Em uma terça-feira de fevereiro, Violeta Simone*, 55 anos, estava preocupada. Fumava mais um cigarro sentada no murinho externo do posto de saúde da Bom Jesus, nos altos da Protásio Alves, comentava com a senhora ao lado os áudios do WhatsApp que, havia algumas noites, circulava nos telefones e na boca de todo o bairro: uma voz metálica, distorcida, avisava aos moradores de áreas da zona leste de Porto Alegre, dominadas pela facção Bala na Cara, que uma chacina estava prestes a ocorrer, em vingança a um crime ocorrido dias antes, na vila Maria da Conceição, território dominado pelo grupo inimigo da gangue.
“Foi feito o mal e isso não vai ficar assim. Pessoal dessas comunidades onde os Bala frequentam – Bom Jesus, Vila Pinto, Rubem Berta, Mario Quintana: a gente não vai ter hora, não vai ter dia… a gente vai embocar de penca que é para fazer a chacina mesmo, deixar nego estirado na rua. Não queremo saber se é velho, criança, mulher, trabalhador. Tá na rua, o cano vai ser apontado e o dedo vai ser pegado; vamo sentar-lhe o dedo”, anunciava uma das gravações.
Alguns moradores classificaram a ameaça como um toque de recolher; outros comentavam sobre a possibilidade de os áudios serem fraudulentos. Para Simone, a lembrança da guerra ainda está viva demais para ignorar o medo. “Eu já vi muita coisa acontecendo, bem ali daquela janela, onde eu morava antes”, ela aponta, mirando um imóvel próximo ao posto.
“Teve um dia que abri a janela de manhã e vi um cara carregando um saco plástico azul, bem cedinho. Quando ele olhou para mim, entendi que eu tinha visto alguma coisa que não devia, fechei rápido e voltei a dormir”, recorda, reproduzindo com as mãos o gesto brusco feito na ocasião.
Horas depois daquele instante, Simone soube que havia deparado com o primeiro de uma série de corpos decapitados e esquartejados pelos bairros da região – prática que aterrorizou essa parte de Porto Alegre ao longo dos anos de 2016 e 2017, no auge do conflito entre facções, quando dezenas de casos foram registrados.
A cabeça estava algumas esquinas adiante, em uma caixa de papelão. O corpo foi deixado do outro lado da avenida Protásio Alves, na área da Vila Jardim. Enrolado em um edredom, trazia a seguinte mensagem: “Bala nos Bala” – uma declaração de existência de uma coalizão informal de gangues pequenas e médias, criada para combater os Bala na Cara, intitulada “Anti-Bala”. É sobre esse grupo que recaem as suspeitas da polícia das ameaças distribuídas via WhatsApp.
Os mais violentos
Enquanto conversávamos com Violeta Simone na frente do posto de saúde, um senhor abriu a porta e veio em nossa direção: “Tomem cuidado, eles já andaram avisando que vão atirar, que vão levantar até criança”, disse, referindo-se aos áudios. Perguntamos se ele achava mais seguro conversar na antessala do pronto-atendimento. “Eles podem estar aí dentro também”, advertiu, antes de sair pelas ruas pregando o evangelho, atitude que ele toma como forma de proteção nessas horas.
“Como é que a gente vai deixar de sair, de viver a vida?”, completou.
Ao contrário da maioria das facções brasileiras, os Bala na Cara não nasceram dentro de um presídio. Eles se criaram nas ruas da Bom Jesus como um pequeno grupo de jovens e adolescentes que caiu na delinquência – andavam pelo posto de saúde, pelas escolas, nas padarias. Começaram praticando alguns assaltos, mas depois descobriram que vender drogas era mais rentável e menos perigoso.
Iniciaram a vida no tráfico como braço armado de outra facção – embora possa soar um deboche para quem não acompanha de perto esse universo, antes da existência dos Bala na Cara, os grupos criminosos evitavam a violência extrema. Cada um mantinha sua liderança muito mais na base da negociação com inimigos e do clientelismo com moradores da comunidade do que apertando o gatilho. Todo mundo tirava sua fatia do mercado das drogas na Capital sem precisar dar muito tiro entre si. “Isso mudou radicalmente e um dos principais motivos foi o surgimento dos Bala na Cara, no início anos 2000”, observa a cientista social Marcelli Cipriani, estudiosa do assunto.
O nome do grupo é uma indicação do grau de crueldade de suas execuções, que terminam sempre com um “tiro de esculacho” no rosto da vítima, impedindo velórios com o caixão aberto. Foi essa violência que os fez crescer e se expandir rapidamente.
Desde que se firmaram como facção, em 2011, começaram um projeto de controle territorial que incluía o oferecimento de “franquias” para os traficantes independentes: os Bala entravam com a marca, apoio bélico, e até financiamentos, entre outros benefícios. Em troca, o traficante independente passava a comprar mercadoria e armas exclusivamente de atacadistas da gangue da Bom Jesus. Se o sujeito rejeitasse a oferta, era a vez da tática do “embolamento forçado”: ele era coagido a aceitar, sob ameaça de que o ponto seria tomado na base da violência – o que de fato ocorria, graças ao poder bélico e do exército de combatentes arregimentados, a maioria adolescentes.
“Não era uma aliança de fato, é uma imposição com arma na cabeça. Por isso, ao longo do tempo eles foram criando inimizades em toda a cadeia do crime. Começaram a ser vistos como ameaça para grupos pequenos e médios, que temiam serem os próximos. Então eles se uniram e criaram uma estrutura para se defender”, complementa a pesquisadora.
Assim começou a ser criada a frente “Anti-Bala”, que sequestrou, torturou e decapitou a primeira vítima da guerra, aquela de quem possivelmente Violeta Simone viu os despojos num saco plástico azul diante de sua janela, em 2016. Os Bala responderam com os mesmos métodos, em igual intensidade: ao longo dos dois anos, foram mais de 30 casos registrados, com mortos dos dois lados.
Toque de recolher
Junto com essa onda de crimes bárbaros, outro tipo de ação começou a acontecer no meio da “guerra” : os “bondes” ou “atentados”, um tipo de ataque muito particular entre as gangues criminosas, quando a investida sobre o território inimigo se dá sem que haja um adversário específico na linha de tiro.
“Essa disputa era simbólica: não bastava só matar, era preciso desqualificar, escrachar o rival. Aí entram os atentados, que é quando um grupo sai para ‘tocar o terror nos contra’: primeiro iam na boca inimiga e saíam atirando, para mostrar que conseguiam entrar no território inimigo e matar. Isso degringolou e, de repente, estavam na rua principal dos bairros, atirando aleatoriamente”, explica Cipriani.
Naqueles dois anos, os adolescentes não podiam namorar gente da facção rival. As comunidades foram sitiadas. “Mesmo quem não estava envolvido na guerra, precisou se posicionar. O clima de tensão era geral, havia restrições para circular, em quais festas os jovens podiam ir”, relembra a pesquisadora.
Na Bom Jesus, Violeta Simone precisou interromper churrascos e festas religiosas para fugir desse tipo de tiroteio. Uma vez, desceu do ônibus pertinho da Protásio Alves justamente na hora em que um atirador descarregava sua munição sobre a comunidade, em pleno dia. “Joguei as crianças da minha amiga no chão. Era melhor elas se quebrarem do que…”, interrompe a frase antes de verbalizar o que de pior poderia acontecer.
Os indicadores de violência explodiram, e os gráficos inflavam sobretudo com gente que nunca havia trabalhado para o crime. Na Vila Jardim, onde havia um dos principais focos Anti-Bala, a taxa de homicídios que era de 46,9, em 2014, saltou para 281,6, em 2016. Em todos os bairros pelos quais o conflito se estendeu houve aumento vertiginoso da criminalidade. Naquele ano, a capital gaúcha registrou mais do que o dobro de casos do total contabilizado na cidade do Rio de Janeiro no mesmo período.
“Morre muito inocente nessa guerra”, lamenta o delegado Guilherme Gerhardt, da 1ª Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa. “Eles disparam rajadas de metralhadora. Não tem como acertar um alvo específico, não raro morrem inocentes”, completa.
Era por isso que, naquele dia, escorada no muro do posto de saúde, Simone não podia evitar a sensação ruim que o movimento “diferente” no bairro e aquele áudio lhe traziam. “Eu me arrepio quando vejo um carro de vidro preto andando, já acho que são eles”, disse.
Capital do sangue quente
Em 2018, depois de diferentes ações das forças policiais, os números da violência finalmente começaram a cair. Alguns fatores contiveram as decapitações e os esquartejamentos: as investigações avançaram e várias lideranças de facções foram encarceradas em penitenciárias federais, evitando a comunicação com suas gangues. Em 2019, a taxa de homicídio de Porto Alegre estava muito próxima à do Rio de Janeiro, embora ainda mais elevada.
As próprias facções também se deram conta de que a guerra era mau negócio. Por um lado, afastava os mais jovens candidatos a soldados, temerosos que seu destino fosse uma morte violenta. A presença mais frequente da polícia também afugentava compradores, derrubando os lucros dos criminosos.
Contudo, a guerra nunca teve fim para quem vive na região, – nem mesmo com a queda nos índices de criminalidade. Foi ela que provavelmente matou o menino Emanuel Alessandro Costa dos Santos, de um ano e dois meses, na vila Maria da Conceição no dia 2 de fevereiro. Ele teria sido vítima de um atentado, que vingava uma execução anterior e que ainda pode gerar um novo ataque anunciado pelos áudios. Outras quatro pessoas foram atingidas pelos tiros. Nenhuma tinha antecedentes criminais.
“Vamos permanecer nas comunidades até quando for necessário. Os criminosos sabem que estamos monitorando eles e que sabemos que um lado está esperando para atacar, enquanto o outro espera o ataque”, resume o tenente coronel Paulo Rogério dos Santos Alberti, comandante do 19º Batalhão de Polícia Militar, que abarca grande parte da região sob conflito.
O trabalho da polícia, entretanto, não é suficiente para dar tranquilidade aos moradores. Mais de 15 dias depois da disseminação dos áudios, a Polícia Civil ainda não tinha elementos suficientes para afirmar se eles haviam mesmo sido disparados de dentro do Presídio Central, por traficantes – primeira hipótese levantada na investigação. “Nosso foco é esclarecer o homicídio, a morte da criança. Mas estamos atentos a tudo e os áudios podem auxiliar em fatos futuros”, afirmou o delegado Gerhardt, da 1ª DP, que não pode fornecer detalhes das investigações em andamento.
A Brigada Militar, por outro lado, admite que tem atuação limitada. Houve reforço do policiamento nas áreas sensíveis, com patrulhas dos batalhões especiais e até helicópteros mobilizados. Mas quando se trata de atentados, o revide não necessariamente será dado no exato local de onde partiram os ataques, porque hoje Balas e Anti-Balas estão disseminados por grande parte da cidade.
“Onde eu coloco viatura, sei que nada vai acontecer. Mas as áreas dominadas por essas gangues são muito extensas. Para prever o que vai acontecer, só investindo mesmo em inteligência”, ponderou o tenente coronel Alberti, que diz estar ampliando sua equipe de monitoramento desde setembro.
Enquanto isso, nas comunidades, resta o medo e alguma reação de protesto, como o ato realizado por mães da Vila Maria da Conceição dias após a morte de Emanuel.
*nome fictício
Edição: Matinal News