Em greve na defesa do serviço público, os trabalhadores da Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul (SES/RS) fazem um alerta ao desmonte pelo qual passa a pasta com o pacote enviado pelo governador Eduardo Leite (PSDB) à Assembleia Legislativa em regime de urgência. Com a iminência dos cortes de direitos, fim do plano de carreira e mudanças na Previdência, cerca de 700 servidores da saúde encaminharam seus processos de aposentadoria.
Nos últimos dias, houve uma procura desesperada pela aposentadoria, pois os servidores e servidoras não querem arriscar perder mais direitos do que já foi anunciado com a reforma da Previdência, conta o vice-presidente do Sindicato dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul (Sindsepe-RS), Rogério Cardoso Viana. “Cito como exemplo concreto a situação do Ambulatório de Dermatologia Sanitária (ADS) e do Centro de Tratamento e Aconselhamento (CTE), que têm um contingente de 53 servidores e, desse número, 22 pediram a aposentadoria”.
Com 60 anos de idade, 40 anos de trabalho no estado e 30 de contribuição, a auxiliar de serviços de saúde do Hospital Psiquiátrico São Pedro, Vera Lucia Jorge Gasparini, assim que soube do teor do pacote de reforma administrativa, foi uma das que deram entrada no processo de aposentadoria. “Esse pacote nem é da morte, é do inferno, porque é um horror, um desrespeito com a gente que trabalhou uma vida inteira no estado”.
Segundo ela, o clima no local, que já é estressante pela falta de pessoal e acúmulo de funções em uma atividade exigente como é o atendimento a portadores de sofrimento mental, está ainda pior. “Está gerando desespero entre os trabalhadores, corremos risco de perder direitos adquiridos com o governador querendo mudar nosso estatuto”, desabafa.
Após o início da luta unificada dos servidores, porém, Vera Lucia cancelou o processo para seguir na resistência. “Se eu me aposentar, não poderei nem lutar pelos meus direitos, nem pelo hospital, nem pelos pacientes. Então cancelei e vou esperar até derrubar o pacote. No dia da Assembleia dos servidores (26/11), montei um grupo lá no hospital, mas muitos colegas deram entrada no processo e continuam”, aponta.
Serviços em risco
Especialista em Saúde e engenheiro químico, o servidor Luciano Barros Zini avalia que o quadro da saúde no estado é grave. “A SES/RS está prestes a ficar completamente vazia. Os servidores estão super desmotivados nesse contexto de salários atrasados e parcelados. Depois de uma vida inteira dedicada ao serviço público, de uma hora para a outra, sem planejamento nenhum, saem com risco de perda da remuneração”, aponta, explicando que, aos que permanecerem, vai ficar a sobrecarga de demandas, sem perspectivas e motivação para continuar.
A SES/RS tem a competência de coordenar as ações do Sistema Único de Saúde em uma rede regionalizada e hierarquizada. É organizada em 19 Coordenadorias Regionais de Saúde, cada uma responsável por coordenar as ações dos municípios do seu território. Centros de Informações toxicológicas, hemocentros, clínica de hematologia, disque vigilância, farmácia de medicamentos especiais, hospitais e ambulatórios compõem os serviços oferecidos à população gaúcha.
Entre os variados serviços, explica Luciano, auxilia na implementação junto aos municípios das Redes das Pessoas com Deficiências, Rede da Saúde Mental, Rede das Doenças Crônicas, Redes da Emergência e Urgência e Rede Materno Infantil. Também é responsável pela regulação aos mais variados serviços e tratamentos. Realiza análises da qualidade de água e alimentos, levantamentos epidemiológicos, auxilia no combate ao mosquito aedes aegypti. Presta apoio e realiza a vigilância de doenças e agravos que impactam a vida da população, tais como sarampo, difteria, HIV, febre amarela, tétano, entre outras. Contribui nas ações de prevenção e rastreamento dos diversos tipos de câncer, assim como, a responsabilidade pelo monitoramento da qualidade no tratamento dos serviços de Quimioterapia e Radioterapia.
Na sua avaliação, levando em conta os impactos sociais, o governo deveria retirar o pacote da Assembleia Legislativa e trocar por um edital de concurso público para repor os quadros da SES/RS, usando os recursos previstos em lei. “Pela Emenda Constitucional 29/2000, o estado deve investir 12% da arrecadação em saúde. Mas a resolução 02/2019 do Conselho Estadual de Saúde (CES), do controle social, aponta que foi investido apenas 5,67% da receita investida, sendo que esse recurso pode ser aplicado para remuneração de ativos”, aponta Luciano.
Publicada em maio de 2019, a resolução 02/2019 do CES indica que o valor aplicado efetivamente pela SES/RS em 2018 foi de R$ 1,9 bilhão. Considerando que a Receita Líquida de Impostos e Transferências do RS foi de R$ 33,6 bilhões, deixaram de ser aplicados, conforme a legislação, cerca de R$ 2,1 bilhões em Ações e Serviços Públicos de Saúde.
A reportagem do Brasil de Fato RS contatou a SES/RS sobre as 700 aposentadorias, questionando quais os planos da secretaria para dar conta de tantos desligamentos e manter o serviço para a população. Até a publicação desta matéria, a secretaria não havia retornado com sua posição oficial.
Luta contra a privatização da saúde
Para Elsa Roso, da direção do Sindsepe-RS e assistente social no Hospital Sanatório Partenon, está claro que existe um projeto de sociedade e de classe por trás de tudo que envolve o funcionalismo público e a retirada de direitos. Recordando a manifestação do ministro Paulo Guedes, que disse que com a reforma administrativa, vai deixar os servidores irem embora e não vai mais fazer concurso público, ela avalia que o roteiro do governo estadual é o mesmo.
“É um projeto econômico muito similar, para não dizer igual ao do governo Bolsonaro. Eu trabalho na ponta, na assistência direta à população, e a gente vê no dia a dia um empobrecimento, uma precarização das condições de trabalho. A medida que os serviços vão ficando sem condições de funcionamento, com falta de servidores, eles podem justificar a privatização ou a terceirização, seja através de parceria público-privada ou outra forma de comprar o estado”, avalia.
Além da precarização dos serviços, Elsa também reforça o sofrimento dos trabalhadores. “Tem colegas nossos que, em função do empobrecimento, da perda do poder de compra do salário, estão muito doentes, seja pela idade, ou pelo adoecimento mesmo, e que estão trabalhando apesar de não aguentarem mais, só para terem uma renda um pouco maior. Acaba que a aposentadoria, que deveria ser uma fase importante na vida das pessoas, de transição para uma vida mais tranquila, acaba sendo um tremendo sofrimento e uma situação de empobrecimento ainda maior”.
Conforme estudo realizado pela ULBRA, em parceria com o Sintergs, entre julho e setembro de 2018, seis em cada dez servidores públicos do Rio Grande do Sul estão estressados devido à falta de perspectivas no ambiente de trabalho – especialmente em relação à baixa possibilidade de crescimento na carreira e a práticas nocivas de gestão, como discriminação e favoritismo. Acesse aqui o relatório completo da pesquisa.
Para o vice-presidente do Sindsepe-RS, somente a luta dos servidores e o apoio da sociedade podem impedir o desmonte do serviço público. “Não podemos deixar que isto aconteça e prejudique a população mais carente. Estamos em greve por esses motivos, contra o desmonte, contra os ataques injustos aos servidores”, finaliza Rogério.
Tramitação
Mesmo com a greve cada vez ganhando cada vez mais corpo e apoio social, e com manifestações de parlamentares da base política de Eduardo Leite se posicionando pela retirada do regime de urgência, o governador mantém disposição em votar o pacote ainda em dezembro. Composto por oito projetos, se mantida a urgência, devem ir a votação no dia 17 de dezembro um Projeto de Lei (PL) e seis Projetos de Lei Complementar (PLC). Já a votação da PEC necessária para alterar as regras previdenciárias e o plano de carreira dos servidores deve ficar para 2020, pois tem um prazo de 45 dias para ir a votação.
Confira aqui as mudanças propostas no pacote.
Edição: Katia Marko