Rio Grande do Sul

OUTRO MUNDO É POSSÍVEL

Povos na resistência contra o desmonte e ataques gerados pelo modelo neoliberal

Segunda mesa do Fórum realizada na última quinta-feira (23), debateu Direito dos Povos, Territórios e Movimentos Sociais

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Atividade ocorreu no auditório da Fetrafi-RS
Atividade ocorreu no auditório da Fetrafi-RS - Fotos: Fabiana Reinholz

“Que bonito é, que bonito é que, nós somos irmãos

Se tu é meu irmão, somos filhos de Deus

E segura na minha, e segura minha mão, vamos trabalhar

Se tu vai trabalhar junto com nós, eu tenho certeza que o senhor vai te abençoar.”

Com o cântico Kaingang, em forma de oração, encerrou, na última quinta-feira (23), uma das mesas de convergência mais concorridas do Fórum Social das Resistências 2020, que teve como destaque a preocupação com a mãe terra. Intitulada “Direito dos Povos, Territórios e Movimentos Sociais”, o debate reuniu cerca de 200 pessoas no auditório da Federação dos Trabalhadores em Instituições Financeiras do Rio Grande do Sul (FETRAFI). A necessidade da unificação, a defesa dos direitos, o questionamento sobre o porquê se mantém o status quo estiveram também presentes.

Antes de abrir sua fala, Antônio Vicente, da etnia Kaingang, morador do município gaúcho de Iraí, fez um ritual de invocação em deferência à mãe terra. “Para se alimentar, para ter água boa, essa mãe precisa de lideranças, para cuidar dela e não matá-la, queremos ajuda para preservar a natureza”, conclamou Antônio, destacando que a questão da demarcação das terras indígenas, pauta fundamental indígena, é para a sobrevivência da natureza e não para o agronegócio. “Paulo Guedes disse que quem está acabando com a natureza é a pobreza. Isso não é justo, porque eu sou índio, eu conheço a natureza, quem está acabando é o agronegócio, é isso que temos que ver, quem está poluindo nossas águas”, apontou.

Eduardo Ortiz, da etnia Guarani, da cidade de Rio Grande, complementou dizendo que a luta é diária pelo patrimônio e cultura indígena. “Vamos lutar juntos para defender nossa Amazônia. Está acontecendo muita coisa, nos roubam, destroem, deixando sem futuro as nossas crianças. Nos preocupamos como nossas crianças sobreviverão, temos muita luta e teremos mais luta daqui para frente”, concluiu.

Povos indígenas marcaram presença na atividade

É preciso mudar o desenho do sistema

“Falo pelo povo que se mantém no Brasil após ser sequestrado, escravizado, e invisibilizados na sua origem, por um povo que tem princípios civilizatórios, e que nenhum governo teve a dignidade de reconhecer como povo tradicional e dar a reparação devida. Nos tiraram a terra, a forma de nos alimentar, a nossa língua e ainda por cima dizem que nada somos. Assim como chamaram os povos originários de índios, nos chamam de negros. Falo em nome desse povo que é muito mais amplo do que a cor da pele.” Assim se apresentou Kota Mulanji, nome por quem é conhecida Regina Nogueira, coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma).

Ela ainda fez uma provação sobre a equidade: “Quando falamos em povo, temos que pensar se temos compromissos éticos reais que nos configuram como povo. Como dizer que somos todos povo brasileiro, como se fossemos iguais, como se tivéssemos equidade dentro desse país, com uma hegemonia branca, masculina, no poder?” Observou que ainda se continua negociando com o inimigo. “Enquanto nós acreditarmos que para resistir precisamos entregar princípios e valores, estaremos deixando uma única coisa acontecer, as nossas decisões na mão do capital”, pontuou.

Conforme destacou, os direitos são possíveis desde que se enfrente o sistema, mudando o seu desenho. “Não dá para combater o sistema com desenho diferente por dentro dele, esse desenho piramidal reproduzido em todas as nossas organizações, com uns acima e outros abaixo. O sistema fica tranquilo porque nós o reproduzimos no dia a dia das pessoas. Temos que fazer um desenho circular e em movimento, ascendente e crescente”, frisou.

Usando o seu já famoso bordão, de que o povo deve ser sujeito e não objeto da política, o ex-governador do RS, Olívio Dutra, aludiu à necessidade de relacionar as lutas, respeitando as especificidades, e encontrar um ponto comum. “Estamos diante de uma situação que nos unifica clara e objetivamente, que é a democracia. Sem democracia, ou com democracia mitigada, mediada, o direito dos povos, dos trabalhadores e trabalhadoras são manipuladas pelos poderosos do momento e os grupos econômicos mais influentes que se articulam nacional e internacionalmente”.

Conforme apontou Olívio, houve uma redução nos espaços de participação, onde o atual governo vem acabando com os conselhos e demais conquistas que acreditava-se estar asseguradas. De acordo com ele, é preciso entender a política como a construção do bem comum, com o protagonismo das pessoas, não como toma lá da cá. “Somos naturalmente seres políticos desde que nascemos, não tem essa de alguém ser político por nós. Queremos eleger pessoas comprometidas com o projeto solidário que pode fazer o mundo ser diferente e justo. Eleger para nos representarem e não para nos substituírem, temos que estar atuantes não só na eleição, mas depois”, apontou.

Também destacou o protagonismo das mulheres, que segundo sua avaliação, estão cumprindo o papel mais do que os homens, com seus protagonismos nas relações sociais, de trabalho, da família, da luta pela terra, por moradia. “Democracia para nós não é uma palavra vazia”, afirmou, já assinalando para terceira mesa do Fórum.

Os desafios da democracia hoje

Mesa contou com representantes de países da América Latina

Ao se discutir a democracia, é preciso analisar e debater o que está ao redor, não somente o local. Foi com essa observação que a presidente do Conselho Mundial da Paz, a brasileira Socorro Gomes, começou a mesa “Desafios da Democracia Hoje”. Apesar dos avanços democráticos pelo qual passou o país, com o incremento da participação popular e das políticas públicas, o estado brasileiro, de acordo com Socorro, é fechado e elitista. “Com o golpe contra presidenta Dilma, houve um rasgo da democracia, um rompimento com o estado democrático no Brasil”, apontou a presidente.

De acordo com ela, o país nunca teve um grande período democrático e tem uma democracia extremamente frágil. “Não temos um Estado que tenha simpatia ou afinidades democráticas. A eleição de Bolsonaro é fruto de arremedo democrático, de ameaça e de agressões à democracia, porque foi eleito através de fake news, com a mentira, sem debate aberto ou franco”.

A fragilidade da democracia também se reverbera nos países vizinhos. “Na Bolívia, majoritariamente indígena, e que era governada só por brancos, um índio foi eleito, Evo Morales, e no momento que avança nas conquistas, na participação popular, há um golpe. Que não é só lá. Na Venezuela, Nicolás Maduro sofre o tempo inteiro ameaça de golpe. Também na Nicarágua e Cuba, ameaçadas na sua democracia, cada uma a sua maneira. Há pouco tempo em Cuba houve um ataque a uma figura nacional sagrada aos cubanos e um herói para América Latina, José Martí”, ilustrou. “A democracia não é uma coisa atemporal, universal, depende do tempo, do momento histórico, do país”, finalizou.

Representante do México, país que sediará o Fórum Social Mundial em 2021, a secretária-geral da Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe (CEAAL), Rosy Zúñiga, afirma que a luta pela democracia tem que ser com alegria, esperança e poesia. Para ilustrar ela declamou a canção zapatista, El Insurgente*. Assim como aconteceu em muitos debates do Fórum, Rosy reforçou o alerta sobre a morte dos povos originários, dos jovens e das mulheres. “Precisamos reconhecer que as mulheres estão sendo mortas somente por ser mulheres. Esse é um desafio para a democracia, essa política de morte nos nossos territórios, a violação em nossos territórios”, sinalizou, acrescentando a ameaça da diversidade, a criminalização dos movimentos sociais, e a polarização e ódio crescente nos países.

Sobre o desânimo e a desesperança, Rosy reforçou que é preciso pensar em como recuperar a solidariedade, a irmandade e a sororidade. “Estejamos vigilantes aos ataques, senão nos roubam a possibilidade de um outro mundo possível. Temos que pensar nas propostas, disputar a matriz cultural, construir outra relação cultural, social, política e econômica, outra concepção de poder. Fazer formação política na perspectiva da educação popular, recuperar nossos saberes, fazer debates, reconstruir nossas histórias. Temos articular as lutas e resistências”, finalizou.

Para o representante da Venezuela, o integrante das Comunas Venezuelanas José Lopes, o conceito de democracia é muito diverso. O capitalismo tem seu próprio conceito de democracia, ética, e seu próprio plano, e as forças revolucionarias, a esquerda e o movimento progressista têm outros critérios da democracia. “Vem dai o primeiro desafio, unificar os critérios, que democracia queremos, como vamos construí-la e se permitirão que o povo assuma a liderança histórica e poder originário como povo, que ainda não temos e que temos que desenvolver”, assinalou, ao pontuar que é preciso criar um contra-ataque ao imperialismo na região. “Temos que estar na resistência e na ofensiva. Temos que nos unir e confrontar esse modelo, que tem nos dado golpes muito duros. Eles podem ter a vitória sobre nossos governos, mas nunca sobre nosso povo”.

Encerrando a mesa de debate, a representante da União Nacional dos Estudantes (UNE), Naiade Salinos, relatou os ataques que o governo Bolsonaro tem feito à educação, principalmente às universidades federais. “Esse governo é extremamente retrogrado e escolheu a educação como um dos principais inimigos. Vimos vários ataques durante o ano passado, além dos ataques às universidades, que representam 95% da produção que se tem no país tem, através das pesquisas desenvolvidas, além da possibilidade de construção do pensamento crítico. Há também a lei da mordaça, através do escola sem partido”, pontuou.

Apesar do cenário de retrocesso, Naiade, rememorou a forte mobilização ocorrida por meio do tsunami da educação, que conseguiu mobilizar a sociedade. “A educação é uma pauta que tem poder de unir a sociedade, diante de todos os retrocessos. Conseguimos dar resposta indo às ruas. Precisamos nos organizar para contra-atacar. Temos uma grande oportunidade agora em 2020, com as eleições municipais, para construir territórios livres de fascismo. Para isso precisamos deixar de lado nossas divergências e trazer para o centro o que nos une, a defesa da soberania nacional, a defesa dos nossos direitos e a defesa da democracia, precisamos nos propor a ser maior que nossos desafios”.

 

*EL INSURGENTE (EZLN)

Me dicen el Insurgente por ahí,

y dicen me anda buscando la ley,

porque con otros yo quiero acabar,

con el Estado burgués.

Por nueve puntos vamos a luchar,

ahorita se los voy a platicar,

cuando termine van a decidir

si nos quieren apoyar.

La tierra para poder cultivar,

un techo donde poder habitar,

educación para todos igual,

vamos a solicitar.

Necesitamos de buena salud,

para eso necesitamos comer;

trabajo para poder producir

también vamos a exigir.

A todo esto le voy a sumar

independencia total para que

ningún gringuito nos venga a joder

y a nuestro pueblo explotar.

Por todo esto juramos vencer;

por eso estoy decidido a luchar,

y de esta manera llegar a ganar la paz y la libertad.

Edição: Marcelo Ferreira