Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Megamineração: ponto de vista das mulheres do assentamento Apolônio de Carvalho

Organização do 8M - Greve Internacional de Mulheres Porto Alegre relata diálogo com mulheres atingidas pela Mina Guaíba

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Confira a primeira parte do artigo que mostra a organização das mulheres frente à instalação da mina de carvão na Região Metropolitana de Porto Alegre - Foto: Igor Spetorro

É no contexto de uma mudança de rumos da economia brasileira e mundial que o governo do RS passou a defender a exploração de reservas de carvão na região de Guaíba. Não como insumo industrial, mas como fonte de energia que, dentro das atuais exigências do capital, é um dos elementos centrais. Esse projeto se enquadra dentro de uma mudança na estrutura da economia gaúcha, caracterizada até então por possuir uma indústria diversificada e tecnologicamente avançada, e pela crescente participação de produtos orgânicos advindos dos assentamentos rurais do MST, bem como de alguns pequenos produtores.

A partir de 2019, nos vimos envolvidas em um debate que abrange a Região Metropolitana de Porto Alegre e que colocou em estado de alerta e contínua mobilização amplos setores da sociedade civil organizada. A discussão em torno do projeto de implantação da maior mina de carvão a céu aberto da América Latina extravasou do ambiente dos órgãos de Estado, ganhou as mídias – convencionais e alternativas – e invadiu as redes sociais.

Os mais diversos movimentos – ambientalista, ecossocialista, indígena, negro, sindical, comunitário, feminista – e inúmeros/as ativistas culturais e artistas; assim como cientistas e pesquisadores reconhecidos nas cidades atingidas, passaram a se mobilizar em plenárias, audiências e atividades de difusão da informação ao público mais amplo.

Em meio a todas estas preocupações, nos sentimos interpeladas por outras questões. Como as mulheres que serão mais diretamente atingidas estão vivendo este processo? Quais angústias e receios ocupam a atenção daquelas que são responsáveis por cuidar, quando se encontram sob a ameaça de perder o locus socialmente determinado como o de excelência deste papel: seus lares?

Com estas inquietações em comum estabeleceu-se o diálogo entre mulheres do Assentamento Apolônio de Carvalho e militantes do coletivo que discute o tema da Greve Internacional de Mulheres em Porto Alegre.

De quantas cores e sons se faz a vida?

Quando chegamos ao Assentamento Apolônio de Carvalho, como acontece em qualquer ambiente em que a vida é preservada e todos os seres são vistos como dotados de direito a existência, somos imediatamente envolvidas em um mundo de cores.

Desde o primeiro momento do diálogo se manifestam as diferenças de visão sobre o enfrentamento ao problema. Porque enquanto para a maioria de nós a Mina Guaiba surge como um risco em 2019, quem vive no assentamento já vem sofrendo assédio da Copelmi desde 2014. Então, uma companheira que é assentada há oito anos, nos diz:

“É fácil as pessoas de fora chegar aqui e dizer assim ‘gente vamos resistir, vamos resistir 10 anos, vamos resistir cinco anos’, ‘vamos plantar árvores aqui’, mas só que e o meu sentimento de eu plantar a árvore e não colher amanhã? Então, a gente pensa assim... dá um desânimo. Como que a gente vai construir, sabendo que amanhã quem sabe a gente não tem mais nada, né.”

São 6 anos em suspenso. Em que o poder econômico, aliado ao poder político trabalha diariamente para roubar os sonhos.

Apesar disto, do cansaço, do desânimo, como estas mulheres reagem? Preparando uma festa para o dia das crianças em que reuniram parcela importante da comunidade e inúmeros apoiadores. Aqui a questão do cuidado aparece em duas dimensões fundamentais: frente a tentativa de interromper o futuro, a aposta na nova geração; contra a tentativa de desagregar a comunidade, o fortalecimento dos laços.

Com relação às crianças e adolescentes – são 103 atualmente no assentamento, sendo que há famílias com 8 crianças – elas enfrentam duas grandes preocupações: o modo como a perspectiva de ruptura com a trajetória de vida as afeta; e os riscos para a segurança. São duros os relatos da tristeza e da insegurança que as atingem:

“A gente foi criada sem raiz, por que sempre fomos pobres, indo de cidade em cidade onde o pai conseguia trabalho, não teve amigos de infância. A minha filha tem 9 anos, convive com as crianças, mas amanhã eles não sabem se eles vão ter o convívio. Acho muito importante se criar junto, porque eles aprendem a se cuidar junto, na escola, na rua, se tem um encontro dos movimentos sociais, a gente sabe que pode deixar.”

Outra assentada, já há 12 anos ali, comenta sobre as reações que as crianças têm tido, desde que souberam do risco: “as minhas perguntam, coitadinhas, ‘e as nossas frutinhas, as nossas bergamotinhas?’. Ela lembra que tem um neto que chega para o pai e a mãe e dizem ‘Mas eu não quero me separar dos meus amiguinhos’.”

A segunda preocupação diz respeito principalmente às meninas. Existe a hipótese da Copelmi dar início às escavações sem a remoção prévia das famílias. Neste caso, além do agravante ambiental, coloca-se o risco de violência sexual, como elas mesmas referem:

“Tem essa possibilidade, tá no projeto. Que eles comecem com a mina, com o assentamento aqui. Sendo que a mina fica a 2 Km daqui. Eu hoje saio de casa e se a minha filha tá dormindo eu posso deixar ela em casa tranquilamente. Virão pessoas na mineração de todos os lugares. A gente sabe que tem tanta maldade no mundo, né. Que sossego vou ter de sair de casa, deixar minha casa aberta? De deixar minha filha ir na vizinha, se ela pode ser atacada?”

Segundo o IBASE (1), “Estima-se que 7 dos principais estados mineradores do Brasil concentrem 31% dos casos de violência contra a mulher. Os empregos muito precarizados e a deterioração das condições de vida acabam gerando aumento dos índices de alcoolismo, drogas e violência (tanto doméstica quanto no espaço público através do aumento de casos de violência sexual) nas regiões em que grandes projetos de mineração se instalam, deixando todas as mulheres mais sujeitas a situações de violência.”

Quanto aos riscos de desagregação da comunidade, sabemos que o colonialismo é fundante do capitalismo e que, para torna-lo viável, o colonizador sempre atuou para o empobrecimento das populações, a fim de facilitar a cooptação e dominação. Pois os neocoloniais e suas empresas mineradoras não são diferentes em seus ataques aos territórios. Entre as dores vividas por aquelas mulheres, no dia 12 de outubro de 2019, encontrava-se o fato de que sua comunidade, construída em um companheirismo que só a luta em comum pode forjar, sofria uma clivagem, por interferência dos interesses da Copelmi. É o que nos conta outra companheira, assentada há 12 anos:

“E eles usam um monte de mentira, dizendo que nós estamos abaixo da linha da pobreza, que nós não temos dignidade. Mentem descaradamente e acham que estão agradando. E, infelizmente, hoje, neste 12 de outubro de 2019, nós estamos passando por um momento triste, porque a empresa com as mentiras dividiu o assentamento. Neste momento nós estamos com a nossa festa aqui e estamos com uma festa ali, que é a favor da mineração, que tão fazendo uma festa e proibiram as crianças de lá de vir aqui.”

No entanto, é exatamente neste momento que a força de luta das mulheres se reafirma: Frente a disposição de enterrar nas cinzas do carvão, o colorido de suas vidas, elas se preparam para a continuidade da resistência, dando início a um coletivo de mulheres do assentamento.

 

* Clarisse Chiappini Castilhos e Zadi Zaro são da organização do 8M-Greve Internacional de Mulheres Porto Alegre

 

1 Publicação “Mulheres e Mineração no Brasil”, disponível em http://justicanostrilhosorg/2019/01/09/cartilha-mulheres-e-mineracao-no-brasil/

 

Edição: Marcelo Ferreira