O Rio Grande do Sul deve à União R$ 63 bilhões, dívida que poderia ter sido liquidada em maio de 2013 caso o Estado tivesse usado o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) desde 1998, quando o então governador Antônio Britto assinou o primeiro acordo da dívida. A afirmação foi feita pelo auditor externo do TCE-RS e presidente do Ceape - Sindicato de Auditores Públicos Externos do Tribunal de Contas do Estado, Josué Martins. Ele que também é membro da coordenação do núcleo gaúcho da Auditoria Cidadã da Dívida Pública, foi o convidado para rodas de conversa que ocorreram nessa quinta-feira (12), junto aos servidores públicos em greve no Estado.
De acordo com a Cartilha da Dívida Pública do RS, de 2019, elaborada pelo Ceape http://www.ceapetce.org.br/uploads/documentos/5db86bd13cc961.46010598.pdf, a dívida pública acontece, geralmente, quando o Estado toma dinheiro emprestado. Esse recurso deveria se transformar em estradas, moradias, creches, escolas, tratamento de água e esgoto.
Para Martins, a dívida tem sido utilizada como mais um mecanismo de extração de riqueza da sociedade. “Mas dessa vez se transforma numa injeção direta na veia do sistema financeiro dessa riqueza, ela transfere as riquezas para o setor rentista da sociedade, para o setor não produtivo. Isso tem se apresentado como uma forma de ausência de alternativa de futuro”, destaca o auditor ao pontuar que vivemos numa sociedade que se fundava na produção e no trabalho, e que, com a ascensão do rentismo, passa a ser uma sociedade menos inclusiva.
Rio Grande do Sul, São Paulo Mina Gerais e Rio de Janeiro são os quatro estados com os maiores índices de endividamento nessa modalidade de contratação. Juntos respondem por há 86% da dívida com a União.
Com base em dados da Secretaria da Fazenda do Estado do RS, a cartilha aponta que, de 1970 a 1994, ano do surgimento do plano real, a dívida cresceu em média R$ 1 bilhão ao ano. De 94 a 98, ela dá um salto de R$ 28 bi para R$ 63, um crescimento de mais de R$ 8 bi por ano. “Cálculos efetuados pela Secretaria da Fazenda do RS revelam que contratamos com a União, em 1998, o valor R$ 9,56 bilhões. Já pagamos R$ 37,11 bilhões e, em 31 de dezembro de 2018, ainda devíamos R$ 63 bilhões”.
Como aponta Martins, aquele contrato que era para resolver o problema lá em 1998, na verdade serviu apenas para estabilizar a dívida. “Não entrou nenhum centavo novo nesse período em que a dívida cresce mais de R$ 8 bilhões ao ano”.
Como chegamos a esse ponto?
Segundo explica Martins, isso aconteceu porque a dívida do Estado é dividida em títulos que eram arrolados no mercado a cada vencimento. Ao assinar o acordo em 1998, os títulos da dívida foram entregues à União, quando o Estado passou a ter a dívida e R$ 9,5 bilhões. Contudo o acordo exigia seis condicionantes, medidas de política econômicas, entre elas o controle brutal de gastos com pessoal, privatizações e metas de arrecadação. “Um teto de investimento foi determinado em que o Estado não poderia investir a partir de determinado limite. A união fez conosco um contrato de financista, para ter ganho, para lucrar”, defende.
Com o Regime de Recuperação Fiscal, que o governo Eduardo Leite se esforça para aderir, serão 21 condicionantes, sendo 9 deles sobre despesa com o pessoal, e que tem como primeiro quesito a privatização do setor de energia, saneamento e financeiro do Estado. “Não satisfeitos colocaram uma emenda no projeto de lei e acrescentaram outros”, aponta.
Na avaliação de Martins, o mais grave do Regime de Recuperação Fiscal que se pretende adotar agora é que vai se instalar dentro da Secretaria da Fazenda um comitê de gestão do plano. Composto por três pessoas, duas indicadas pela união uma pelo Estado, o comitê vai ter a responsabilidade de acompanhar o cumprimento desses quesitos.
“Para onde vai o Estado depende da politica econômica que a gente adota aqui. O Regime Recuperação Fiscal é inconstitucional por desrespeitar a autonomia econômica e financeira dos entes federados que está lá na Constituição Federal”.
A argumentação vinda do governo federal sobre o perdão da dívida, que diz que se for reconhecido que essa dívida está quitada o governo quebra, para Martins é uma mentira. O auditor afirma que os mais de R$ 400 bilhões de saldo da dívida dos estados com a União é pago conforme o fluxo anual. A afirmação é feita com base nos últimos dados disponibilizados. “A União recebe R$ 23 milhões, o que não chega a 2,5% da sua receita. Ninguém quebra por perder 2,5% de receitas. O que quebra é esse controle que a União exerce sobre a nossa política econômica, sobre a possibilidade de se definir para onde o Estado vai ou deixa de ir, a política adotada em relação as suas empresas, em relação a sua economia. Isso é essência do Regime de Recuperação Fiscal, isso é essência daquele contrato de 1998”.
Para Martins, se esse passivo R$ 63 bilhões que o RS deve à União fosse retirado, se abriria espaço para novos empréstimos e também para a entrada de recurso novo na economia do Estado. “É grana real que se reproduz ou cria financeiramente e não faltam necessidades de investimento no Estado. O RS hoje não investe R$1 bilhão ao ano. A União, para o ano que vem no seu orçamento, está programado investir R$ 5 milhões. Isso não vai nos retirar da crise, vai aprofundar. Imagine a gente poder irrigar a economia gaúcha com 44 bilhões de reais, mais ou menos, o que abriria de espaço fiscal para novo endividamento”, observa.
O pacote como fio condutor do desmonte
“A essência que estamos vendo hoje, com esse pacote que o Eduardo Leite apresenta, é para garantir a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal. Praticamente uma tentativa de colocar o salário dos servidores em dia reduzindo os salários pelo líquido a partir das contribuições previdenciárias. É congelar o salário daqui pra frente”, afirma Martins ao destacar que o governador está fazendo política de governo e não de Estado, sem se importar com o que vai acontecer nas próximas gestões.
“Com a assinatura do Regime de Recuperação Fiscal, que é a justificativa que ele coloca para apresentar o pacote, pelos nossos cálculos, quando voltarmos a pagar a dívida, que hoje é de R$ 63 bilhões, vai pra R$ 100 bilhões. É mais ou menos isso que vai acontecer, ele vai passar pro próximo governo essa conta. Se fosse só para o próximo governo não seria problema. O problema é que é pra sociedade gaúcha como um todo”, frisa.
O que está por trás dessa formulação é a ideia neoliberal de afastamento do estado da economia, onde a privatização reduz a despesa com servidores, expõe Martins. De acordo com ele, essa lógica se baseia na concepção de diminuir e arrebentar com o Estado com a justificativa de fazê-lo funcionar. “Contudo, a história econômica mostra que sem estado a economia não gira, não funciona. Quem organiza a economia é o Estado”.
Para além dos impactos aos servidores, o pacote afeta também o serviço público. Martins lembra que o próprio governador chegou a dizer que vai precarizar o serviço público para melhorá-lo. “E uma declaração anti estado. O governante que diz uma coisa dessas tem que ir pra casa, é admitir que não sabe o que fazer pra melhorar. Ele disse que tem que piorar pra melhorar. Se tem que piorar, vai piorar, não vai melhorar, é um trocadilho ofensivo”, argumenta Martins, que observa que, apesar de todo desmonte, está tendo muita resistência como a greve unificada dos servidores.
Edição: Marcelo Ferreira