O mundo não está fácil de ler. O problema vai muito além das fake news. Estamos lidando, entre outras coisas, com um profundo enraizamento de ideais e valores neoliberais no imaginário social e com mudanças radicais no processo de funcionamento das democracias liberais. Esses marcos estão desmanchando e sendo substituídos por aquilo que o primeiro ministro húngaro, Viktor Orbán, de extrema-direita, chamou de “democracias iliberais”. A proliferação de “democracias vazias” ou “de baixa intensidade” está destruindo direitos, desmontando os espaços de multilateralismo e acabando com a possibilidade de construção de consensos.
A avaliação de Iara Pietricovsky, antropóloga, atriz, cientista política e integrante do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), indica um cenário que carrega um grande desafio para a esquerda e o pensamento progressista em geral: ninguém está conseguindo reagir de modo eficaz para mudar o atual rumo das coisas no mundo. Um rumo marcado por um crescente processo de restrição de direitos, criminalização de movimentos sociais e ongs, destruição ambiental e de territórios de povos tradicionais, cortes de fundos públicos para a sociedade civil e aprofundamento da desigualdade em diferentes sentidos.
A diretora do Inesc participou, na manhã de quinta-feira (23), da “Mesa de Convergência 1 – Direitos do Planeta e Bens Comuns”, no auditório Central da Unisinos, atividade que integra a programação do Fórum Social das Resistências 2020, que ocorre em Porto Alegre até o dia 25 de janeiro. Nada mais avesso às “democracias de baixa intensidade” do que as ideias de direitos da Terra e de bens comuns. A ideologia que embala essas “democracias” propaga os valores do individualismo e da meritocracia como motores da prosperidade. É uma ideologia poderosa, assinalou Iara Pietricovsky, que lançou raízes profundas em nossa sociedade. “O neoliberalismo não é só um ideário econômico, ele está introjetado em nossas cabeças com valores individualistas e discursos como o do empreendedorismo que virou uma fala corrente na sociedade”.
Atual presidenta da Forus, articulação internacional de organizações não-governamentais, Iara relatou como essa ideologia vem destruindo os espaços multilaterais internacionais e os esforços para a construção de consensos. Esse processo atingiu inclusive a Conferência do Clima, apontou. “Todas as possibilidades de acordo estão sendo transferidas para o espaço de acordos comerciais bilaterais. Acordos bilaterais estão pulsando por todo o mundo, acabando com o multilateralismo”.
Com isso, acrescentou a antropóloga, cresceu ainda mais o poder das grandes corporações que dominam a economia mundial e usufruem de generosas isenções fiscais, além de paraísos fiscais e outros mecanismos de lavagem de dinheiro. Dentro desse sistema, a preocupação com o futuro do planeta não é exatamente uma prioridade. “O que estrutura o problema do clima hoje é um modelo de produção predatório e um modelo comercial e tributário injusto”, resumiu.
“O capitalismo não chegaria onde chegou sem uma mística”
Teólogo e monge beneditino, Marcelo Barros também chamou atenção para a força e o enraizamento do ideário neoliberal na nossa sociedade, inclusive na esfera das igrejas e da religião. “O capitalismo não chegaria onde chegou sem uma mística”, defendeu. O religioso citou uma imagem para ilustrar seu ponto. “O domador de leão fixa uma linha no chão que não pode ser ultrapassada pelo animal. E o leão não ultrapassa essa linha por acreditar que o domador é mais poderoso”. A mística neoliberal é um pacote de crenças e valores que, de modo análogo, funciona como uma linha riscada no chão. A tragédia, lamentou Barros, é que as religiões e as igrejas também absorveram essa mística.
“Não estou me referindo aqui só às igrejas neopentecostais. As igrejas cristãs como um todo criaram um monstro chamado de teologia da prosperidade”, afirmou, criticando o que chamou de “conivência criminosa” de religiosos com a mística do ódio, da intolerância, da homofobia e de outras formas de discriminação. Para ele, essa postura está ligada também ao dogmatismo religioso que gera autoritarismo e sacralização do poder, ligando o poder religioso e poder político.
Marcelo Barros apontou a capacidade de resistência e de resiliência dos povos indígenas como um exemplo a ser aprendido e seguido para enfrentar a ideologia e a mística neoliberal. O enraizamento dessa ideologia em nossas cabeças fez com que perdêssemos a alma, acrescentou o teólogo. Uma perda individual e coletiva ao mesmo tempo. “O mundo e a sociedade perderam a alma”, resumiu. “Os povos indígenas são profissionais da resistência e da resiliência. Se quisermos defender os direitos da natureza, temos que conhecer e retomar a espiritualidade dos povos originários, aprendendo a partir do cuidado, do amor, do carinho, do toque. Precisamos de uma nova geração, uma nova gravidez. A resistência tem que ser espiritual também. Sem comunhão de coração e alma, a resistência vai ficar na superfície”, defendeu.
Aos que questionam a existência de algo como direitos da Terra, pela suposta ausência de consciência da mesma, Marcelo Barros lembrou que há alguns século argumento similar era utilizado para justificar a escravidão e recusar a cidadania aos povos indígenas e negros. “Esse argumento não é novo”. Para o teólogo, as religiões têm hoje a obrigação de responder essa pergunta: o que significa a natureza ter direitos?
“Desde que nasci, sei qual é a minha Constituição: respeitar, não matar, não machucar”.
Duas mulheres lideranças dos povos indígenas kaingang e guarani no Rio Grande do Sul, participaram da conversa e falaram sobre essa capacidade de resistência a diversas formas de opressão que já tem uma história de pelo menos 520 anos. Liderança do povo kaingang, Iracema Nascimento iniciou sua participação na atividade, falando a língua de seu povo. Depois, traduziu para o português: “Somos a voz da terra, a voz da água e a voz da árvore. Mas a Mãe Terra está doente e nós, seres humanos, estamos sofrendo o que nós mesmo provocamos. Desde que eu nasci, sei qual é a minha Constituição: respeitar, não matar, não machucar. A Mãe Terra deu tudo pronto para nós, água, árvore, terra. Meu avô me ensinou a respeitar isso”, disse Iracema.
Alice de Oliveira Martins, “uma mulher guarani em contexto urbano”, como se apresentou, lembrou que os pais perderam o direito de viver em sua terra indígena na ditadura, sendo expulsos para o espaço das cidades. A história dessa expulsão dura já 520 anos, razão pela qual Alice prefere falar em resiliência do que em resistência. “Há 520 anos, nossos povos vivem em resiliência. Eu caminho segundo os passos de nossos ancestrais e considero todos os espaços por onde ano como territórios indígenas”. O atual modelo de “desenvolvimento”, acrescentou Alice, está matando os povos indígenas não só na Amazônia mas também em regiões como a do Rio Grande do Sul. Ela citou ainda a MP 910, do governo Bolsonaro, que prevê a exploração de minérios, madeira e pecuária em terras indígenas, mas lembrou as palavras do cacique Raoni de que, até hoje, nenhum governo foi bom para os indígenas.
Coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sonia Guajajara, enviou uma mensagem em vídeo saudando os participantes do encontro e alertando que 2020 será “um ano muito complicado, que exigirá resistência, solidariedade e cuidado”. “Estamos perdendo não só territórios e direitos, mas vidas de lideranças indígenas”, lembrou.
Edição: Sul 21