Desde o nosso nascimento, nós, seres humanos, dotados de conhecimento intelectual, invenção de tecnologias e produção de cultura, definimos os corpos e vidas dos bebês através do genitalismo biológico, isso quer dizer que ao nascermos com uma vagina somos socialmente construídos como mulheres e, ao nascermos com um pênis, somos socialmente construídos como homens. O fato é que o nosso gênero é uma construção social e isso independe do nosso órgão genital, conceitos que são comumente contrariados principalmente por dogmas judaico-cristãos conservadores.
Parto do pressuposto de que a Bíblia Sagrada não é uma verdade absoluta e que ela distorce nossa realidade contemporânea, servindo de “fundamento” para os inúmeros casos de preconceitos e violências sofridas pela comunidade LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais, Transgêneros, Queers, Interssexos, Assexuais etc.), fatos que ocorrem ao longo da história humana e, principalmente nos dias atuais no Brasil, sendo respaldados por representantes e grupos políticos ultraconservadores, como é o caso de Bolsonaro, Damares, PSL, MBL etc.
O Brasil lidera o ranking mundial no assassinato de pessoas LGBTQIA+, principalmente os da da sigla “T”: Travestis, Transsexuais e Transgêneros, que são aquelas pessoas que não se identificam com o gênero que lhe foi dado de acordo com o seu órgão genital ao nascer, sendo também um dos países que mais mata mulheres cisgêneras (mulheres que se identificam com o seu órgão genital e gênero dados ao nascimento) em relação ao restante do mundo, gerando altos números de feminicídios e transfeminicídios no país.
Voltando o nosso olhar para a comunidade “T”, este grupo é um dos mais atacados pela sociedade: o abandono e falta de reconhecimento e empatia pela família, amigos, conhecidos, vizinhos etc., as dificuldades de empregabilidade formal, já que estas pessoas contrariam os principais paradigmas sociais e então não “servem” para atender ao público e ao capitalismo, o desrespeito ao gênero e ao nome social, as dificuldades para se manterem nas escolas e universidades, já que o preconceito as desestimulam a seguirem seus caminhos nos estudos e na academia, as dificuldades para acessarem os banheiros de acordo com a sua identificação, tanto em edifícios e órgãos públicos, quanto em privados etc.
Devido à informalidade nos estudos e no trabalho dentro da sociedade, muitas vezes o que acaba restando como alternativa de sobrevivência para este grupo é a prostituição, a marginalidade e até mesmo a criminalidade. Em relação à saúde mental das pessoas Trans, elas possuem nove vezes mais chances de desenvolverem transtornos de ansiedade, depressão e suicídio.
Agora, olhando para nossa realidade estadual e regional, nos últimos quatros meses a cidade de Santa Maria e região presenciou as bárbaras morte de cinco mulheres Trans e Travestis - Carolinne, Mana, Verônica, Selena e Morgana - casos com um complexo de violência, preconceito, ódio e intolerância religiosa, já que, as duas últimas mulheres mortas faziam parte de religiões de origem afrodescendentes. Em sua grande maioria, os crimes cometidos contra a população Trans são executados de maneiras muito violentas: facadas, estrangulamento, enforcamento, sufocamento, tiros, esquartejamento, corpos ateado fogo, mutilação de órgãos genitais, ocultação de cadáver etc.
Na atual conjuntura política e social que vive o país e a América Latina, cabe a todos nós refletirmos sobre as inúmeras mortes de pessoas Trans aqui no Brasil (14 assassinatos nos primeiros 22 dias do ano de 2020). Quais políticas públicas de Estado estão sendo implementadas e discutidas para manutenção da saúde, vida e dignidade deste grupo? Quais oportunidades estão sendo oferecidas, se a nossa existência tem sido irrelevante e se o Estado e a sociedade têm cumprido seu papel de garantir direitos básicos para existência e justiça social para esta marginal população? E para que(m) realmente importa a vida das pessoas Trans e LGBTQIA+?
Nati Castro Fernandes, travesti, 23 anos, estudante de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Maria, militante do Levante Popular da Juventude.
Edição: Marcelo Ferreira