Rio Grande do Sul

Resistência

Servidores estaduais realizam maior greve dos últimos anos no RS

Na mais forte reação dos últimos anos, funcionalismo estadual vai à greve e desafia a violência do governo Eduardo Leite

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Fórum dos Servidores Públicos do RS realizou ato unificado no dia 26 de novembro
Fórum dos Servidores Públicos do RS realizou ato unificado no dia 26 de novembro - Fotos: Maciel Goelzer

Há 48 meses com salários atrasados e parcelados, os servidores públicos do Rio Grande do Sul resolveram cruzar os braços. Em greve desde o dia 18 de novembro, educadores contabilizam mais de 1.550 escolas paralisadas. Outras categorias do funcionalismo entraram em greve no dia 26. Apesar da penúria que já enfrentam, o estopim para a decisão foi a ameaça de aprovação na Assembleia Legislativa de um pacote de reforma administrativa, proposta pelo governador Eduardo Leite (PSDB). A proposta, apelidada de Pacote da Morte pelas entidades, altera o plano de carreira dos professores e reduz os salários dos servidores devido ao aumento da cobrança de alíquotas previdenciárias de aposentados e a incorporação de vantagens ao piso salarial.

As ameaças aos grevistas não tardaram a chegar. No dia 22 de novembro, o governador disse que iria cortar o ponto dos professores grevistas. A presidente do CPERS disse em entrevista ao jornal Extra Classe, do Sindicato dos Professores (Sinpro): “Seria cômico se não fosse trágico o governador nos ameaçar com corte de ponto. Quem pode cortar salário de quem não recebe?”, afirmou, lembrando que o CPERS já ingressou com um pedido de liminar na justiça visando impedir o governo de adotar esta medida.

Já na tarde do dia 26, um ato pacífico que reuniu milhares de trabalhadores do serviço público terminou em repressão pela tropa de choque da Brigada Militar, em frente ao Palácio Piratini, no centro de Porto Alegre (RS).

Repressão e desrespeito

Um dos servidores feridos durante ato do funcionalismo 

O CPERS Sindicato havia realizado uma assembleia da categoria no local, iniciada às 13h30, com definição de continuidade da paralisação iniciada dia 18, e o comando de greve aguardava ser recebido pelo secretário-chefe da Casa Civil, Otomar Vivian (PP). O ato era pacífico e já contava com servidores das demais categorias, que pela manhã haviam se reunido em assembleia e definido somarem-se à greve.

Os educadores se preparavam para entregar um documento ao governo, pedindo a retomada do diálogo e a retirada do pacote de reforma administrativa. Quando o governo recusou o recebimento, um grupo de manifestantes forçou a derrubada dos gradis e a entrada na sede do governo gaúcho. Policiais militares que estavam dentro do Piratini utilizaram spray de pimenta e distribuíram golpes de cassetete para conter o avanço. Entre os agredidos, estava a presidente do CPERS, Helenir Aguiar Schürer.

Salário de 498 reais

Segundo a presidenta do SINDSEPERS, Diva Luciana Flores da Costa, a reforma proposta por Leite só agravará a situação. Desde 2014, os funcionários não recebem reajuste, nem mesmo a reposição da inflação. Uma perda que já atinge 30% dos vencimentos. O pessoal do quadro da Secretaria da Saúde, por exemplo, recebe salário básico de R$ 498,00 e ganha uma parcela adicional para atingir o nível do salário mínimo nacional, R$ 998,00. Conforme Diva, tais servidores fazem trabalho estressante atendendo no Hospital Psiquiátrico São Pedro, onde são tratados portadores de sofrimento mental e dependentes químicos, grande parte deles com dependência de crack. Outros atendem portadores de tuberculose no Sanatório Partenon ou doentes de hanseníase e portadores de HIV no centro de Dermatologia Sanitária.

Ataques do governo unifica trabalhadores

Servidores lotaram Hotel Everest para Assembleia Unificada de deflagração da greve / Foto: Iuri Casarteli

A decisão foi tomada na assembleia unitária realizada na manhã do dia 26, no Hotel Everest, no centro de Porto Alegre. Declarada por tempo indeterminado, a greve é uma resposta à reestruturação promovida pelo governador Eduardo Leite (PSDB), assim como o atraso e parcelamento de salários.

Realizada em conjunto, reuniu o Sindicato dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul (SINDSEPERS), o Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul (SINTERGS), o Sindicato dos Servidores da Caixa Econômica Estadual do Rio Grande do Sul (SINDICAIXA), a Associação dos Fiscais Agropecuários do Rio Grande do Sul (AFAGRO), a Associação dos Guarda-parques do Rio Grande do Sul (AGP-RS), a Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos da Secretaria de Obras, Públicas, Irrigação e Desenvolvimento (SEASOP) e a Associação dos Servidores de Ciência Agrárias  (ASSAGRA).

Para Antonio Augusto Medeiros, da AFAGRO e eleito recentemente presidente do SINTERGS, esta é a greve mais forte que o RS já teve. “Há uma mobilização nunca vista antes neste Estado e um sentimento de indignação muito forte. Todos os servidores públicos unidos para barrar o pacote de Eduardo Leite, que coloca toda a culpa nos servidores. Não temos culpa pelo endividamento do Estado. A solução passa por serviços públicos fortes”, afirma.

Rodrigo Marques, da ASSAGRA, observou que os serviços públicos estão sendo atacados e que isso vai gerar perda significativa de serviços importantes. “Vemos o sucateamento desses serviços para que a população não seja atendida, mesmo tendo dinheiro oriundo de convênios federais”, frisou, ressaltando, assim como nas inúmeras manifestações, a importância da unidade.

“O governador sabe que a população nos apoia, a sociedade conhece as mentiras do governo e está vendo a situação de desespero que os servidores estão vivendo. Eduardo Leite não sabe com quem se meteu, vários setores que nunca fizeram greve agora aderem ao movimento com força e disposição”, afirmou o presidente do SINDICAIXA, Érico Corrêa.

A presidenta do SINDSEPERS, Diva Luciana Flores da Costa, é categórica. Para ela, “a situação está terrível como nunca antes na história. Há 48 meses recebendo salários atrasados e parcelados, muitos estão ficando desesperados, pois recebem salários incompletos, enquanto suas contas estão vencendo”. Explica que, para resolver a situação, os funcionários recorrem a empréstimos no Banco do Estado do Rio Grande do Sul, o Banrisul, que até criou a modalidade do “Banrisalário”, uma espécie de empréstimo consignado. A última parcela do décimo terceiro de 2018 está sendo paga agora, em novembro de 2019, para os que não fizeram empréstimos ou estavam sem crédito por inadimplência.

Nutricionista vira costureira, artesã e garçonete para pagar as contas

Rienne Denise Figueiredo dos Santos é uma nutricionista de 56 anos. Ela trabalha como auxiliar de laboratório no Laboratório Central do Estado do Rio Grande do Sul (Lacergs). Lá, por ter dedicação exclusiva, recebe salário de R$ 1,7 mil. Até o dia 20 de novembro só receberá três parcelas de R$ 250,00 correspondentes aos vencimentos de setembro.

Para sobreviver, ela faz artesanato, trabalha de garçonete em eventos, e normalmente, após sua jornada de trabalho, costura diariamente até a meia-noite. Aos sábados, vende sua produção numa feira de artesanatos da capital.

Além disso, reforma as roupas de suas colegas e, neste semestre, montou um brechó. Começou a vender suas roupas usadas e outras que recebe de doação de colegas mais abonadas ou cujos maridos ganham bem.

Mora em um apartamento de um quarto no bairro Bom Fim, mas procura outro lugar para morar, pois está impossibilitada de pagar o aluguel. Muitas colegas, conta, vivem a mesma situação.

Professor busca segundo contrato para sobreviver

Professor de história, Matheus Peregrina Hernandes tem um contrato de 20 horas no Estado e, agora, para poder manter a família, conseguiu outro contrato no município de Porto Alegre.

Ele leciona na escola estadual Almirante Barroso, na Ilha da Pintada, onde dá aulas nas terças, quintas e sábados. Nas segundas, quartas e sextas é professor da matéria na escola municipal Pessoa de Brum, no bairro Restinga, no outro extremo da capital. No município, seu salário é de R$ 2,8 mil e atualmente está em dia. No Estado, onde trabalha em local de difícil acesso, recebe R$ 1,8 mil parcelados.

Hernandes mora em Canoas e leciona numa ilha do estuário do Guaíba. Em três dias da semana desloca-se para um bairro distante 35 quilômetros do centro de Porto Alegre.

Seu casamento terminou neste ano. Separou-se da companheira que também leciona em dois municípios, Porto Alegre e Guaíba. Eles têm duas filhas, uma de seis anos e outra de um.

"Não é fácil manter um casamento quando além dos problemas normais entre casais temos ainda os financeiros atrapalhando tudo”, argumenta. Hernandes conta que, até agora, só recebeu R$ 700,00 do salário de setembro e não sabe mais o que fazer. É formado em História pela UFRGS e pós-graduado em educação pela mesma universidade. “Dou aula porque gosto e tenho uma relação muito forte com meus alunos”, diz, lembrando que, com a reforma apresentada pelo governador à Assembleia Legislativa, poderá perder a gratificação de difícil acesso. Se acontecer, seu salário no governo estadual, além de atrasado e parcelado, será reduzido em cerca de R$ 600 mensais.

Ex-professora de Leite diz que antigo aluno pratica “crueldade” com a vida dos educadores

"Hoje eu estou paralisada! Não só me referindo às atividades docentes, mas paralisada por tamanha crueldade que este senhor está fazendo com a minha profissão, com minha dignidade, com minha vida!” Este foi o desabafo no Facebook de Clarissa Meroni de Souza, ex-professora de arte e teatro do hoje governador Eduardo Leite.

“Não existem palavras para expressar a dor que sinto e que tento compartilhar com vocês amigos, neste post”, escreveu ao criticar o pacote do governador que atinge o plano de carreira dos professores.

A postagem foi ilustrada com fotos de 23 anos atrás: “E esse lindo menino loirinho, de azul na primeira foto, o primeiro da direita para esquerda, na segunda foto, o de camisa xadrez, deitado no chão, na terceira foto, me fez acreditar em suas promessas de campanha: ‘O RS tem dinheiro, pagar os salários em dia é uma questão de gerenciamento financeiro’…”

Adiante, Clarice escreveu: “Agora, além de continuar atrasando/parcelando meu salário, comprometendo diretamente meu dia-a-dia, liquida de vez com meu futuro! Enviando esta proposta de reforma descabida que afeta sem dó nem piedade a vida dos professores”.

Quando um amigo da rede social comentou que Leite seria “um ator”, a ex-professora concordou: “Lamento ter sido a professora de teatro dele... pelo jeito, fiz um bom trabalho! Seria cômico se não fosse trágico!”

Edição: Katia Marko e Ayrton Centeno