Um jovem de 24 anos, sem antecedentes criminais, sem histórico de doença mental, ex-militar, membro de uma “família estruturada”, defendia o porte de armas para “se defender de bandidos” e se declarava evangélico e temente a Deus. Após discussão banal de trânsito no Lami, zona sul de Porto Alegre, assassinou três pessoas de uma mesma família (marido, esposa e filho). O autor do triplo homicídio, atirador treinado, mirou nas cabeças das vítimas, acertando vários disparos, com uma pistola 9mm. Depois de trucidar a família, fugiu do local, tendo sido preso nesta terça-feira (28).
No texto anterior nessa coluna (“As palavras no jornalismo”), mostrei que fatos criminais costumam ser divulgados de forma muito diferente no Brasil a depender da classe social das vítimas e dos autores. O massacre do Lami o confirma amplamente. O tom geral das notícias foi extremamente cuidadoso. Aliás, não houve matéria que tenha sequer chamado o massacre de massacre. Ninguém empregou a palavra “bandido” tão ampla e rapidamente empregada em outros contextos e não houve quem propusesse “caçada ao assassino”. O responsável pelo crime foi designado, pela polícia e nas matérias jornalísticas, como “suspeito” o que, tecnicamente, é o tratamento correto visto que apenas o Poder Judiciário pode definir quem são os culpados. A polícia não divulgou o nome do suspeito, o que também deveria ser procedimento padrão.
Esses cuidados só se fizeram presentes, entretanto, porque o autor é considerado um “cidadão de bem”. “Gente como a gente”, um rapaz de “boa família”. Essa abordagem está presente, inclusive, na fala do delegado que disse: “ele cometeu o maior erro da vida dele. É melhor ele assumir a responsabilidade do que viver se escondendo”. Sim, o autor cometeu “um grande erro”. Segundo o Código Penal, esse “erro” se chama triplo homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e pelo uso de meio que impossibilitou a defesa das vítimas. Pode-se descrever o delito de forma simples e técnica, sem permitir que a indignação que atravessa a alma de qualquer pessoa normal aflore e estimule sentimentos de vingança, OK, mas não se deveria chamar um crime de tamanha gravidade de “erro”, nem usar a imprensa para aconselhar o foragido.
A pistola 9mm, arma predileta do FBI, é anunciada pela Taurus como tendo “um cartucho poderoso, com bom desempenho, que fará o trabalho, desde que tenha o posicionamento adequado para o tiro. Uma arma compacta com boa mira, um gatilho decente e controles ergonômicos é uma companheira fiel em tempos difíceis.” Muito fiel. Até há pouco tempo, armas com esse calibre eram classificadas como de uso restrito pelas Forças Armadas, mas decreto do presidente Bolsonaro (Dec. nº 9.847, de 25 de junho de 2019), estabeleceu, para alegria da indústria, que pistolas .40, .45 e 9mm podem ser compradas amplamente. O atirador não possuía porte, fato que tem sido divulgado como se isso fizesse alguma diferença. O que importa, entretanto, é saber: o que o impediria de ter o porte? Ou: se ele fosse abordado pela polícia e flagrado portando arma sem autorização legal deveria ser preso, como determina o art. 14 do Estatuto de Controle de Armas, ou essa medida seria uma violência contra o “cidadão de bem”? Antes do Estatuto, é bom lembrar, porte ilegal de armas era considerado uma contravenção e tratado como fenômeno banal. O ideal almejado pelo presidente e por todos os que ao longo da última campanha eleitoral posaram fazendo “arminhas” com seus dedos, em uma espécie de regressão à infância, não é, exatamente, o de “armar o cidadão de bem”?
O fato é que a retórica pró-armas, que caracteriza o discurso do lumpesinato que chegou ao poder no Brasil, tem estimulado, concretamente, a compra de armas de fogo em uma escala impressionante. O aumento no número de armas em circulação trará consigo o aumento dos casos de furto e roubos de armas (nos EUA, criminosos furtam ou roubam 237 mil armas de fogo a cada ano), o aumento do uso irregular de armas de fogo – como foi o caso do atirador do Lami – e o aumento das ocorrências criminais com armas pelos chamados “cidadãos de bem”. Um dos mais recentes estudos nos EUA (Right-to-Carry Laws and Violent Crime: A Comprehensive Assessment Using Panel Data and a State-Level Synthetic Control Analysis) mostrou que leis que autorizam o porte de armas de fogo estão associadas a um aumento médio entre 13 a 15% dos crimes violentos em um espaço de dez anos. Aqueles que adquirem armas para defesa pessoal imaginam que, assim, evitarão crimes. Na vida real, poucos terão a chance de prevenir qualquer crime (How Often Do People Use Guns In Self-Defense?). Entre esses poucos, a maior parte será vitimada em casos de reação. Agravando o quadro, uma parcela maior entre os que adquirem armas para defesa as usará, efetivamente, para o ataque em disputas banais, em feminicídios (Disarming Domestic Abusers), e para a prática do suicídio (Suicide, Guns, and Public Policy)
O que o massacre do Lami evidencia é aquilo que já foi demonstrado exaustivamente desde que Hannah Arendt assinalou, em “Eichmann em Jerusalém”, que, para se cometer um crime monstruoso, não é necessário monstros. Basta alguém incapaz de refletir. Vivemos um momento histórico mundial onde a irreflexão se tornou orgulhosa. O que já seria grave o suficiente, está se tornando bem pior no Brasil, porque muitos entre os que se negam a pensar estão, agora, armados. Todos nós sempre desejamos um País melhor e penso que, independente das posições políticas e do tóxico contencioso ideológico em curso, sempre demandamos a redução da violência. A verdade, entretanto, é que fomos arrastados para dentro de um filme de Tarantino e ele está apenas no começo.
(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)
Edição: Sul21