"As esquerdas seguem fragmentadas e com poucas chances de chegarem ao segundo turno"
As eleições que se avizinham já nos indicam que teremos um número recorde de candidaturas para o Paço e para a Câmara Municipal de Porto Alegre. Em virtude da mudança na política que definiu o fim das coligações partidárias, os partidos devem querer testar a força das suas siglas, lançando, na proporcional, candidaturas coletivas e nomes de pessoas com expressão pública, inclusive aquelas fora da política partidária tradicional.
O foco da esquerda deverá estar nas pautas identitárias, temáticas e dos novíssimos movimentos sociais. A direita deve vir fragmentada. A esquerda está em busca de unidade em um processo de negociação que envolve movimentos sociais, partidos e as suas principais lideranças políticas. As frentes em defesa da democracia da Capital reivindicam, especialmente, políticas públicas de educação, cultura, saúde e segurança em prol da dignidade humana. Acredito que o entrelaçamento das políticas da cultura, da educação básica e da segurança pública municipal possa garantir um resultado semelhante ao que foi a experiência do Orçamento Participativo de Porto Alegre, reconhecida mundialmente.
Para ilustrar, em abril do ano passado, o músico Nei Lisboa deu uma entrevista inédita para o Sul21 em que trouxe a preocupação geral com o atual momento político brasileiro e específica com os rumos da cultura no país. O ano estava apenas começando e o desgoverno Bolsonaro também. O que era medo e probabilidade tem se tornado, infelizmente, realidade. O Secretário Nacional de Cultura, Alvim, com o seu discurso, música e cenários de inspiração nazistas escancarou o projeto político nacional em curso e foi exonerado. Na sua visão, “forças sobrenaturais” (sic!) foram responsáveis por sua queda. Para substituí-lo veio a atriz global Regina Duarte com noivado, casamento e direito a vestido branco na cerimônia de posse, consolidando a representação social atribuída às mulheres, de subserviência, no espaço público. Dessa forma, ganhou “carta branca” do Presidente.
A carta branca para a polícia matar também se materializou com a política de flexibilização de armas e munições permeada por um discurso institucional de ódio, racista e higienista, vocalizado pelas maiores autoridades políticas nacionais – da União aos Estados (como o caso do famigerado governador do Rio de Janeiro). O projeto de não marcação das munições utilizadas pelas forças de segurança pública, aliás, além de ir de encontro ao que prevê o Estatuto do Desarmamento, pode significar um dedo a mais no gatilho responsável pelo aumento da letalidade policial em um contexto de crescimento exponencial das mortes decorrentes de intervenção policial, como apontam os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Anuário 2019), sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo. A propósito, o governo de São Paulo, com o Doria, acabou de não reconduzir o melhor Ouvidor de Polícia que o país já teve: o Sociólogo Benedito Mariano. Pelos seus méritos Mariano não foi mantido na função. Por mais de uma vez, demonstrou, com evidências, as fragilidades da política de segurança e das operações policiais paulistas nas mortes descabidas de civis de periferia, majoritariamente, jovens pretos e pobres, de que as mortes em Paraisópolis em dezembro passado, lamentavelmente, são um exemplo notório!
Olhando para a nossa ilha, Porto Alegre, temos a decadência da cultura e, muito em voga, a ideia de privatização dos equipamentos e ativos culturais públicos, tais como o Capitólio, motivo de um enorme abraço simbólico neste último sábado. E há o aumento da violência, sobretudo dos feminicídios, que triplicaram em janeiro de 2020, no Rio Grande do Sul, em relação ao mesmo período do ano passado. A banalização da violência cotidiano choca e impressiona. O triplo homicídio que vitimou uma família inteira no Lami, na Capital, por conta de um conflito corriqueiro de trânsito é só mais um trágico efeito do “bolsonarismo” e do descontrole das armas no Brasil.
Nesse sentido, o assassinato do Well Mc de 17 anos na Zona Leste da cidade no dia 1º de fevereiro testemunha bastante para mim o que significa a falta de investimentos, sobretudo na cultura na e para a morte de jovens negros de periferia. Cada vez mais jovens! Explico. Mc Well tinha o sonho de fazer sucesso com o seu rap. Depois do assassinato do padrasto que o criou, ele resolveu falar de violência e de sobrevivência nas comunidades, de violência policial, da falta de oportunidades e da sua esperança por um outro futuro. Ele fez muitas pessoas sonharem nas batalhas de rap nas periferias de Porto Alegre. Referência na Escola Estadual Gema Abelia e destaque junto ao “Projovem Adolescente SEME”. Estava fazendo estágio no Banrisul. Foi morto perto de casa, na madrugada, muitos tiros. Um vídeo da sua execução foi postado nas redes sociais e visto por amigos, inconsoláveis no seu enterro. Ele foi morto com a carteira de trabalho na mão, dizendo não ter relação com facções e com o crime. Mas os meninos que o mataram acharam que ele estava “disputando a área” e por “contenção de território”, como teriam dito no vídeo, mataram sem titubear um poeta.
O velório foi triste e potente. Muitos amigos do Well o homenagearam. Eu e meu marido éramos uma das únicas pessoas brancas lá. Pude me pensar como mulher branca privilegiada. De repente, eu achando que veria uma cerimônia religiosa de matriz africana fui surpreendida. Estava lá um pastor, “tocando a alma”, como ele disse, e prometendo recompensas aos fiéis. Os presentes, a maioria jovens, sabiam de cor os trechos da bíblia que o pastor mencionava. Era um coro ensurdecedor. Todos nós demos as mãos para a oração final. Difícil não se converter, o jeito de fazer a prece acalentaria até os corações mais duros. Lá estava uma coroa do Projovem ao lado do caixão. E no cortejo do seu corpo os jovens cantavam um dos seus poemas mais conhecido, muito emocionante: “quem vem de uma favela onde nunca devemos matar, mas sempre morremos por ela”.
O que mais dizer? A cultura e a educação unem, salvam e eternizam os jovens e sonhos de muitas vidas - com reconhecimento e direitos, mas sem a segurança dos seus direitos mais básicos, de ir e vir protegidos, mesmo perto de casa, os sonhos são interrompidos e milhares de vidas são impactadas. Um a cada quatro brasileiros acima de 16 anos já perdeu alguém próximo, segundo pesquisa encomendada pela campanha Instinto de Vida ao DataFolha em 2017! São 60 mil vidas perdidas todos os anos no Brasil, 70% delas de jovens negros periféricos e com uso de arma de fogo. Para revertermos a política da morte e da guerra contra a pobreza será necessário valorizarmos a vida, insurgindo-nos contra a aceitação desses altos índices de mortalidade violenta. Para isso, é necessário entrecruzarmos as políticas de educação, cultura, saúde e segurança em um novo modelo de prevenção social das violências que dispute os jovens, simbólica e materialmente, criando alternativas ao conformismo da metafísica religiosa e à “guerra às drogas”.
Eis o desafio dessas eleições municipais. Enquanto isso, as esquerdas seguem fragmentadas e com poucas chances de chegarem ao segundo turno, levando-nos ao abismo da falta de soluções em razão de disputas de nomes que ganha a agenda pública ao invés de trazerem à tona as carências geradas pela falta de gestão pública qualificada, de participação social e de compreensão dos problemas públicos adaptada ao século XXI – sem esquecer que a maioria da população sequer chegou ao século XX! Para construímos uma cidade mais humana precisamos resgatar e semear o valor da vida, da empatia, dos sonhos, da sensibilidade, da escuta, superando o autoritarismo de determinados políticos, inclusive aqueles ditos de esquerda, que se infiltram como pastores que exploram as fragilidades deixadas pelos governos e interditam sonhos e ideais.
Edição: Katia Marko