A ideologia neoliberal cria o mito ciência como instituição social autônoma dotada de capacidades renovadoras inesgotáveis, tanto na base econômica quanto na superestrutura. Os crescentes aportes tecnológicos à produção de mercadorias geram efeitos deletérios no mundo do trabalho. A tecnologia vem casada com a exigência de trabalhadores especialistas e competentes. Mas isso não é novidade, o taylorismo é um processo de cientificização da produção e de "integração" subordinada dos trabalhadores.
A máquina e o tempo da máquina dão o ritmo da produção, alienando não só o esforço e o tempo do homem trabalhador, mas, sobretudo negando-lhe a capacidade de reconhecimento do produto gerado como seu. "A divisão de tarefas é levada ao absurdo não porque seja um meio necessário para aumentar a produtividade, mas por ser o único meio de submeter o trabalhador que resiste, tornando seu trabalho absolutamente quantificável, controlável e substituível". (Chauí)
Assim, o avanço tecnológico, para além de promover a produtividade, é a matriz de difusão da ideologia da competência, base da lógica da exclusão; prontamente absorvido pelo senso comum. Daí a vigarice horizontal do "upgrade" nos conhecimentos de superfície (muitas Universidades estão nessa estratégia "moderninha"), cursos profissionalizantes relâmpagos, reengenharia profissional, marketing pessoal, a obsessão pela informática, a neurolinguística, e um rosário interminável de velhas "novidades" que "irão mudar a sua vida!", "seja um vencedor!", etc.
São os mecanismos ideológicos de individualização do fracasso, para preservação do “winner system” de exclusão da vida. É a indução sistemática da mentalidade fatalista e resignada a uma ordem disciplinadoramente autoritária e protofascista. É a autoridade da ciência como substituto moderno do papel das antigas autoridades míticas, religiosas ou de Estado. A sujeição totalitária do homem à ordem do valor: o máximo possível da inversão impossível. Nem com todos os mitos e todas as religiões reunidos e sintetizados se conseguiria tamanha inversão nos desígnios humanos.
“A que ponto chegou a alienação do homem! O mundo todo abarco e nada aperto/ É tudo quanto sinto, um desconcerto.” (Camões)
O contrato social, um instituto alienado quando regulamenta a igualdade somente na sua dimensão jurídica, perde a validade residual, porque está anulado nas fronteiras do Estado-Nação. O capital, tratando de evitar as cíclicas crises, temendo o recrudescimento da luta de classes, refugia-se na estufa tecnológica das transferências em tempo real, monetizando-se nos mercados mundiais de papéis, nos impulsos magnéticos como representação do dinheiro e no manjado cassino financeiro.
Esse mundo financeiro da moeda tende a descolar-se do mundo da produção, do qual originou-se, não conseguindo (porque depende da riqueza da mais-valia), descarrega uma maldição sob a forma de pregão modelar dos rendimentos capitalistas.
Ora, o mundo real da produção fabril, ali onde se origina a riqueza do sistema, fica comprometido com a estreita elasticidade das metas impostas pelo mundo virtual da moeda e seus incontáveis papéis. A ciência (como tendência neutralizadora da queda da taxa de lucro de Marx), desdobra-se na invenção de artefatos que, aumentando a produtividade do trabalho (bem como, a taxa de exploração), possam contribuir para alcançar as metas amaldiçoadas do mundo monetizado. Onde os incrementos da produtividade do trabalho são conseguidos pela maciça introdução de trabalho morto embutido na robótica, nas novíssimas plataformas tecnológicas de trabalho informal/precário (Uber, etc.) e nos chips "inteligentes", em detrimento do uso outrora intensivo de trabalho vivo e pisoteando toda a pauta histórica de direitos e garantias conquistadas nos últimos 150 anos de lutas sociais.
Se a velha social-democracia europeia tornou "natural" a incorporação de direitos do trabalho, o neoliberalismo, agora, desnaturaliza-os por eliminação dos direitos e dos postos de trabalho.
Coisas da vida.
* Cristóvão Feil é sociólogo.
Edição: Marcelo Ferreira