“Para o Estado e a sociedade, parece que existem somente 440 mil homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28 mil desses presos menstruam.” Com a frase de Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária nacional para as questões femininas, em artigo de setembro de 2009, a jornalista Nana Queiroz abre seu livro, Presos que Menstruam, lançado em 2015, que retrata vidas de mulheres dentro das prisões.
Vidas que a assistente social e mestra em ciências sociais, Daiana Maturano Dias Martil, acompanha há sete anos atuando na Penitenciária Feminina Madre Pelletier (PFMP), primeiro presídio feminino do Brasil. O prédio rosa desbotado, em forma de convento, inaugurado pela Congregação Bom Pastor D’Angers, na década de 30, tinha como objetivo readequar as mulheres a seus papéis da época, de boa mãe e boa esposa, reprimindo-as, não importando muito seus atos, mas sua moral. Na década de 70, o Estado passa administrar em conjunto com a congregação e, a partir dos anos 90, assume por completo.
Ao se falar em encarceramento feminino, é preciso falar da realidade existente no país, que atualmente ocupa a 4ª posição no ranking mundial. De acordo com o levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2018 (INFOPEN), do Departamento Penitenciário Nacional, órgão ligado ao Ministério da Justiça, no período de 2000 a 2016, o aumento do encarceramento feminino foi de 656%, bem acima da média masculina, que foi de 293% no mesmo período.
Segundo o levantamento de 2017, existe no país 37.828 mulheres privadas de liberdade. Tendo como maior delito o comércio ilegal de entorpecentes, correspondendo a 62% do total de presas. O país tem hoje cerca de 1.070 unidades masculinas, 238 unidades mistas e 103 unidades femininas. No Rio Grande do Sul (RS), eles estão divididos em 10 grandes regiões, sendo que em apenas 4 tem complexos femininos, totalizando 5 estabelecimentos prisionais exclusivos para mulheres em atividade, 17 unidades mistas e 74 unidades masculinas.
O maior presídio feminino é a Penitenciária Estadual de Guaíba, com capacidade para 432 presas, contudo, somente no mais antigo, o Madre Pelletier tem estrutura para receber as crianças. Considerado a porta de entrada para as mulheres em sistema prisional, atrás das suas grades vivem 270 mulheres encarceradas, sendo a maioria jovem, como aponta o quadro geral do país, de jovens entre 18 e 29 anos (mais de 70%), com baixa escolaridade, pobres, oriundas de ambientes violentos.
As penitenciárias femininas, segundo aponta Daiana, trazem uma peculiaridade: enquanto na maioria dos estados brasileiros o sistema carcerário feminino é em sua maioria negra (62,5%), aqui há uma porcentagem maior de brancas (51%).
É nesse ambiente que se descortinam histórias de amor, de erros judiciais .
O Brasil de Fato RS conversou durante uma hora com Daiana, sobre a funcionalidade do Madre, a precarização do sistema e os lapsos do mesmo, e um pouco da vida das mulheres dentro do Madre. Ela conta que o interesse em trabalhar dentro do sistema penitenciário surgiu quando ainda era adolescente, ao assistir uma reportagem sobre o trabalho do profissional de Serviço Social dentro de uma penitenciária no Rio de Janeiro. Apesar de toda a precariedade do sistema, com salários parcelados por mais de cinco anos, Daiana mantém ainda, assim como seus colegas, vivo o trabalho. “Os presídios nada mais são do que uma manifestação do que é aqui fora. Onde o Estado não exerce seu papel de manutenção de política pública o tráfico entra, banca e mantêm”.
Ao se analisar o alto índice de encarceramento, para ela, seria preciso uma política de redução de danos, como por exemplo, a prestação de serviços voluntários para delitos menores.
Esta entrevista faz parte da série especial sobre o 8 de Março realizada pelo Brasil de Fato RS. Confira:
Brasil de Fato RS: O Brasil ocupa o 4° lugar no ranking dos países com maior população prisional feminina. Em sua opinião, a que se deve isso?
Daiana Maturano Dias Martil: Acho que não só com as mulheres, esse lugar no ranking mundial não é à toa. Em números totais é o terceiro maior do mundo, só perde para a China e para os Estados Unidos que tem uma população muito maior que aqui no Brasil.
Desde 2006, quando começou a lei antidrogas, a lei que eles chamam de tolerância zero, aumentou muito o encarceramento, porque agora quem é pego com qualquer quantidade de droga é considerado traficante. Não é novidade que o maior número de prisões no Brasil, inclusive das mulheres, é como traficante, com o tráfico de drogas. Para mim é isso, a política, o sistema de Justiça Criminal, que aumentou em demasia a questão das mulheres aprisionadas.
BdFRS: Qual o perfil das mulheres no Madre?
Daiana: Não é muito diferente do resto do Brasil, são mulheres jovens, a maioria até 25 anos de idade, com baixíssima escolaridade, trabalho geralmente informal ou nenhum, ou muito precarizado, mães (é um dado bem importante, com no mínimo um filho), vem de comunidades carentes e muitas vítimas de violência da família, do companheiro, são oriundas de questões familiares violentas.
BdFRS: Qual o número de mulheres encarceradas no Madre atualmente? Um panorama geral do funcionamento.
Daiana: No momento há 272 presas. O Madre é o primeiro presídio feminino do Brasil, foi comprovado, pela historiadora Débora Karpowicz que fez uma reconstituição histórica.
Ela foi inaugurada em 13 de dezembro 1936. Obviamente que naquela época era uma Escola de Reforma Social, até porque os crimes naquela época eram, prostituição, aborto, e pessoas com problemas de saúde mental que também eram presas, porque eram consideradas arruaceiras, que viviam de vagabundagem. Começou o encarceramento ali, com uma instituição católica administrando. Em 1972, a SUSEPE entrou, administrando juntamente com a congregação, 50% cada. Em 1994, a SUSEPE passa a administrar integralmente.
Supostamente o presídio é para presas provisórias, que não tem condenação definitiva. Mas tanto o Madre Pelletier quanto à Penitenciária de Guaíba tem ambos os regimes. Nós temos presas condenadas e, assim como na Penitenciária de Guaíba, presas provisórias, mas a grande maioria do Madre é de presas provisórias.
Elas são classificadas e separadas conforme a situação prisional. A galeria D que é a mais lotada ficam as presas provisórias ou que não tem condenação, muitas entraram mais de uma vez, mas em nenhuma delas teve condenação. Tráfico, furto e roubo geralmente são os crimes da galeria D.
A B2 é uma continuação do D. Uma galeria menor, que tem em torno de 30 presas. Ali ficam as que uma questão de saúde mental, vulnerabilidade mental. Também presas jovens, as que não tem nenhum tipo de vinculação criminal, com coletivos criminais. O espaço é para as provisórias.
Há o salão B2, um grande salão também com o mesmo perfil. O salão B1, para gestantes de até sete meses de gestação, depois que se completou esse tempo, a presa vai para uma unidade específica, que é a unidade materno infantil, onde ficam as mães com os bebês até um ano de idade.
A galeria B4 que tem em torno de 40 presas, chamada de Seguro, tem mulheres presas por crime sexual, crime contra o filho (infanticídio), maus tratos, crimes contra os pais.
A galeria C é para as presas que trabalham na cozinha e na limpeza do presídio. Tanto a comida para as presas quanto para os funcionários são feitas por elas.
E a galeria B3, onde a maioria é presa condenada ou estão para receber a condenação. Ali a maioria trabalha nas empresas que se tem do Madre. Temos uma empresa de reciclagem de resíduos eletro-eletrônicos, a empresa Direma de temperos, a empresa Tricouros, que é de fabricação de bolsas.
BdFRS: Gostaria que falasse um pouco sobre ser mãe no presídio e a solidão. A situação das visitas.
Daiana: O que eu sei é que as que recebem visita do companheiro são em torno de 30 mulheres. Os que visitam, ligam para gente para saber como elas estão, levam os filhos, familiares, como elas dizem, puxam a cadeia com elas.
Quem visita mais são as mães, ou uma outra figura feminina da família, tia, avó - muitas são criadas por avó, irmã, uma madrinha. O dia dos filhos é separado, é um dia especial e só entra com o responsável.
Sobre a questão de ser mãe, temos duas questões: a que está gestante ou está com o filho até um ano de idade; e tem aquelas que o filho ficou na rua. Logo que eu entrei no presídio, trabalhei na unidade materno-infantil. Na época eu ainda não era mãe e ficava pensando: será que se eu fosse presa ia querer que meu filho ficasse aqui dentro desse contexto? Porque por mais que se tente humanizar o ambiente, ainda é um presídio, não importa. Porque se tem uma briga na galeria de cima, a criança vai escutar, a movimentação, a policia entrando. As crianças vivenciam o cárcere, não tem como desassociar.
Tem uma colega, Daniela Canazaro de Mello, psicóloga, que trabalha há anos na unidade materno infantil, e que a tese de doutorado foi sobre a condição das mães. Temos uma unidade básica de saúde, o que não é realidade em todos os presídios. É o único presídio do RS que tem Unidade Materno-Infantil. Guaíba já teve, mas foi interditada e fechada.
As presas têm o bebê no Hospital Presidente Vargas. Temos no Madre um pediatra e uma médica da saúde da família, que faz também o acompanhamento pré-natal. A vacina dos bebês é feita em um Posto de Saúde da rua.
Quando eu entrei no Madre, eram 27 presas com bebê, agora são 11. Esse declínio de mulheres grávidas ou mães com bebês é em função da Lei nº 13.769, de 19/12/2018, que prevê a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência.
Meu trabalho de mestrado foi em cima disso, uma análise sobre despacho do juiz e seus argumentos para conceder e negar a prisão domiciliar. Quando concediam, diziam que a mãe era imprescindível para o cuidado do filho, e quando era negado tinha questões bem machistas, pejorativas. Por exemplo, a droga foi pega em casa, então significa que não é uma boa mãe porque deixou os filhos naquele contexto. Uma juíza chegou a dizer que não tinha motivação para dizer que a mulher fazia bem para o pequenino menino, não tinha questões de maus tratos, era de tráfico também, mas não tinha nada que desabonasse a conduta de mãe.
É um contexto delicado, as crianças ficam até um ano de idade, tem um trabalho direto com a Vara da Infância e Juventude Porto Alegre para fazer o que a gente chama de desligamento da criança. Processo feito a partir dos seis meses. A pessoa que vai ficar responsável, seja a avó, algumas vezes o pai, familiar ou outro tipo de responsável, trará a criança para visitas, pelo menos uma vez ao mês.
Mas tem alguns casos, como por exemplo o familiar que é de fora do estado: essa mãe, que tem uma pena a cumprir, verá raramente a criança. Ou há casos que a família é muito pobre e não tem condição financeira, daí tentamos articular com o Conselho Tutelar, com o CRAS para poder trazer essa família para as visitas.
E há as mães que quando vão presas, os filhos estão em casa. Nossa maior demanda é em função dos filhos. Quando sabemos desses casos fazemos um relatório, encaminhamos para Vara informando sobre a situação do filho, quando as mães não têm ainda a condenação. Muitas vezes o pai também está preso. Algumas recebem prisão domiciliar e outras não. Os filhos ficam com o familiar ou vão para o abrigo. Tem um caso de uma mãe com 13 filhos, desses, nove eram menores de idade e foram para o abrigo. Tanto a mãe quanto o pai foram presos por tráfico.
Teve o caso de uma mulher que estava no “seguro”, mas ela tinha uma questão de saúde mental acentuada em que o juiz proibiu as filhas de a verem, e elas me ligavam pedindo que as deixasse ver a mãe. Foi feito todo um processo, muitos pedidos, daí um ano conseguimos a modalidade de visita assistida, que é uma situação quando o juiz quer uma análise para ver se aquela visita fará bem para criança. Ou outra situação especial, quando a criança está no abrigo, ou os filhos estão na FASE, tem criança cadeirante e outras situações especiais. Aí a assistente social e psicólogo acompanham durante a semana, em uma sala especial com brinquedo, todo esse cuidado para preservar a integridade da criança.
BdFRS: Sobre as presas com doença mental, esse processo de levá-las para prisão...
Daiana: Qual é o principal problema? Muitas dessas mulheres não são interditadas. Estão em uma situação de vulnerabilidade. Tem muita moradora de rua, que estão muito degradadas mentalmente pelo uso de droga, por morar na rua, isso acarreta um adoecimento muito grande.
Mas o que mais me choca no momento é que agora elas passam por audiência de custódia, com um promotor, um juiz, um defensor, e ninguém observa o estado daquela mulher. E é nítido seu estado, ela não se comunica, não fala coisas coerentes, como se ela tivesse um outro mundo, e não identificam isso. Eu já tive casos, por exemplo, de uma menina que não era interditada, mas já tinha um encaminhamento, um expediente do Ministério Público por maus-tratos do padrasto e da mãe, em que ela era abusada pelo padrasto. E o que ela entendia na cabeça dela, tinha 21 anos, mas agia como se fosse uma menina de 8 anos. Ela pensou que se pegasse aquele colchão onde ela sofria os abusos e botasse fora, os abusos iam parar. Pegou o colchão e botou fogo. Os vizinhos não sabiam o que acontecia, chamaram a polícia e a levaram presa por incêndio criminoso.
No momento que elas entram, há um formulário de triagem em que se pega todo o contexto, e quando ela chegou na minha frente, chamei a psicóloga porque percebi que tinha uma situação delicada. Ela ficou dois meses presa provisoriamente, saiu e foi direto para um abrigo, porque já tinha um processo de maus tratos.
Não sei se esse padrasto foi indiciado ou não, porque não temos “pernas” para acompanhar todo o processo, porque temos uma equipe reduzida, somos três assistentes sociais para 270 presas. Muita pouca gente para o número de prisioneiras, e se pensar que cada ano aumenta mais, esse deficit vai aumentar.
Outro caso que peguei, uma usuária de droga que não sabia nem o próprio nome, idade, só sabia dizer o nome da mãe. Ela era da comunidade Nazaré, que é muito precária, violenta, uma questão de coletivo criminal muito acentuado. Ela nunca tinha feito RG, CPF, não tinha nada, e foi pega como traficante. Ela fazia uso, vendia e consumia. Consegui descobrir que ela tinha sido registrada no Cartório da quarta zona, fizemos a identidade dela.
Nesse meio tempo, encaminhamos, através do setor jurídico, para ela ser interditada. Ela achava que eu era professora dela, que estava em um colégio, e o pátio para pegar sol era o recreio, porque tinha escola lá dentro, onde ela fazia “desenhinho” como se estivesse em um maternal.
BdFRS: A questão da violência no presídio feminino. Há uma discussão de como as facções dos presídios masculinos estão se reproduzindo nos femininos também.
Daiana: Temos uma questão muito nítida. O que acontece no Madre, como é para presas provisórias, e que tem mulheres com problema de saúde grave, a prisioneira quando chega passa pelo setor de segurança, e se ela afirma ser de facção, vai para penitenciária de Guaíba, que está atualmente como o presídio Central, dividido por facção.
As presas que vêm transferida do Guaíba, quando têm que trabalhar, ao chegar no Madre, a maioria, fica aliviada por estar ali, porque é aquela situação que a gente conhece, quem é líder manda, se está devendo droga pode complicar, apanhar. No Madre também tem briga, mas acredito que em um número muito menor, e mais por conta da convivência.
BdFRS: Há também as relações que vão se formando lá dentro.
Daiana: Algumas são abandonadas pelo companheiro, ou não tinham, e ali elas se permitem vivenciar uma relação com outra mulher. Em alguns casos é duradouro, outros é só durante o período da prisão. Já aconteceu situações de meninas que quando entraram na prisão adotam uma estética mais masculina, passam a ter uma companheira que é bem feminina, e quando saem da prisão, já cheguei a encontrar com uma delas na rua, cabelo comprido de novo, trajada de outra forma, com o namorado do lado.
Elas se permitem. As que têm relacionamento prolongado, quando transferem a parceira, incomodam, gritam, se cortam até ser transferida para ficar com a companheira. Elas têm um envolvimento quase simbiótico, não conseguem ficar longe.
Há casos que as duas são bem femininas, outras que escondem. Teve um caso em que o companheiro visitava, sabia que sua companheira tinha uma parceira lá dentro e exigia que ela cuidasse dela, que se acontecesse alguma coisa, a culpa seria dela.
BdFRS: Quais são os maiores desafios do sistema penitenciário feminino?
Daiana: Para as presas é tentar manter a sanidade mental e não se institucionalizar. É tudo muito coletivo lá dentro, dormitório, banho, pátio. Tu não tem um momento de silêncio.
Nós, quando estamos estressadas, sobrecarregadas, precisando silenciar para se organizar, poder dormir, descansar, relaxar, tem isso, elas não. Para mim isso é muito insalubre.
Muitas vezes elas me dizem assim: eu só vim aqui para chorar na sua frente, desabafar, porque eu não posso fazer isso na minha cela, porque não posso pesar a cadeia das outras. O espaço que elas tem para lidar com a individualidade é dentro do setor técnico. Elas também tem um bom vínculo com o setor de segurança, que tem uma compreensão mais humanizada, mas nem sempre foi assim.
Temos uma precarização muito grande. Tu trabalhas lá dentro e nem sempre consegue fazer o que precisa ser feito, às vezes tu não tens uma resposta da rede com política pública para tranquilizar aquela presa, para ela ter acesso, ou casos gritantes de injustiça. O desafio é não perdemos a vontade. Estou há sete anos, ainda tenho gás, estou conseguindo. Tem também a política do governo estadual, precarização do trabalho, salário atrasado há mais de cinco anos, local insalubre, isso que eu não faço plantão como os agentes penitenciários, um caso mais delicado, eles dormem lá dentro, passam uma quinzena longe da família. Então o desafio é nunca esmorecer, manter a garra para fazer o trabalho.
BdFRS: Como fica a questão de reinserção dessas presas?
Daiana: Minha experiência nesses sete anos no Madre, é que não há reinserção. Tu reinsere quem já foi inserido em alguma coisa. Tu vê o perfil: baixíssima escolaridade, trabalho normalmente precário ou informal, ou nunca tiveram vínculo empregatício. Vem de um contexto familiar de violência transgeracional, vem da avó, da mãe, já está indo para filha.
Tem o detalhe que aqui no RS, e na região sul, as presas são 51% branca e 49% negra, diferente do resto do país. Mas mesmo assim segue o padrão nacional: a primeira política pública que o negro e o pobre tem acesso é a política de segurança, sendo preso, sendo abordado na rua.
A questão da educação: meninas que estudaram até a quinta série e tiveram que parar, por ter que trabalhar, porque ficaram gestante ou outra situação que não conseguiram se manter. Na saúde: muitas com a saúde debilitada, não têm acesso. Muitas dizem, estou tendo tratamento de primeira, pela primeira vez na vida, e foi dentro de um presídio.
Temos uma escola lá dentro, um EJA, pode fazer o ensino fundamental e médio lá dentro. Mulheres que entram analfabetas, semi-analfabetas, aquelas que são condenadas, conseguem terminar o ensino médio. Então tem uma coisa muito errada. “Ai que legal, manda pro presídio, lá vai trabalhar, vai aprender uma profissão, estudar, vai ter tratamento de saúde”. Não, presídio é para tu ou responder provisoriamente, ou para cumprir tua pena.
É importante ter tudo isso, mas sabemos que na prática não funciona. Elas tinham que ter tido esse acesso lá na rua, para justamente não ter que estar presa agora. Essa é uma critica importante. Tu não vai reinserir ninguém porque ela nunca foi inserida.
A primeira vez é isso, muitas estão tendo acesso à política pública dentro do presídio. Muitas dizem que foi até bom. Algumas que vêm por furto, tráfico e que entram mais de uma vez, porque elas voltam, muitas vezes ela não vai conseguir atendimento no Capes para fazer o tratamento, para ter acesso à medicação, atendimento com psicólogo, não vai conseguir um EJA, não vai ter um trabalho, ou vai ter um trabalho informal, precário. Assim acabam reincidindo no tráfico, roubo, furto.
No meu levantamento, 64% estava respondendo por tráfico, 7% por furto, 7% também era por assalto 6% responde crime de homicídio que é considerado um crime grave, e desses 6% poucas tinham cometido o delito, e sim presenciado. Por exemplo, se eu botasse em prisão domiciliar todas as mulheres que respondem os requisitos, esvaziaria o Madre, só ficando casos graves.
É preciso pensar quem eu estou prendendo. Crimes comuns, que não têm potencial ofensivo, que não têm violência, como furto de supermercado, roupa, fralda, poderia ser resolvido de outra forma. Uma mulher que atendi, ela tinha um filho de cinco dias e ela foi presa por roubar pacote de fralda da Turma da Mônica.
Na minha avaliação, poderia potencializar o que elas têm, colocá-las para fazer trabalho voluntário em uma creche, uma instituição que abriga crianças, ou asilo que atenda pessoas idosas ou com necessidades especiais. Isso seria bem profícuo também para o presídio masculino, onde pode haver um pedreiro, carpinteiro, pintor. Colocar para reformar escola pública, ter mão de obra, como se fosse um trabalho voluntário. Inclusive no tráfico poderia ser feito isso, tu pega uma usuária e põe para trabalhar, vai ser muito mais útil, porque se ela está dentro do presídio, está sofrendo violência, sendo oprimida, fica devendo para facção lá dentro, e quando sair para a rua, terá que fazer assalto e outras coisas porque os coletivos criminais têm regras e que são rigidamente cobradas.
É mais útil, tu responsabiliza a pessoa. Nosso país prende muito, então vamos tentar fazer uma redução de danos, pegar o potencial dessa pessoa e ocupá-la
BdFRS: Como fica a questão da vaidade e do ser mulher?
Daiana: No Guaíba elas usam uniforme, calça laranja, que parece um saco de batata, uma camisa branca, no Madre não tem uniforme. Por que essa diferenciação? Não faço ideia. Acredito que a penitenciária de Guaíba deveria ser um padrão a ser seguido até pela sua estrutura arquitetônica.
O Madre, que a gente chama de porta de entrada para as mulheres em situação de prisão, acaba tendo um diferencial. Claro que tem regras, não podem usar roupa preta porque é a cor dos agentes penitenciários, não pode usar roupa curta, coisas assim bem machistas valorativas. Mas elas usam maquiagem, por exemplo, temos uma presa que trabalha no salão, tem cabeleireira, muitas se viram lá dentro fazendo as unhas uma das outras.
É preciso observar que a questão da segurança pública é um ambiente feito por homens, para homens, pensado por homens. Eu fico imaginando a questão das mulheres que estão em presídios masculinos, em uma ala, ou em uma cela feminina. É muito pior, porque a prioridade é sempre dos homens, primeiro é a visita dos homens, pátio dos homens, primeiro os homens, depois as mulheres. O Madre e o Guaíba são mais fáceis porque são só para mulheres, mas são ambientes ainda muito opressivos, a opressão masculina está ali.
No Madre temos uma diretora de presídio, no Guaíba, nesse momento é um homem, não há um impeditivo, tem que ser dentro das profissões: sociólogo, advogado, psicólogo, assistente social ou pedagogo. Assim como nos presídios masculinos pode ter uma diretora mulher. No Madre o histórico é só de mulheres.
O Madre é o olho do furacão, qualquer coisa que acontece o pessoal vai lá, não no Guaíba.
BdFRS: Como fica a questão das atividades culturais e a questão da religião dentro do Madre? Por exemplo, no presídio Central há uma ala dos evangélicos.
Daiana: Sobre a questão as atividades culturais, depende do governo, da política pública que se faz, da gestão, da direção, se tu tem o número de agentes penitenciários mínimo para fazer a demanda da escolta, da movimentação delas, depende muito. Já tivemos muito momentos interessantes, no ano passado muito pouco ou nada.
Temos quase todas as religiões, menos de matriz africana, não que não se possa, mas não nenhuma que esteja dentro do Madre, mas pode ser feito lá. Temos espíritas, católicos e as evangélicas, que são muitas, um leque muito grande.
O Estado deixa de fornecer o que é sua obrigação e quem faz são as igrejas, as evangélicas muito mais. Tenho uma critica a isso, o Estado se retira, coloca as presas lá para dentro, para fazer material de higiene, roupinha para os bebês entre outras coisas, até cursos, que geralmente quem ministra, na maioria das vezes, está ligado às igrejas. É muito delicado. Claro, tem que oferecer todas, pois estamos em um país com uma diversidade religiosa muito grande, mas tu vê o domínio igrejas evangélicas nos presídios no Brasil.
No Madre estão todas as religiões misturadas, sem uma ala especifica. Há cultos.
Não vou desmerecer o trabalho dos voluntários que realmente tem uma assistência espiritual, e que para algumas das presas faz muito bem. Mas a gente sabe que é justamente quem está em cima, não as pessoas que estão ali para pregar a palavra, mas quem está no topo, tem outro entendimento de domínio.
Tem uma questão que a gente sabe que pode acontecer, que é a privatização do presídio, quem é que vai ser o dono dessas empresas? Instituições religiosas, pessoas ligadas à instituições religiosas, talvez. Sempre tem esses poréns que sabemos que acontece.
Volto a repetir, é importante, tem que ter isso (religiões), mas também é uma forma de controle. Já ouvi, de colegas da segurança pública dentro do presídio, é bom que a igreja venha para acalmar, para elas se aquietarem, não brigarem. Isso é um controle, elas não manifestam o que estão sentindo porque a questão religiosa suprimiu o sentimento, digamos, de transgressão.
Os presídios nada mais são do que uma manifestação do que é aqui fora. Onde o Estado não exerce seu papel de manutenção de politica pública o tráfico entra, banca e mantêm.
Edição: Marcelo Ferreira