I – Sobre a Conquista da Fronteira
O tempo passa rápido e através dele a história vai sendo escrita. Nas páginas dos livros, nas fotografias que vão perdendo a cor, nos cabelos dos anciãos que vão raleando e branqueando... mas também nos sorrisos das novas gerações que vão chegando, na esperança que se renova em cada semente jogada na terra e na força que se multiplica quando se aceita professar ideais sob as mesmas bandeiras. Sob esses aspectos estiveram reunidos no assentamento Conquista da Fronteira, em Hulha Negra (RS), trabalhadores rurais sem-terra, lideranças políticas simpáticas ao tema da reforma agrária, lideranças comunitárias e apoiadores para celebrar os 30 anos da chegada das primeiras famílias camponesas à Campanha, em um movimento que transformaria parte da região do Pampa Gaúcho.
“Eu cheguei a duvidar que depois do massacre da Santa Elmira, alguém ainda teria coragem de continuar na luta”, relembra Frei Sérgio Antônio Görgen, fazendo menção ao ataque covarde que as forças policiais do estado praticaram contra milhares de famílias acampadas em Salto do Jacuí em março de 1989. “A resposta que me contrariou veio pela força da fé dessa gente, pela forma como acreditaram e por tudo o que estiveram dispostos a sacrificar na luta pela terra”, emendou sob o olhar emocionado de muitos homens e mulheres que estiveram consigo naquele momento difícil e que atualmente plantam e colhem em seus lotes em uma região que já foi conhecida como o coração do latifúndio.
Três décadas depois da chegada dos primeiros sem-terra, o cenário é bem diferente do encontrado naquele tempo. O gigantesco latifúndio improdutivo foi entremeado de pequenas unidades produtivas de matriz camponesa. A agroecologia aos poucos foi se transformando em alternativa ao pacote nocivo do agronegócio. E as pessoas, pouco a pouco, foram dominando o jeito do solo, aprendendo a resistir às nuances do clima, encontrando os caminhos da água e desenvolvendo métodos de aproveitar e proteger, fazendo da hulha escura e aparentemente hostil uma terra fértil onde se plantariam sonhos e esperanças.
“Era 1989, trazíamos apenas algumas tralhas, um pedaço de lona preta, uma chapa de fogão, umas poucas ferramentas... mas no peito a gente tinha a vontade de mudar, determinação e esperança de buscar uma vida digna”, relembrou a assentada Arlete Bulcão Pinto. “Numa mão trazíamos a família e na outra a bandeira, despertando preocupação para alguns e espanto para outros” acrescenta. Há 30 anos estabelecida, Arlete não cansa de contar, de relembrar cada detalhe da história vivida e da luta empreendida: “Fomos construindo e organizando nossa produção, comunidades, escolas, cooperativas, fortalecendo a organização e preservando a identidade”. No relato também há espaço para os tempos atuais onde fica em destaque a preservação do meio ambiente, a defesa das sementes crioulas, a continuidade do enfrentamento ao latifúndio, a defesa da vida, a soberania alimentar e aos direitos.
II – Sobre resistência e sonhos
Adaptar-se, aprender, resistir. A luta, que começara na beira da estrada e estendera-se no cotidiano dos acampamentos e ocupações, se instalaria depois na nova região, na consolidação dos assentamentos. Vindos de outras regiões do estado, as famílias sem-terra tiveram que aprender a lidar com os desafios de um lugar diferente, enfrentar o preconceito de muita gente que não os queria ali e resistir aos costumes de séculos de exploração do povo pelo latifúndio a serviço do capital, desfraldando a bandeira vermelha e afirmando o simbolismo de um sol socialista que começava a se levantar em uma nova aurora.
“Temos muita satisfação de celebrar os 30 anos do MST na região da Campanha, assim registrando que já são três gerações que formamos aqui ao longo dessa história”, registra do assentado Ildo Pereira, integrante da direção nacional do movimento. Relembrando o caminho percorrido desde as primeiras famílias que chegaram até a consolidação dos 58 assentamentos existentes hoje, ele reflete: “Na luta política há algumas batalhas que a gente empata, há outras que eventualmente sofremos derrotas, mas hoje precisamos registrar que aqui na região nossa luta é vitoriosa”.
Celebrar e renovar as energias para enfrentar o momento atual, repleto de pressões e retrocessos, é a tônica do dia. Reafirmar o orgulho pelo que se conquistou para seguir em frente lutando por dias melhores, de mais justiça e igualdade social são encarados como desafios ao povo sem-terra: “Nesse novo período de luta que temos pela frente no Brasil, podem ter certeza que aqui ninguém precisa abaixar a cabeça, vamos andar sempre de cabeça erguida, não devemos nada para meia dúzia de burgueses que hoje estão aí e vamos reafirmar nossa história, mostrando quem é o MST, quem é o povo e quem é a classe trabalhadora no nosso país”.
“É com grande alegria que venho celebrar com vocês essa festa de 30 anos” falou Irmã Elda, religiosa que teve sua história entrelaçada com a luta da terra no RS, tendo caminhado junto com o povo sem-terra em alguns dos momentos mais difíceis e desafiadores de sua história. “Foi como atravessar o Mar Vermelho”, relembrou ao citar as marchas que antecederam a Conquista da Fronteira, realizadas a partir de Palmeira das Missões e de Caaró, junto com mais de 4 mil pessoas, fazendo alusão à passagem bíblica em que Moisés conduziu o povo de Deus em busca de liberdade. Cercas, capatazes, soldados, aviões, políticos... ninguém seria capaz de deter a marcha e o ideal do povo. “Erguemos nossa cruz e começamos a pedir a benção de Deus sobre cada um de nós e sobre nossa luta. Naquela hora nós abençoamos a terra a ser conquistada, inclusive essa terra onde hoje estão todos vocês, uma benção que buscava garantir a vida e a felicidade”, concluiu a religiosa para em seguida repetir a oração e a benção professada três décadas atrás. “Se assim conseguimos chegar até aqui é porque precisamos seguir em frente, alimentando a fé e a mística de nossa luz para que, assim como diz a canção, o dia da paz possa renascer para todos”.
III – Sobre conquistas e desafios
Se a memória foi exaltada e a história relembrada, o trabalho cotidiano também teve seu espaço de saudação. E ali, de modo especial, a nova geração de assentados foi chamada a mostrar sua voz e sua vez. O rosto jovem do MST vem sendo chamado a assumir o protagonismo, inclusive na organização da festividade e celebração. A vida é dinâmica e as conquistas precisam ser fortalecidas, o território protegido e o ideal perpetuado.
“Os assentamentos aqui estabelecidos são frutos de um processo de luta pela terra muito intensa”, afirma o assentado Emerson Capelesso, relembrando que a chegada dos sem-terra desafiava não apenas o preconceito de uma parcela significativa da população da época, como também o entendimento de que a terra na região do Pampa serviria apenas para empreendimentos voltados ao gado de corte. “Os assentados transformaram essa região, não apenas no aspecto populacional, mas também pelo aumento do desenvolvimento econômico que essas famílias alavancaram, conquistando obras de infraestrutura, abertura de escolas, saúde, proporcionando um percentual significativo de aumento na demanda de consumo, em especial no comércio e setor de serviços”, explica Capelesso.
“Os assentamentos são responsáveis por dinamizar a economia em segmentos que já estavam presentes e também introduzir uma diversidade produtiva que antes não se tinha por aqui”, acrescenta, fazendo referência à produção de leite, grãos, mel, agroindústrias, alimentação diversificada, fruticultura, produção de sementes crioulas e agroecológicas, entre outros. “O momento foi de celebrar, de comemorar, de mostrar união, empenho, de fortalecer nosso território e reafirmar que nossa luta continua, que temos esse dever de dar continuidade à reforma agrária honrando o legado construído por todos que vieram antes de nós e desafiando as futuras gerações a somarem-se nesse processo que é dinâmico e contínuo”, arremata.
“Não podíamos deixar essa data passar em branco e comemorar esses 30 anos foi uma decisão conjunta das famílias”, explicou Marciane Fisher, assentada que atua nos projetos do Instituto Cultural Padre Josimo e na rádio comunitária Terra Livre. “Essas famílias assentadas têm um papel muito importante no dinamismo econômico e social, mas é no aspecto humano que podemos notar as diferenças mais marcantes, por se configurar um povo que valoriza a cultura, a educação, a espiritualidade, a vida em comunidade e se desafia a seguir em frente construindo e crescendo”, reflete a jovem que efetivou seu ciclo de formação fundamental e média em escolas do campo e recentemente alcançou a graduação universitária em curso de Filosofia que foi apoiado pelo movimento. “Hoje temos cerca de 500 jovens e um grande número de crianças que permanecem nos assentamentos, ajudando suas famílias no trabalho diário e garantindo a chegada de novas gerações dispostas a trabalhar pelo legado da reforma agrária e lutar para que cada vez mais gente tenha a possibilidade de ter acesso digno à terra, moradia, trabalho, alimentação, saúde, educação, cultura e lazer”, aponta.
O MST estima que atualmente estejam assentadas no RS mais de 10 mil famílias. Na macro-região do Pampa, são cerca de 5 mil famílias assentadas. Já nos 58 assentamentos localizados entre os municípios de Hulha Negra, Candiota e Aceguá são cerca de 2 mil famílias, perfazendo em torno de 7 mil pessoas. A celebração dos 30 anos da chegada do MST à região desenvolveu atividades esportivas, festivas, feira agroecológica, mostra fotográfica, baile, rodeio de vaca mecânica, apresentações musicais, ato político, mística e celebração, realizadas entre os dias 15 e 16 de dezembro de 2019.
A produção foi apresentada durante a mística (Foto: Elis Regina)
IV – Sobre os 30 anos de MST na Campanha
(texto de Nando Gasso de Gasso)
Celebrar a resistência é o que nos reúne agora
A massa sem-terra que outrora se organiza para lutar
Assim veio conquistar a terra para o sustento
Trazendo para a fronteira progresso e desenvolvimento
A companheirada chegou e fez a transformação
O caminho da produção foi trilhado pelo povo
Abrindo um horizonte novo, clareira para quem caminha
Avançando sobre as linhas do latifúndio que é estorvo
Três décadas se passaram desde que os primeiros chegaram
Os pioneiros que partilharam e valorizaram o chão
Que é um princípio cristão: ser solidário é grandeza
E os que vivem na incerteza tem de onde tirar o pão
Superamos as intempéries do clima que nos judia
Gente de alma brava, que sabe onde quer chegar
Vontade não há de faltar, pois com força nós lutamos
Resistimos 30 anos, com uma estrela a nos guiar:
O sol do socialismo que nos guia e unifica
Produzindo na terra bendita, pois aqui firmou raiz
A colonada que diz, sem ter medo de mentir:
Nosso lema é ocupar, resistir e produzir
Cada conquista presente alicerçada no passado
De quem não se fez de rogado e cerrou firme a fileira
Erguendo a rubra bandeira, sem nunca retroceder
Com voz firme lança o grito: VIVA O MST!
Edição: Marcelo Ferreira