Rio Grande do Sul

SÉRIE 8 DE MARÇO

Feminicídio: A pandemia de violência contra as mulheres no RS segue elevada

Se no início de 2019 o governo gaúcho chegou a comemorar a redução dos casos, esse ano isso não deve ocorrer

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Advogada feminista e especialista em Direitos Humanos, Ariane Leitão concedeu entrevista ao Brasil de Fato RS - Foto: Fabiana Reinholz

O ano mal começou e o Rio Grande do Sul já registrou 10 feminicídios em janeiro, três vezes a mais do que o registrado de 2019 no mesmo período. Além das 32 tentativas, 3.359 ameaças às mulheres, 2.083 casos de lesão corporal e 134 casos de estupro. Os dados são da Secretaria da Segurança Pública, através do Departamento de Planejamento e Integração, do Observatório Estadual de Segurança Pública, que mensalmente acompanha e registra os dados referentes à violência aplicada contra as mulheres. Desses 10 crimes, dois foram em Porto Alegre, os demais nas cidades de Erechim, Parobé, São Leopoldo, Campo Bom, Canela, Nova Petrópolis, Torres e Venâncio Aires.

De acordo com o Atlas dos Feminicídios, idealizado por Suelen Aires Gonçalves, doutoranda no curso de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania (GPVC), em parceria com a economista Cristina Maria dos Reis Martins, doutoranda do curso de Políticas Públicas da UFRGS e também integrante do GPVC, as vítimas em sua maioria foram mortas pelos maridos/companheiros e ex-maridos. O Atlas é elaborado com base dos dados da Secretaria e faz o monitoramento dos casos.

Soma-se a isso o fato do país ocupar o 5º lugar no ranking mundial de feminicídio. Frente a essa pandemia de violência contra as mulheres, a Comissão de Segurança e Serviços Públicos da Assembleia Legislativa, presidida pelo deputado Jefferson Fernandes (PT) criou a Força-Tarefa Interinstitucional de Combate aos Feminicídios, coordenada pela advogada feminista e especialista em Direitos Humanos, Ariane Leitão. Em seminário realizado ano passado, Jefferson afirmou que a ausência de políticas públicas estaduais em favor da proteção às mulheres é, de fato, um agravante.

Com o feminicídio ainda em alta, o presidente Jair Bolsonaro, no início de fevereiro, afirmou que não é preciso de investimentos, e sim de "postura", "mudança de comportamento" e "conscientização".

O Brasil de Fato RS conversou com Ariane sobre o surgimento da força-tarefa, da situação no Estado e dos desafios diante de todo esse contexto e da corresponsabilidade do poder executivo nos casos de feminicídio “Os gestores públicos brasileiros e gaúchos, hoje, são responsáveis pelas mortes das mulheres. A negligência de recursos públicos para garantia das nossas vidas sendo um direito constitucional não pode ser aceita como algo como comum. As mãos deles também estão sujas de sangue”.

Esta entrevista faz parte da série especial sobre o 8 de Março realizada pelo Brasil de Fato RS. Confira:

Brasil de Fato RS: Como surgiu a ideia de fazer a força tarefa que envolve a Assembleia Legislativa e a Câmara de Deputados?

Ariane Leitão: Quando assumimos a Comissão de Segurança, começamos a receber uma série de manifestações do movimento de mulheres alertando sobre o aumento do número de feminicídios. Como vínhamos da Comissão de Direitos Humanos (CDH), as pessoas tiveram a reação: perdemos lá, mas foram para Comissão de Segurança, então alguns pontos poderão ser associados ao trabalho que foi desenvolvido na CDH. A presença do deputado Jefferson e a minha acabou fazendo com que viesse mais essa questão das mulheres.

Vale lembrar que no governo Tarso Genro tínhamos a Secretaria de Políticas para Mulheres, que no governo José Ivo Sartori foi transformada em Departamento de Mulheres, que esteve fechado e sem a nomeação de uma coordenadora.

Com as manifestações que foram chegando, resolvemos fazer uma audiência pública. Fizemos uma reunião prévia em que vieram muitas pessoas e começamos a nos preocupar. Propusemos a criação de um Grupo de Trabalho e, a partir das reuniões, percebemos que tínhamos condições de fazer um trabalho maior, que não fosse movimento só de oposição com os movimentos sociais, mas um movimento amplo, das mulheres do Rio Grande do Sul lutando por mais investimentos em políticas públicas para as mulheres.

Enquanto fazíamos as reuniões do GT, aparecia a cada mês um aumento do feminicídio. E foi ficando mais preocupante. Depois de várias reuniões, chegamos com a proposta de fazer uma força-tarefa. Demos esse nome porque envolve segurança pública, ação da polícia, da brigada e tudo mais, e também porque dava um elemento de que precisávamos fazer um trabalho mais profundo e que enfrentar as mortes de mulheres necessitava ser um movimento mais amplo. As pessoas no início não gostaram muito do nome força-tarefa, mas insistimos justamente para fazer esse link com a questão da segurança pública e da urgência.

Fomos muito criticados, no início, dentro da nossa turma. Por que estamos falando de feminicídio e não estamos falando de violência contra a mulher? Eu dizia, passamos dois anos na CDH denunciando o desmonte da secretaria, da política pública, fazendo audiência sobre a violência, e não adiantou nada.

Avaliamos, ou atacamos - começa pelo fim, ou vamos seguir enxugando gelo. Fomos até Brasília levando as denúncias, extinção de recursos, do aumento da violência.

Achamos que na Comissão de Segurança deveríamos ter uma postura mais incisiva e tratar efetivamente da morte das pessoas. Antes do lançamento da Força, o senador Paulo Paim (PT) e a deputada federal Maria do Rosário (PT) nos procuraram e disseram que queriam a levar a Força Tarefa para Câmara Federal e para o Senado. O lançamento foi feito em agosto de 2019.

Ao mesmo tempo que acho que foi uma ideia acertada, fico abismada que o único espaço hoje que temos de organização das pessoas para falar sobre política pública para mulheres é esse, não temos mais nenhum outro no Estado. O Conselho Estadual das mulheres não foi aberto, está praticamente sem condições de funcionamento porque não tem dinheiro, o Departamento só foi aberto em 2019.

O parlamento teve que puxar para si esse processo de enfrentamento da violência contra a mulher, de identificação do porquê o feminicídio está aumentando, e fazer o gesto para o Executivo, quando deveria ser ao contrário. Nós já estivemos no Executivo (governo Tarso) e fazíamos o contrário, montamos a Rede Lilás, organizamos a secretaria, fizemos a transversalidade, conversamos com diversas entidades.

Quando fizemos o lançamento da força, que contou com a presença de diversas instituições como Defensoria Pública, promotoria, Famurs, percebemos que havia espaço para fazer um debate mais profundo. Organizamos seis encontros regionais, duas visitas técnicas locais, e o seminário final, em dezembro, em Porto Alegre. Centenas de pessoas participaram desse processo. Fizemos um movimento de regionalizar o debate, e também um movimento de interiorização, porque isso foi batido muito pelas mulheres que vinham do interior para as reuniões, “vocês só fazem as coisas aqui, e no interior estamos morrendo muito mais”. Embora os índices não sejam esses, o nível de desarticulação das redes de atendimento às mulheres no interior é muito maior, de fato as mulheres não tem para onde ir.


"A ausência de casas e abrigos é o principal problema hoje. Estamos discutindo não só a violência, e o seu fim, por que elas morrem" / Foto: Fabiana Reinholz

BdFRS: Nesses encontros feitos, qual a realidade observada?

Ariane: Nos encontros percebemos as mais diversas situações de deficiência, de carência, mas também de atenção das autoridades públicas em relação ao enfrentamento da violência contra mulheres, especificamente contra o feminicídio. Percebemos que a ausência de casas e abrigos é o principal problema hoje. Estamos discutindo não só a violência, e o seu fim, por que elas morrem. Elas apanham, sofrem a violência e retornam para os seus lugares de origem, para casa, o local de violência, isso já sabemos. Mas por que elas estão morrendo mais?

É a primeira, segunda, terceira violência, e quando ela decide fazer a denúncia, e tem que voltar para esse lugar, ela possivelmente será morta. As pessoas dizem, denuncie, vem a campanha de conscientização, denuncie, não fique calada, ela vai lá, denuncia e morre. Por que? Porque o Estado não está cumprindo a Lei Maria da Penha, não está cumprindo a Lei do Feminicídio (Lei n. 13.104/2015), o Estado não cumpre a Constituição.

Não temos recursos investidos em políticas públicas para mulheres como deveria, não temos a criação nem formação das redes atendimentos, conforme diz a Lei Maria da Penha. E nós temos ainda subnotificação dos feminicídios, ao contrário do que diz a lei do feminicídio, que obriga ter uma notificação específica para que se possa também entender esse crime e estudá-los nas áreas de segurança pública.

É importante salientar que a Policia Civil está trabalhando para qualificação das notificações do feminicídio, através de um "Protocolo de Risco", em fase de implementação.

Os elementos que identificamos: falta dinheiro e a falta de casa abrigo. A mulher vai voltar para aquele lugar, porque em regra ela tem filhos, vem de um relacionamento estável ou que já foi estável, foi casada, teve um relacionamento íntimo.

A questão do déficit orçamentário é um dos maiores símbolos que temos no Estado. O RS já viveu uma situação muito peculiar em relação à política pública para mulher, tivemos um crescimento muito grande, já fomos o estado brasileiro que mais teve conselhos municipais, que mais teve organismo de política pública para as mulheres nos municípios. Fomos o último estado a assinar o pacto de enfrentamento a violência contra mulher, no governo Tarso, já que no governo Yeda não foi assinado. Em pouquíssimo tempo, nos éramos o primeiro Estado, do ponto de vista da organização da rede de atendimento. A resposta da sociedade gaúcha foi muito positiva.

Chegamos a investir, só na Secretaria de mulheres, R$ 5 milhões no ano 2013. Chegamos no último ano do governo Tarso com R$ 4,2 milhões em o orçamento aplicado. O governo Sartori acaba com a secretaria, cria um departamento, e o orçamento tem um declínio absurdo, vai para R$ 180 mil no último ano do governo. Para piorar, entramos com o governo de Eduardo Leite com só R$ 20 mil para o enfrentamento da violência contra a mulher. Os valores são muito impactantes.

Com uma involução orçamentária dessas, é claro que vamos chegar no caos que estamos vivendo, sucateamento, a rede começando a se deteriorar, as reuniões que eram semanais deixaram de existir. E junto a isso, uma disposição política de acabar com tudo.

BdFRS: Isso que iria comentar, começa a se observar uma permissão cultural, moral e um discurso do Bolsonaro que o comportamento da mulher é que tem que mudar.

Ariane: É uma canalhice dizer isso, se tu te comportar não vai apanhar. Em uma ocasião, o prefeito de Uruguaiana, em uma reunião oficial disse: “lembre-se mulheres, homens bem tratados não batem em mulher”. Essa foi a pior experiência da minha vida, quando fui Secretária Estadual de Políticas Para Mulheres, com homem machista. Nós dois éramos autoridades e ele não respeitou, e ainda debochou: “Vocês querem respeito, mas as mulheres ficam de bunda de fora na fazenda (programa Record)”.

Esse é o nível, existiu quando tínhamos a secretaria, e foi caindo, chegando ao nível com autorização dos nossos governantes de que a violência é mesmo uma questão que pode acontecer, que deve acontecer. Agora tem a influência da ministra Damares, a influência religiosa, abstinência sexual, que transfere para as meninas a responsabilidade de uma vida sexual que sequer elas têm condição de poder escolher, porque a cada quatro horas uma menina de até 13 anos é estuprada.

São essas meninas a quem ela (Damares) estava se referindo, as que não tem condições de escolher ter abstinência sexual, porque são estupradas em casa. É um movimento orquestrado pela igreja, pelo fundamentalismo, para calar as vítimas de violência sexual e do patriarcado, uma estratégia de culpabilizar essas meninas. É assim mesmo, tu vai ter que aceitar.

Sabemos do índice de abuso entre pastores, das pessoas que não são religiosas, de pessoas que estão ligadas a quadrilha de tráfico de mulheres, de crianças, de drogas, pedofilia, parafraseando Heinze (Luiz Carlos, deputado federal), tudo que não presta.

Percebemos essa autorização do poder público existente hoje, e não é só do Bolsonaro, é a partir da ação do Bolsonaro, da omissão do Eduardo Leite e da misoginia do poder Judiciário, do Ministério Público, ou seja, a violência institucional permanente contra as mulheres também autorizou esse processo, todo mundo tem culpa.

O presidente da Comissão de Segurança, o deputado Jefferson, disse muito claramente: ou os homens percebem que tem responsabilidade disso, ou nós vamos para o fundo do poço.

Chegamos no limite, o RS chegou a figurar como o terceiro estado que mais mata mulheres no país. Não foi a toa que no governo Sartori a primeira secretaria que foi extinta foi das mulheres, o que representa um símbolo político de atacar a maioria da população, ou de atacar especialmente a parcela da população que pode se rebelar contra o status quo, que é o patriarcado, que é esse processo violento, machista, de submissão que a gente muitas vezes é obrigada a enfrentar, de imposição da submissão.

Além da ausência das casas abrigos e da questão da falta de recurso público, vimos também a ausência de delegacias especializadas, especialmente a necessidade de ampliação das patrulhas Maria da Penha.

Percebemos nesse processo a necessidade de abertura das delegacias, o aumento das Patrulhas, a formação de agentes, sobretudo de mulheres agentes para atender os casos de violência. Isso é um investimento baixíssimo que pode ser feito, e que não vemos disposição política.


"Entramos com o governo de Eduardo Leite com só R$ 40 mil para o enfrentamento da violência contra a mulher" / Foto: Fabiana Reinholz

BdFRS: Quais conquistas, o saldo positivo desse processo?

Ariane: Acumulamos uma movimentação dos deputados e deputadas estaduais, mas sobretudo das deputadas, que no final do ano de 2019 apresentaram emendas, de forma conjunta, pela bancada feminina, totalizando R$ 3 milhões, que devem beneficiar diversos setores de combate à violência contra mulher. Isso foi conquistado pela movimentação que fizemos pela força-tarefa, processo capitaneado pela deputada Luciana Genro (PSOL), como procuradora adjunta da mulher, que esteve conosco durante todo esse processo, e conquistou essas emendas.

Conseguimos, através das deputadas federais, 12 viaturas que vieram para o Estado e que estarão nas delegacias especializadas, conquistamos a autorização oficial do comandante-geral da Brigada para quê novas equipes da Patrulha Maria da Penha sejam feitas e sejam capacitadas. Conseguimos a formação dos agentes. E conseguimos ainda, das especialistas que reuniram conosco, a formação de um atlas do feminicídio, uma ferramenta para identificar onde estão os feminicídios.

Essas conquistas vieram das mulheres que se sentiram fortalecidas em cobrar isso, porque estava existindo um movimento que não era do PT, do PSOL, e sim um movimento das mulheres.

Percebemos nos debates que quem segurou as pontas, e está segurando, mesmo com a negligência total dos governos dos homens brancos, são as mulheres, servidoras públicas que recebem parcelado. São elas que estão segurando o atendimento, que introjetam o estado para atender as mulheres, existe sororidade na vida real. Deles (homens no poder) pode não ter, mas das mulheres que trabalham no cotidiano, na ponta da rede, isso acontece.

Tivemos total apoio das delegadas, das mulheres que trabalham na Patrulha Maria da Penha, e de outras categorias que participaram desse processo de discussão, do judiciário (com pouca resistência), da Defensoria Pública, que vem desde o início, Ministério Público (com muita resistência). Percebemos que desde a existência da secretaria para cá pouca coisa mudou nesses setores também, seguem sendo as mesmas mulheres, que são servidoras públicas.

Hoje não existe mais política de Estado, existem pessoas que podem fazer a política acontecer, se elas sobreviverem psiquicamente, porque as pessoas estão exaustas, não tem articulação em rede.

BdFRS: Estamos na segunda quinzena de fevereiro, e até agora foram registrados 10 feminicídios e 32 tentativas. Ao se falar, por exemplo, dos números de violência contra mulheres, eles podem ser maiores do que apontam as pesquisas oficiais. Como tu analisa esse contexto, e a questão da Maria da Penha, que vai se fragilizando nesse processo?

Ariane: Pois é, esse ano, até agora, morreram 10 mulheres, um aumento de 233% em relação ao ano passado. Estão morrendo mais mulheres, e por que as mulheres não estão denunciando? Dessas 10, somente duas chegaram até a delegacia. As mulheres têm informação, mas estão com medo de denunciar porque elas vão morrer, não tem Estado.

Essa ausência de denúncias tem vários elementos, e entre eles está a violência institucional contra as mulheres. O que significa isso? Significa, especialmente, na minha opinião, a falta de empatia desses poderes que atendem as mulheres vítimas de violência, elas são muito maltratadas nesses espaços, não só os espaços do sistema de segurança, mas especialmente o sistema de Justiça: Defensoria, Ministério Público, Juiz - juizado de violência doméstica. E tem também o elemento em relação a não identificação das crianças, que são vítimas desse processo também.

Há um levantamento de que a cada mulher vítima, três crianças ficam órfãs, essas crianças são as vítimas invisíveis do processo. Essas crianças vão para o abrigo ou vão viver com o pai, ou com a vó paterna.

Todas as falas misóginas e violentas contra as mulheres que morreram acontece também. Essa violência institucional está tão dantesca que as mulheres resolvem não denunciar. Ela não tem para onde ir, não tem a casa abrigo, não tem política de emancipação, não tem programa de emprego e renda, não tem mais acesso minimamente a sua condição de sobrevivência, que era o Bolsa Família. Tem um milhão de pessoas esperando Bolsa Família, e sabemos que as famílias que acessam esse benefício são monoparentais com mulheres na chefia. Não têm mais acesso a programas como o Minha Casa, Minha Vida, que era o que tirava as mulheres em situação de violência.

Se ela fizer essa denúncia e o juiz identificar, na vara de família, depois de ter sido atendida na vara de violência doméstica, quando envolver criança, essa situação de violência, e ela tiver que voltar a esse ambiente, a criança terá que ser abrigada, essa mãe não vai denunciar. As mulheres preferem assumir o risco sobre sua própria vida, para o filho não ir para um abrigo. Ou, muitas vezes, essa mãe se já é separada do marido, de perder a guarda. Essa é outra critica que fazemos, ou ela mora com ele, e tem que voltar para aquele lugar, e se ela denunciar o juiz pode tirar o filho dela, ou ela compartilha a guarda e esse agressor acessa ela novamente, porque nas varas de família não é identificado, não interessa se ele é agressor, ele é pai, ele vai poder compartilhar a guarda.

Essas são afrontas diretas à Lei Maria da Penha, que segue sendo atacada. Eles encontraram uma alternativa para fazer com que a Lei Maria da Penha não tenha eficácia. A mãe compartilha guarda com agressor, ela se obriga a passar por esse processo. Se ela denunciar violência contra os seus filhos, ela corre o risco de perder a guarda com a questão da lei da alienação parental.

O ataque institucional à Lei Maria da Penha é calculado minimamente, nada está acontecendo por acaso, a lei da alienação parental não existe por acaso e a lei da Guarda compartilhada obrigatória não existe por acaso. Não existe uma pesquisa antes da determinação da guarda compartilhada em relação ao histórico desse marido, desse pai. Ele vai conseguir a guarda, e se ela verificar violência contra o seu filho, inclusive em caso de abuso, ela pode perder a guarda por esta denúncia, por ser uma alienadora.

A nossa situação é pior, os próprios aplicadores da lei, são juízes, promotores, defensores, defensoras atacando a lei por outras leis, e as mulheres morrendo. A situação das crianças é a mais cruel que tem, só os campos de concentração usavam os filhos para torturar as mulheres assim, nós vivemos em campos de concentração no Brasil.

No final da força-tarefa, tivemos uma movimentação muito interessante com o seminário, em que tratamos de duas linhas, a necessidade da atuação articulada em rede para que a gente possa enfrentar a violência e a questão da prevenção. Na questão da prevenção, entra a Patrulha Maria da Penha, que não é uma ferramenta de prevenção à violência, porque só são mulheres que já sofreram violência que são patrulhadas, mas é uma ferramenta de prevenção ao feminicídio, porque onde existe a patrulha as mulheres não morrem.

Outra questão que apareceu em relação a prevenção foi a inclusão do debate da violência contra mulheres e meninas nos currículos escolares. Existe já um projeto de lei da deputada estadual Sofia Cavedon (PT) pronto para ser votado, que prevê a inclusão desse debate no currículo oficial das escolas estaduais do Rio Grande do Sul.

E existem algumas experiências de projetos que atendem os agressores. Tivemos a apresentação da psicóloga Ivete Vargas que mostrou o baixíssimo índice de reincidência desses agressores quando eles começam a ser colocados enfrentando a violência que eles mesmos provocam. Aí entra o elemento que é a questão da masculinidade tóxica e entra outro que é a construção da masculinidade que nem sabe que se está recebendo, como através da pornografia. A masculinidade tóxica, a maneira como foram construídas essas informações que vão sendo passadas, bombardeadas, impostas, é um processo que temos que pensar, sobretudo esse uso da pornografia de forma tão profunda.

Esse é um elemento que temos que aprofundar, desde que esse valor para execuções desses atendimentos não saia das mulheres. Enquanto não entendemos que os agentes precisam de acompanhamento vamos continuar só enxugando gelo das mulheres, porque esse homem vai terminar esse relacionamento, a mulher vai conseguir romper o ciclo de violência e ele vai fazer outras vítimas. Enquanto os homens não conseguirem entender e rechaçar esse comportamento, não vamos avançar. Alguns elementos dessa masculinidade tóxica tem a ver com a pornografia, que tem a ver com a sexualidade de uma maneira muito vinculada a cultura do estupro, da violência, mas tem a ver também com a não discussão pelos homens dos sentimentos.

O único respiro para nós é esse trabalho ser muito incisivo nas escolas, só que estamos enfrentando um processo de Escola Sem Partido, demonização da ideologia de gênero. Esses são elementos que nos preocupam e que estamos batendo.


"Enquanto os homens não conseguirem entender e rechaçar esse comportamento, não vamos avançar" / Foto: Fabiana Reinholz

BdFRS: Qual é o desafio agora?

Ariane: Romper a barreira da imprensa, o que está dando notícia é sangue nas páginas, e sobretudo sangue das mulheres. Se a capa do jornal é isso e não conseguimos espaço no mesmo jornal para dizer o que esta acontecendo, e que nem tudo é terra arrasada, que tem gente trabalhando para isso não acontecer. Vai ser difícil dar espaço para os servidores e para os deputados de oposição, porque vamos bater no Bolsonaro e no Leite porque eles são os responsáveis, os gestores públicos brasileiros e gaúchos, hoje, são responsáveis pelas mortes das mulheres. A negligência de recursos públicos para garantia das nossas vidas sendo um direito condicional não pode ser aceita como algo como comum. As mãos deles também estão sujas de sangue. Tem orçamento que deveria ter sido executado, é uma afronta às nossas vidas ser a maioria da população desse estado e ter R$ 40 mil ao total de valores  apresentados pelo Governo Leite para garantir os nossos direitos, e milhares e milhares de reais em benefício fiscal.  

O dinheiro não acabou, optaram para o dinheiro acabar para isso, para outras áreas tem. Existe uma opção política, e a opção política é retirar o tema dos Direitos Humanos das mulheres da pauta prioritária dos debates, da agenda pública, e nós queremos entrar, e por isso não estão nos dando espaço para falar.

Não tem política de prevenção, de renda, de habitação, não estão discutindo a vida das mulheres na transversalidade das políticas públicas, a situação não vai melhorar, vai piorar. As nossas ações do parlamento são paliativas e são porque estamos fazendo uma ação que o Executivo deveria fazer. E mesmo assim, nós conseguimos por causa das defensoras, das promotoras, das delegadas, das brigadianas, das funcionárias públicas do Estado do Rio Grande do Sul. As mulheres estão lutando junto com as mulheres para que a gente não morra. Temos alguns deputados homens que trabalharam nisso, além do Jefferson Fernandes, o Edegar Pretto, Valdeci Oliveira, Pepe Vargas,o Fernando Marroni.

Nosso desafio é fazer com que as emendas, os R$ 3 milhões sejam aplicados.

 

Ariane é advogada feminista e especialista em Direitos Humanos. Autora do livro Tráfico de Mulheres: a exploração sexual no Brasil e a violação aos direitos humanos, consultora em feminismo, direitos humanos e políticas públicas, com artigos e textos publicados nestas áreas de conhecimento. Foi Secretária Estadual de Políticas Para Mulheres do Rio Grande do Sul e vereadora na cidade de Porto Alegre, onde é de sua autoria a Lei 12.105/2016, que determina que “todos os veículos que fazem transporte público na cidade disponibilizem os números de atendimento às mulheres vítimas de violência”. Ativista feminista há 20 anos, é militante da Marcha Mundial de Mulheres, mãe do Francisco e atua ainda, junto aos temas da infância, juventude e relações familiares. No Legislativo Gaúcho, foi Coordenadora da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e atualmente Coordena a Comissão de Segurança e Serviços Públicos e a Força-Tarefa Interinstitucional de Combate aos Feminicídios.

 

Edição: Marcelo Ferreira