É só o Estado que protege as pessoas. Defender o SUS, é preciso.
Em época de pandemia global, como esta, recentemente declarada pela OMS[1], muita gente está apavorada, e com razão. Aeroportos são fechados, escolas e comércio têm atividades suspensas e o setor público é intensamente cobrado por medidas que deem um pouco de tranquilidade à população. Os profissionais de saúde se angustiam pelas carências e por uma projeção de falta de equipamentos e de leitos que deverão ser necessários logo ali na frente. A epidemia do coronavírus está escancarando a importância do Estado, dos servidores públicos e do sistema público de proteção social. A imprensa não cansa de entrevistar os órgãos públicos para saber o que está sendo feito para diagnosticar e evitar que a epidemia se alastre e para cobrar ações eficazes das autoridades.
Há pouco tempo atrás, no entanto, quando se discutiam os cortes dos gastos públicos e a necessidade de impor um radical ajuste nas contas públicas, só se falava em cortes de gastos na saúde, na assistência, na educação, na previdência e estavam todos de acordo que o Estado precisava ser reduzido, afinal, o Estado atrapalhava a vida, especialmente dos mais ricos. O ajuste fiscal só era pensado pelo lado dos gastos, nunca pelas receitas. Reduzir a capacidade do Estado, como fez a Emenda Constitucional 95, de 2016, aprovada com amplo apoio da opinião pública, e como tem sido feito de forma recorrente por diversas outras medidas de ajustes nestes dois últimos anos, virou uma espécie de mantra.
Muitos empresários, economistas e comunicadores se empenharam no firme propósito de sucatear o Estado. E agora? Quem poderá nos salvar? O Estado Geni[2], antes vilão, agora é chamado para resolver mais esta gravíssima ameaça à saúde pública. Mas os recursos já foram contingenciados e cortados de forma expressiva.
Jogaram pedras demais na Geni. De 2019 até 2020 houve um corte de quase R$ 3 bilhões no Orçamento da saúde[3]. Em 2019, a perda foi de R$ 13,5 bilhões. Segundo Ana Paulo Sóter e Bruno Moretti, a estimativa de perdas na área da saúde, entre 2018 e 2020, é de R$ 27,5 bilhões[4]. Em relação às receitas correntes líquidas da União, as despesas de saúde representavam 15,8% em 2018 e somente 13,5% em 2019, uma perda significativa, considerando que o crescimento econômico foi pífio.
Somente com estes cortes orçamentários, sem nenhuma contribuição da epidemia do coronavírus, milhões de pessoas já estavam condenadas a morrer sem o adequado atendimento[5]. As precárias condições em que colocaram a saúde pública certamente poderá potencializar os efeitos negativos desta epidemia em nosso território.
E agora? O que era previsível aconteceu e está cobrando a conta. Sem nenhum evento extraordinário, já era anunciado que o sistema de saúde entraria em colapso. É preciso, portanto, rever urgentemente esta política suicida, ou de extermínio social, que costumam chamar de austeridade fiscal. O congelamento dos gastos precisa ser revogado imediatamente. O Estado existe para proteger as pessoas das crises de todos os tipos e não para produzir e potencializar as crises. Os cortes generalizados dos gastos públicos só fazem aumentar os efeitos das crises.
A saúde, assim como a educação, a previdência e a assistência social, dentre outros, são direitos constitucionais, que precisam ser atendidos, sobretudo em épocas de crises. A justificativa fiscal para não atender os direitos não é razoável. Há um enorme espaço fiscal para gerar recursos e fazer frente aos desafios. As camadas mais ricas da sociedade brasileira são insuficientemente tributadas, pelo menos desde meados da década de 1990, e já está na hora de serem chamadas a contribuir. Estima-se que, somente em relação ao Imposto de Renda das pessoas físicas sobre lucros e dividendos distribuídos seja possível arrecadar quase R$ 100 bilhões todos os anos. Além disso, bilhões de reais são sonegados. A dívida ativa da União já supera a casa dos R$ 2 trilhões. Em 2019, enquanto a economia patinava, os quatro maiores bancos tiveram crescimento de 18% em seus lucros.
Mas, mesmo diante desta emergência social, que tanto preocupa e assusta a população brasileira, o ministro da Economia e o governo federal ainda insistem que é preciso aprofundar as reformas e cortar ainda mais os gastos públicos. Isso é realmente assustador. O mundo se mobiliza para fortalecer suas estruturas estatais de controle e prevenção e aqui se propõe o contrário. O governo, com seus apoiadores bilionários e milionários, quer reduzir ainda mais a capacidade do Estado e propõe uma reforma administrativa, que fragiliza a ação dos seus agentes públicos, esvazia as estruturas públicas e terceiriza as funções do Estado. O governo propõe até mesmo uma revogação tácita dos direitos sociais, previstos no Artigo 6º da Constituição Federal, na medida em que sugere, pela PEC 188/2019, a subordinação daqueles direitos ao equilíbrio fiscal.
No entanto, aqui e em qualquer lugar do mundo, é só o Estado que protege as pessoas. Espero que, os mesmos atores, que no passado recente defenderam e aplaudiram os cortes dos gastos públicos, que vêm sucateando a capacidade do Estado brasileiro, agora defendam, com o mesmo empenho, a revisão daquelas medidas restritivas e antissociais.
O SUS é nossa esperança. A vigilância sanitária é fundamental e precisa ser fortalecida. A pesquisa científica é a única alternativa para encontrarmos uma rápida solução para o problema. Os serviços públicos de prevenção e controle são nossas únicas armas para evitar uma tragédia maior e o Brasil precisa recuperar sua capacidade de enfrentar minimamente as crises que se apresentam. Defender o SUS, é preciso.
[1] OMS: Organização Mundial de Saúde
[2] Alusão à música Geni, de Chico Buarque de Holanda
Edição: Katia Marko