Nos últimos anos, o déficit habitacional cresceu no Brasil, alcançando a marca recorde de 7,78 de moradias em 2017. A pesquisa da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta uma elevação de 7%, desde 2007. Ao mesmo tempo em que o problema aumenta, as políticas são cada vez mais enxugadas. O orçamento para habitação em 2020 foi reduzido pelo governo Bolsonaro em 41%. Com isso, apenas R$ 2,7 bilhões serão destinados ao programa Minha Casa Minha Vida. De 2009 a 2018, a média anual orçamentária do programa foi de R$ 11,3 bilhões.
A partir desse contexto, a fim de construir possíveis saídas políticas, a Comissão de Segurança e Serviços Públicos da Assembleia Legislativa recebeu o coordenador do Programa de Habitação do “We Effect” para América Latina, ex-secretário e ex-presidente da Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua (FUCVAM) e representante da ONU, Gustavo González. Ele partilhou a experiência uruguaia na audiência pública “Modelo cooperativista habitacional do Uruguai e os desafios do Brasil”, realizada nesta quarta-feira (20), por proposição do deputado Zé Nunes (PT).
Prestes a completar 50 anos, a experiência do país vizinho traz um modelo habitacional coletivo, a partir de cooperativas, que além de entregar moradias, desenvolve formação política e social. Antes do início da audiência pública, Gustavo González concedeu entrevista coletiva à imprensa, quando explicou detalhes do modelo, que é tido como exemplar, já foi aplicado com sucesso alguns países da América Latina, e pode contribuir no caso brasileiro. Segundo ele, o mercado não é eficiente em solucionar o problema habitacional e a experiência uruguaia mostra que o caminho passa pela criação de políticas públicas, com financiamentos, assessoramento e incentivo à organização social.
A seguir, confira os melhores momentos da entrevista:
Trajetória do programa de habitação
O Uruguai tem forte tradição do movimento trabalhador solidário. Na década de 1960, o país vivia uma forte crise econômica e governo convocou uma comissão para falar sobre saúde, educação e moradia. Os progressistas começaram a ver dois temas centrais, primeiro que o país necessitava de uma lei nacional de habitação, segundo que deveria haver um fundo do Estado para os setores populares.
Nesse momento, a indústria da construção se interessou nesse fundo, mas os técnicos, preocupados com o movimento popular, pensaram “o que vai acontecer com os trabalhadores se o fundo atuar só com a indústria da construção?” Então começou a se discutir o modelo cooperativista.
O movimento sindical, os trabalhadores, foram os primeiros a abraçarem a ideia. Em 1968, se aprova a lei nacional de habitação. A lei constituiu dois tipos de cooperativas: territoriais, qualquer bairro onde as pessoas podem se juntar, ou programa de produção, de metalúrgicos, trabalhadores da indústria têxtil, trabalhadores organizados em sindicatos.
Chegamos a ter, no primeiro período, três experiências pilotos, muitos legisladores perguntavam “o que é isso de dar dinheiro a cooperativados, para gente pobre?” Mas o projeto de lei amparava que a cooperativa tem que ter um instituto de assistência técnica. Porque se o Estado tem que investir, tem que investir bem. Começou a expandir e hoje temos mais de 500 cooperativas em todo o país, movimento que completa 50 anos.
Conceito coletivo
O empresário quer dinheiro, o trabalhador quer habitação. O grande debate é habitação, se é mercado, não pode resolver para os pobres. Se é direito como educação e saúde, então o Estado tem que financiar.
Um problema da moradia é em que terra se vai construir? O problema do solo urbano é muito grande. Se os países da América Latina seguirem as coordenadas dos organismos multilaterais, vamos ter que falar com a Nasa para que as pessoas flutuem, porque já não há terra. A terra é o que há, tem que ser concebida também para o componente habitacional. Então um elemento fundamental no Uruguai é que o Estado tem uma carteira de terra.
Também existe a capacitação de pessoas. Uma cooperativa é uma empresa coletiva e tem que se construir bem, tem que ser melhor que o capital. Só na intermediação, uma empresa ganha 40% do custo da moradia. O modelo rompe com a intermediação, as pessoas constroem a moradia. Tem mão de obra contratada para a parte elétrica, sanitária, mas nós temos também os braços para trabalhar e a cabeça com ideias.
Terceiro elemento, a propriedade é coletiva. Se o Estado financia habitação, você tem direito até último dia de sua vida a viver nessa moradia. São totalmente financiadas pelo Estado. Se você tem algum dinheiro do Estado, do conjunto da sociedade, você não pode vender no mercado.
Dentro da lei nacional, há um capítulo sobre a lei de moradia. A lei obriga que o Estado tem que ter solo urbano para conjunto de moradia popular. É importante dizer que tudo isso que estou falando se conquistou com muita luta. É uma realidade, os conservadores não vão dar, o movimento popular tem que lutar para conquistar uma lei. No Brasil, o Minha Casa Minha Vida deu moradia para as pessoas? Sim. Resolveu o problema de muita gente? Sim. Mas as pessoas se empoderaram do Minha Casa Minha Vida para discutir? Ninguém se empodera como uma pessoa que constrói o que é seu.
Moradia é política
Sem instrumentos políticos, problema habitacional não tem solução. O capital tem uma virtude, eles estudaram que nós, em algum lugar, temos que construir. E deixa que as pessoas vão à periferia para construir. Então os organismos multilaterais dizem “o Estado não pode se meter no financiamento. O mercado deve regularizar tudo o que diz respeito a moradia”. Mas quais são os resultados? Há 30 anos do Consenso de Washington, déficit quantitativo e qualitativo em todos os países da América Latina. Menos no Uruguai, que aumentou 35%. Conclusão, o mercado não resolve nada.
Complicou mais o problema, mais pobres na periferia, menos moradia. Então se trata de trocar essa política. É fácil? Não. É complexo e tem que trabalhar muito, tem que comprometer a academia, setores comprometidos com o movimento popular, formar lideranças, ter instrumentos políticos. As prefeituras, por lei no Uruguai, estão obrigadas a ter carteira de terra para seu departamento. E agora conquistamos carteira de imóveis, moradias velhas, mas que têm todos os serviços, então fazemos muita reciclagem através de cooperativas. A Ciudad Vieja de Montevidéo tem mais de 27 cooperativas de moradia em locais que estavam destruídos.
Esse processo nunca parou. As vezes teve mais apoio, as vezes menos, segundo a vontade política do governo. A Câmara de Vereadores aprova pressupostos que envia ao executivo, mas como você tem uma lei nacional, obriga que a prefeitura tem que ter essa carteira. Isso é fundamental, se não resolver o problema da terra, é muito difícil resolver o da moradia. E o financiamento ser estatal é fundamental. Nós agora temos 22% do orçamento para moradia, já chegamos a ter até 40%.
Organização e formação
Temos equipes da assistência técnica que trabalham no período da obra, mas a Federação das Cooperativas (Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua - FUCVAM) tem a escola de formação política e formamos as pessoas. Primeiro para a etapa da conquista de terra, do empréstimo para a construção, e logo para a construção da comunidade. As cooperativas têm academias, jardins de infância, postos de saúde, bibliotecas. A moradia não é do cidadão, é da cooperativa, ele ganha o direito de habitar, que é transferível para os filhos como herança.
Há um pagamento mensal e ninguém paga mais de 20% da renda familiar. Isso é muito importante, porque garante que tu vai poder amortizar. Mas se a pessoa perde o trabalho, daí tem subsídio do Estado. Primeiro tem o fundo de socorro dos cooperativados, juntamos dinheiro, alguém tem problema, vamos discutir e ajudar. Depois ele tem que devolver ao fundo, mas mão perde a moradia. Agora conquistamos o Estado direto subsidiando, mas por mais de 40 anos tivemos o socorro dos cooperativados. É um modelo para as camadas mais humildes da população, trabalhadoras, trabalhadores, economia informal, mas é essencialmente educativo, de formação, sem educação não há cooperativa.
Modelo exemplar
Mas o modelo mostra que ele não é só para o Uruguai, tem experiência na América Central. É para todos os povos. Alcançando os instrumentos, formando pessoas, hoje têm cooperativas nesses países centro-americanos, que tem uma realidade diferente do Uruguai, com maior índice de pobreza, mas conseguiram desenvolver. O tema é que tem que se conquistar os três elementos: os instrumentos políticos para que se possa desenvolver o modelo e depois trabalhar na formação das pessoas. Estamos abertos a todos os povos latino-americanos, podem contar conosco.
A seguir, assista à coletiva na íntegra:
* Com informações da Rede Soberania
Edição: Katia Marko