Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Homem Mãe: ‘Destino do homem é amar alguém, amar os outros, estar em comunidade’

Inspirada no universo de Valter Hugo Mãe, peça está no Porto Verão Alegre nos dias 31 de janeiro, 1º e 2 de fevereiro

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, diretor fala da peça e do atual contexto da cultura no país
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, diretor fala da peça e do atual contexto da cultura no país - Foto: Ariel Aguiar

A democratização dos meios de produção teatral, o acesso das camadas sociais menos favorecidas e a transformação da realidade através do diálogo são elementos que caracterizam o Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. São características pertencentes ao universo teatral de Fernando Kike Barbosa, que entre os dias 31 de janeiro e 2 de fevereiro leva ao palco da Sala Carlos Carvalho, às 20h, dentro da programação do Porto Verão Alegre, a peça Homem Mãe. Livremente inspirada no romance O Filho de Mil Homens, do escritor português Valter Hugo Mãe, a peça trabalha com a dualidade de intolerância e preconceito, e amor e afeto.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Kike fala de como a peça conversa com o contexto atual que estamos vivendo no país e da sua trajetória. Em tempos de ataque às artes, o diretor defende a resistência: “A destruição que está se fazendo na cultura é intencionada, não é gratuita. Essas pessoas que estão lá sabem do perigo, sabem que cultura e educação são ferramentas poderosas na mão das pessoas, do povo, para se entender, conhecer e para transformar a sociedade.”

Kike começou sua trajetória com a Terreira da Tribo, em Porto Alegre, nos anos 90, com um teatro político, crítico, que estivesse sempre ligado com as questões sociais, não só em termos do discurso, mas em termos da prática também. Assim como apontou Boal: “Aquele que transforma as palavras em versos transforma-se em poeta; aquele que transforma o barro em estátua transforma-se em escultor; ao transformar as relações sociais e humanas apresentadas em uma cena de teatro, transforma-se em cidadão.”

Na peça, que estreia hoje, Crisóstomo, um dos personagens da peça, personifica esse cidadão, que na teia das relações humanas e sociais busca por sua metade que trará felicidade. “Ficaram ali, olhando para o mar, intensificados, alterados pelo amor. Eram tanto quanto possível os felizes. Porque a felicidade não se substituía ao resto, a felicidade acumulava-se. Eles acumulavam-se.”

Com direção e adaptação de Fernando Kike Barbosa, o elenco é formado por Edgar Rosa, Elaine Segura, Emílio Speck, Gabriela Magagnin, Katia Marko, Larissa Hoffmeister, Nathan Denck, Ofélia Ferretjans, Rosângela de Britto e Vinícius Magnus.

Veja abaixo a entrevista completa.

Brasil de Fato RS: Gostaria que tu nos falasse um pouco da peça. Como surgiu a ideia de adaptação e como foi o processo?

Fernando Kike Barbosa: O espetáculo é resultado do laboratório de pesquisa e montagem da Cômica Cultural, onde ministro aulas há alguns anos. Em 2015 eu andava lendo muito o Valter Hugo Mãe, e eu tinha ficado muito interessado, empolgado com a obra dele.

O livro O Filho de Mil Homens pareceu um texto muito propício para ser adaptado para o teatro. Eu apresentei para os alunos, atores do curso duas possibilidades de montagem de adaptação, uma era um texto do romance de um outro português, Mateu perdeu o emprego, do Gonçalo Tavares, que é outro autor que eu gosto muito, e que inclusive, talvez, será o tema da oficina desse ano. Levei o romance do Gonçalo Tavares e o do Valter Hugo Mãe, e o grupo escolheu o livro do segundo.

Eu fiz a adaptação, o livro é escrito basicamente em terceira pessoa, se não me engano, e eu passei muito para primeira pessoa. Muitas das descrições, das coisas que eram narradas em terceira pessoa, fui transformando em cena, e transformando também em falas para os personagens. Teve algumas cenas que eu criei, que não estão no livro, mas que são sugeridas. A gente pode imaginar que aquilo teria acontecido por detrás das descrições. Fomos ensaiando e a medida em que a gente ia avançando na história, eu ia trazendo para o grupo as novas cenas que ia escrevendo dentro da adaptação. Junto com o grupo, na hora de encenar, de verbalizar o texto, iam sendo feitos ajustes, cortes ou acréscimos na busca de achar o ritmo da cena.

Peça traz questões muito em evidência atualmente, como os preconceitos, intolerância e violência contra a mulher / Foto: Rose Pereira

BdF RS: Por que Valter Hugo Mãe, e essa obra em particular? Como ela conversa com o contexto que estamos vivendo?

Fernando Kike: O Filho de Mil Homens trata de questões muito presentes na nossa sociedade que estão em evidência atualmente, como a questão dos preconceitos, da intolerância e da violência, da não aceitação do outro. Aparece a questão da homossexualidade, a questão da violência contra às mulheres, o machismo.

Tem a personagem Isaura, que no livro original é a mulher que vai diminuindo, diminuindo, por ser maltratada pelos homens, por ser violentada, enganada, tripudiada, e vai secando um pouco, por falta de amor. Tem o Antonino que é um rapaz homossexual e que tenta se adequar dentro da sociedade, porque a sociedade toda ao redor dele diz que ele não pode ser assim, que é feio ser assim, que é pecado ser assim. Ele tenta se moldar, sofre com a situação, ele garante para mãe, ou promete para ela que vai tentar ser aquilo que não é.

Tem também a história que costura todo o romance. Na peça é esse menino perdido, que vai ser o filho de mil homens no romance. Um menino que perde os pais muito cedo, perde a mãe ao nascer, a mãe morre no parto, e é adotado por um casal de idosos, depois esse casal morre, ele fica sozinho no mundo e acaba sendo adotado por um pescador que é de onde parte a história.

A peça trabalha muito com essas polaridades, da intolerância, preconceitos dentro da sociedade, de como a sociedade é calcada em valores que às vezes são muito rígidos em relação a muitos segmentos. Tem a questão do fanatismo religioso também que aparece na peça, que hoje em dia é uma verdadeira praga no Brasil, a questão da perseguição das religiões afros, por exemplo. Isso não está na peça, mas tem esse lado das religiões neocristãs, ou cristãs mesmo, de qualquer maneira. Das pessoas que radicalizam, que entendem que o cristianismo, ou que a sua religião, seja ela qual for, é a única e verdadeira e que as outras devem ser eliminadas, que as outras são coisas do diabo. E baseado nesses valores que são radicalizados se exerce o poder sobre o outro, a violência sobre o outro, a marginalização do outro.

Ao mesmo tempo que tem todas essas questões cruéis, feias, violentas, tem também o outro lado, que é trazido pelo pescador que adota o Camilo, o menino abandonado. Esse pescador é muito devoto à natureza, a religião dele, digamos, é a natureza, uma religião politeísta. Um homem que chegou aos 40 anos, que se sente sozinho, não tem uma esposa, não tem filhos e resolve adotar uma criança. Ele sai pelo mundo à procura de um filho, e a partir do momento em que consegue adotar esse menino, aparece muito uma questão de afeto, a questão de um amor sem limites.

Essas duas forças na peça aparecem de forma muito contrastante e de forma bastante equilibrada. A peça ao mesmo tempo aponta o terror de coisas, o horror de muita coisa que está acontecendo no mundo, e que de alguma forma sempre aconteceu, mas que é, particularmente neste momento do Brasil. Muito presente, muito forte, mas mostra também esse lado esperançoso, esse lado de seres humanos que acreditam no amor, que acreditam na fraternidade, que acreditam no respeito.

O destino do homem é amar alguém, é amar os outros, é estar em comunidade, isso é dito na peça. Acho que ela traz muita essa questão de como a gente deve valorizar e cultivar a vida em sociedade, no sentido do respeito, do afeto, de construir o mundo com as outras pessoas de uma forma mais igualitária, mais humana, mas principalmente bastante amorosa.

"O destino do homem é amar alguém, é amar os outros, é estar em comunidade, isso é dito na peça" / Foto: Rose Pereira

BdF RS: Como tu analisas a situação da cultura e do teatro no governo atual?

Fernando Kike: Estamos vivendo um momento calamitoso na cultura. É evidente a intenção de desmonte deste governo, de destruir com os meios de estímulo e de sustentação da cultura, da educação, que no meu ponto de vista são sempre as primeiramente atacadas em governos autoritários, em governos que querem manter as pessoas sob o domínio. Se as pessoas têm menos cultura, menos educação, menos informação, têm menos chances de querer mudar, de entender o mundo que vive, o seu tempo, e transformar a sociedade para uma coisa um pouco mais justa, mais igualitária.

A destruição que está se fazendo na cultura é intencionada, não é gratuita. Essas pessoas que estão lá sabem do perigo, sabem que cultura e educação são ferramentas poderosas na mão das pessoas, do povo, para se entender, conhecer e transformar a sociedade. Estamos vivendo um momento muito complicado, com cortes em várias áreas, editais minguando, desaparecendo. E sem falar das pessoas que têm sido escolhidas, como diretor das artes cênicas, diretor da cultura. Hoje não existe mais ministro porque, como a gente sabe, o Ministério da Cultura acabou, foi uma das primeiras medidas que esse governo tomou, já anunciando o que viria pela frente, a intenção deles, a falta de simpatia desses governantes que estão aí com a cultura. Assim que o Bolsonaro foi eleito, a gente já sabia. Foi muito assustador para a maioria das pessoas que fazem arte, cultura e educação nesse país.

Eu não consigo separar muito a ideia de cultura com educação, para mim estão ligadas de um jeito que não tem como separar. O teatro e todas as artes são braços da cultura e da educação. Esses ataques e esse projeto de destruição é bem fundamentado na cabeça dessas pessoas, porque querem um povo submisso, sem poder de entendimento, de análise, de compreensão do tempo que vive, do mundo que vive e das aberrações que estão acontecendo. O último caso que a gente teve, que estarreceu não só o país, mas o mundo inteiro: o episódio do ex-secretário de Cultura, Roberto Alvim, que fez aquele vídeo de inspiração nazista, algo chocante. Sabemos que na cabeça do presidente, na cabeça de muitas pessoas que estão lá, aquilo não tinha nada demais, aquilo é aquilo mesmo.

Acredito que ele só foi demitido pela pressão de certos setores da comunidade, nem tanto da sociedade como um todo. Parece que essa gente está se lixando, são nichos na sociedade que eles ouvem e dão atenção porque são pessoas que no mundo do mercado financeiro têm influência, e podem de alguma maneira atrapalhar os planos deles. Esse governo é obviamente um fantoche do mercado financeiro e das chamadas elites culturais, mas que para elite falta muito. A palavra elite, como disse a Rita Von Hunty, subentende-se que as pessoas têm cultura também, uma elite não é só rica de dinheiro. Essa palavra originalmente trazia a ideia de refinamento cultural também, e é o que a nossa “elite” realmente não possui. Não gostam de cultura, de educação, uma gente grossa, boçal.

BdF RS: O que tu achas da nomeação da atriz Regina Duarte para a pasta da Secretaria de Cultura?

Fernando Kike: A nomeação da Regina Duarte para pasta está de acordo com a mentalidade dessas pessoas que estão lá. Para mim é tudo um absurdo. A Regina Duarte, por exemplo, é mulher de latifundiário, mas não só isso, ela tem muita história, defendendo ataques a indígenas, atacando verbalmente comunidades indígenas. Dando declarações em que ela diz que o presidente é homofóbico na boa, é homofóbico querido, é homofóbico da boca para fora. Ela disse que era como o pai dela, que dizia que lugar de negro é na cozinha, mas era da boca para fora, de um jeito brincalhão.

Em termos institucionais, estamos no fundo do poço com a cultura. Essas pessoas que estão nesses órgãos, que deveriam gerir, estimular, incentivar, estão esvaziando, destruindo a malha da rede produtiva da cultura, da arte no Brasil. A cadeia produtiva da arte no Brasil está seriamente ameaçada, sendo esvaziada, e mais, sendo perseguida. Tem muito discurso dizendo que a maioria dos artistas é vagabundo, é de esquerda, é comunista. Eu tenho a sensação que estou vivendo uma coisa surreal, como um pesadelo, que a gente espera acordar daqui a pouco.

Mas, ao mesmo tempo, a gente resiste, a arte sempre resistiu, a arte nunca morreu. O teatro, por exemplo, foi banido na Idade Média, ou pelo menos foi proibido, mas durante toda a Idade Média tinham os Saltimbancos, tinham os ambulantes que iam de vilarejo em vilarejo trocando por comida sua arte. As artes são como a Fênix, ressurge das cinzas, e vamos seguir resistindo, lutando também junto em todas as frentes que for possível para que esse país possa mudar, transformar-se e que a gente possa vencer esse projeto de destruição da cultura, da educação e da democracia no Brasil.

Diretor e elenco em ensaio em 2018 / Foto: Divulgação

BdF RS: Conte um pouco da tua trajetória.

Fernando Kike: Eu comecei fazer teatro com a Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, aqui em Porto Alegre, no início dos anos 90, e de lá para cá trabalhei com muitos diretores diferentes aqui em Porto Alegre. Meu interesse no teatro, minha busca, sempre foi um teatro político, engajado de alguma forma. Eu nunca vi o teatro como uma carreira naquele sentido de virar um super star, de virar um grande ator, de ir para Globo, de fazer qualquer coisa desde que sendo como ator, aceitar qualquer trabalho, qualquer texto.

Sempre tive essa ideia de um teatro político, crítico, que estivesse ligado com as questões sociais, não só em termos do discurso, mas em termos da prática também. Já fiz e sigo fazendo teatro de rua, gosto muito dessa vertente, porque é um teatro onde a gente vai ao encontro da população, principalmente de uma população que não vai ao teatro, por falta de acesso econômico, ou até por falta de conhecimento, por falta de hábito.

Fiquei sete anos na Terreira da Tribo, trabalhei com grandes diretores como Camilo de Léllis, Roberto Oliveira, Patrícia Fagundes, Décio Antunes, e vários outros diretores aqui de Porto Alegre, e principalmente com Adriane Mottola, da Companhia Stravaganza, grupo que eu permaneço até hoje, e que tenho uma relação de trabalho direta com eles.

Ministro oficinas de teatro na Cômica Cultural, de onde surgiu o projeto do Homem Mãe, aulas na Elite Models, uma agência de modelos, mas que tem uma escola onde tem curso de cinema, teatro, e outras modalidades, e onde estou responsável pelas oficinas de teatro. 

Desde 96, dirijo espetáculos tanto para rua quanto para sala. Em 2011 comecei a escrever para teatro, tenho seis textos de teatro, sendo que cinco foram encenados, e também adaptações teatrais. Por exemplo, fiz junto com atriz Nina Eick um recorte de cenas, de histórias que aparecem no Grande Sertão Veredas, do João Guimarães Rosa. Esse espetáculo esteve agora participando do Porto Verão Alegre, na abertura do festival.

Tem uma peça de rua que escrevi que se chama Zona Paraíso, uma comédia de rua que foi montada pelo grupo Povo da Rua e que anda circulando por aí. Estive com a Comédia dos Erros da Companhia Stravaganza.

Trabalho com intercâmbios internacionais, com ONGs da Itália e da Alemanha, desde 1996, onde há anos fazemos trabalhos com jovens de escolas públicas, escolas que recebem um público mais social e economicamente vulnerável. Estamos fazendo, por exemplo, um intercâmbio esse ano com a Escola Cemet Paulo Freire, que tem um público bem heterogêneo, com pessoas com histórias bem diversas. Trabalhamos com esses jovens, colocamos em contato jovens daqui do Brasil com jovens da Alemanha e da Itália que tenham realidade, características e condições semelhantes. Esses jovens tem a possibilidade de conhecer um outro país, outra cultura, outros jovens e de dividir com eles os seus anseios, seus projetos, seus problemas. E dentro destes intercâmbios eu trabalho com teatro, um teatro que vai numa linha de ajudar o debate, ajudar esse grupo de jovens a dialogarem, se expressarem por outras vias que não só da palavra.

Edição: Marcelo Ferreira