ou violência, as mulheres ainda enfrentam barreiras programáticas, culturais e morais que dificultam o acesso a essa estratégia. Além disso, as revisões e incorporações no campo da assistência e cuidado são relapsas em relação às especificidades das mulheres que vivem com Aids.
Esta conjuntura não se restringe aos espaços formais e/ou governamentais de construção de políticas públicas: as agendas propostas pelas organizações da sociedade civil têm incluído de forma incipiente temáticas que problematizem e/ou proponham diálogos relacionados às vulnerabilidades das mulheres.
O stealthing, o direito ao aborto legal, a descriminalização da prostituição, a saúde das mulheres lésbicas e dos homens trans, a crescente violência contras as mulheres transexuais, o assédio, a extrema vulnerabilidade das mulheres e meninas negras, o aumento dos feminicídios entre tantas outras temáticas emergentes deixaram de compor as agendas de prevenção e atenção ao HIV/Aids e de outras ISTs.
Simone de Beauvoir nos alertou “Basta uma crise econômica, política ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Estes direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a vida”. De fato, o apagamento social das mulheres nas políticas de Aids não pode ser percebido como um fato isolado. Este fenômeno está sincronizado com esta avalanche conservadora e fundamentalista que tem assolado o Brasil.
Atualmente, os ataques aos direitos sexuais e reprodutivos assim como as múltiplas manifestações de violência física, psicológica, simbólica e institucional contra as mulheres, são percebidos cotidianamente e se refletem de forma contundente na ausência ou nas fragilidades das políticas públicas em curso. Nesta esteira estão desde o projeto instituído pela Ministra Damares que propõe a abstinência como principal estratégia de prevenção à gravidez na adolescência e infecção às ISTs, quanto às tentativas protagonizadas por deputados neopentecostais de cercear a venda de anticoncepcionais, às investidas contra as possibilidades de aborto legal nos casos previstos em lei, até as discussões em torno da “Escola Sem Partido” e as censuras relacionadas às discussões sobre gênero.
A invisibilidade das políticas de prevenção para mulheres está articulada com as políticas de governos que orquestram o desmonte das políticas públicas comprometidas com a promoção da emancipação e dos direitos das mulheres. Ou seja, o apagamento social das pautas das mulheres nas políticas de HIV/Aids é mais uma manifestação das violências de gênero. O machismo mata todos os dias e mata também de Aids. 8 de março é mais um dia de luta e resistência para nós, mulheres. Somos plurais, diversas. Somos muitas e múltiplas. Somos tanto e tantas. Estamos comprometidas com a construção de políticas que sejam feministas, antirracistas e que fomentem a emancipação e o protagonismo das mulheres.
Carla Almeida – Presidenta do GAPA/RS, Conselheira do Fórum de Ong Aids do RS.
Edição: Marcelo Ferreira