Ecoa um tambor, uma roda de capoeira se arma, a ancestralidade se manifesta, várias histórias se descortinaram na intervenção feita por atores e bailarinos negros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A performance que retratou histórias de uma cosmologia negra fez parte de inúmeras atividades realizadas no mês da Consciência Negra para ressaltar a resistência e existência dentro da universidade. Apesar dos dados divulgados pelo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta semana, o percentual de estudantes negros está distante de retratar a realidade, pontuada por racismo, dificuldades de manutenção, disparidade docente, entre outras.
Cerca de 19 mil estudantes ingressaram no ensino superior pela política de cotas entre 2008 e setembro de 2018, de acordo com o relatório divulgado em 2018 pela Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da UFRGS (CAF). Desse universo, 3.849 ingressos estão na modalidade reservada para autodeclarados pretos, pardos ou indígenas egressos de escola pública e 2.096 de autodeclarados pretos, pardos ou indígenas com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo.
Na manhã dessa desta quarta-feira (20), cerca 400 pessoas se reuniram diante do prédio da Reitoria da UFRGS, para tirar uma foto coletiva no Dia da Consciência Negra. O registro marcou a presença de alunos, professores, técnicos administrativos e terceirizados. É o terceiro ano consecutivo que o retrato é feito, com o objetivo de dar visibilidade à presença dos negros na universidade.
Rui Moreira dos Santos, bailarino, 56 anos, estudante do curso de licenciatura de dança da UFRGS desde 2018, participou da performance feita em frente ao Salão de Atos da universidade antes da foto coletiva. Ao ser indagado sobre o significado do mês da Consciência Negra, afirmou ao Brasil de Fato RS que o Brasil é a maior diáspora do planeta. “Se nós, nesse território não tivermos noção desse fato, nós vivemos de maneira parcial dentro da consciência nacional. Então, dias, momentos, encontros, eventos que têm a possibilidade de falar, de relembrar tudo isso, nos coloca com a possibilidade de desenvolver valores como cidadania e amor ao próximo”, opinou.
O bailarino tem sua história permeada por 40 anos de envolvimento com a dança, trajetória iniciada em São Paulo, seguida de passagem por Minas Gerais, onde entrou na Companhia do Grupo Corpo, criando depois sua própria companhia que saiu viajando pelo país fazendo pesquisas autorais. Sobre a presença de bailarinos e estudantes negros e negras na dança, ele observa que a dança como manifestação da alma é, dentro do Brasil, um ato geopolítico e negro. Contudo, ressalva, no que diz respeito à cultura das danças cênicas, que a dança negra ainda fica na escala de baixo. “Talvez nós por inconsciência não tenhamos ainda chegado nesse o ponto de compreensão da relevância dessas matrizes”.
Para a professora de teatro do programa de pós-graduação em artes cênicas, Celina Alcântara, que também participou da intervenção, a inserção de alunos e alunas negras dentro da área teve um salto se comparado ao tempo em que ela fazia a graduação, sendo na época a única estudante negra do Departamento de Arte Dramática (DAD) do Instituto de Artes da UFRGS. Contudo, observou que existe a questão central da permanência desses estudantes diante do desgaste econômico da universidade.
“Não é só as pessoas entrarem na universidade, mas se manterem. Toda essa questão que está acontecendo agora, de diminuição de verba, está afetando diretamente os estudantes negros e negras. Isso é o que eu vejo no DAD, os estudantes negros, meus alunos, têm cada vez mais dificuldade de se manter no curso, de ir as aulas, de ter possibilidade de comprar livros”, pontuou.
A professora também apontou que, diante dos estudantes não se enxergando nos currículos e autores trabalhados nas disciplinas, está se montando uma Afroteca, uma biblioteca afro, no DAD, que está aberta à doações.
Ainda há muito que se conquistar
Conforme frisou Celina, as políticas afirmativas de inclusão são consequência de uma luta do movimento negro, das pessoas negras que vem batalhando desde que eram escravizadas e depois da escravização. “Essa luta, hoje, conseguiu alguns ganhos, mas temos muito ainda que conseguir, sobretudo dentro da universidade. Os alunos negros e negras ainda são poucos pensando no universo da universidade. E os professores são menos ainda. Eu sou a única professora lá do DAD. Então a gente têm muito o que caminhar”.
Sobre a pesquisa do IBGE, Celina ressaltou que não adianta dizer que isso aconteceu sem analisar o contexto universitário, quando não se tinha nada. “Em virtude disso pode-se pensar que esse número quadruplicou. Mas temos que ver a realidade desses números na universidade. Tem toda a questão em relação às cotas e às fraudes, que é outra coisa de que não se fala”, ressalvou a professora, que complementou dizendo que ao mesmo tempo que a comunidade negra é, aparentemente, mais de 50%, tem que ver o que isso significa em termos de ganhos.
“Se somos 50%, então essa fatia de ganho econômico não está bem distribuída, não estamos recebendo o nosso devido valor”.
De acordo com o levantamento feito pelo IBGE os rendimentos dos homens brancos, quando comparados aos das mulheres pretas ou pardas, que recebem 44,4% menos do que eles. Nos cargos gerenciais, enquanto a população branca é de 68,6%, os cargos ocupados por negros ou pardos são de 29,9%. A taxa de violência também é maior nas pessoas declaradas pardas ou negras, sejam homens ou mulheres.
Para a escritora e poetisa Lilian Rose Marques da Rocha, bioquímica, formada em farmácia pela UFRGS, o mês da Consciência Negra é fundamental. “Depois de tantos anos, após a abolição falsa, porque ainda os negros continuam numa posição muito ruim socialmente, é muito importante demarcar que vivemos em uma sociedade com um racismo estrutural ainda muito forte. E o 20 de novembro serve para demonstrar isso”, assinalou.
Ao comentar sobre a presença da mulher negra na literatura, afirmou que há um grupo bem forte de mulheres que escrevem no RS, e que a luta é constante diante de um mercado editorial que ainda é branco e masculino. “É mais difícil ainda para as mulheres, em especial para as mulheres negras. Mesmo assim nós temos um trabalho muito efetivo, vamos em várias escolas, trabalhamos em vários saraus”, apontou.
Lilian faz parte do Sarau Sopapo Poético, de protagonismo negro, fundando por Oliveira Silveira, poeta e um dos idealizadores do 20 de novembro.
Racismo persistente
Estudante da pós-graduação de fisioterapia , Úrsula Ingrid alimentava seu filho de 10 meses, Brian, quando conversou com o Brasil de Fato. Para ela, o novembro é um mês de reflexão, principalmente dentro da universidade, porque se sofre racismo nesse espaço. Recordou que quando se formou, em 2015, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o ambiente era horrível, muito opressor e de muito racismo.
Ela se emocionou ao lembrar de um episódio em que um professor estava passando uma matéria no quadro e ela estava escrevendo de cabeça baixa, e quando levantou os olhos, era a única pessoa isolada num canto. “Todos os meus outros colegas estavam do outro lado, como se eu tivesse alguma doença contagiosa só por ser negra”, desabafou.
A pós-graduanda comentou que através das redes sociais ficou sabendo que a universidade onde se formou, e onde era única estudante negra na foto de formatura, atualmente tem um coletivo de pessoas negras que antes não existia. “Nós que nos formamos antes abrimos as portas para as pessoas que entraram agora”, ressaltou.
Úrsula acredita que o preconceito ainda persiste também dentro da UFRGS e que ele não vem só por parte dos alunos, mas também por parte de professores. “Tudo é mais barrado pra nós negros, se você tiver que estudar fora, fazer um intercâmbio, é feito uma manipulação para que a gente não consiga avançar, inclusive na pós-graduação, mestrado doutorado”, pontuou.
A existência do racismo estrutural também foi observada por Emily Priscila Silva dos Santos, acadêmica do décimo semestre do curso de odontologia da UFRGS, e coordenadora do núcleo da saúde, que congrega os cursos da farmácia, odontologia e medicina e o programa de pós-graduação em saúde coletiva. “Os cursos da saúde têm um padrão, padrão odonto, padrão médico. E percebemos o quanto ainda é difícil ver profissionais e professores nos quais podemos nos sentir representados”, observou.
“Fazer esse evento nesses cursos que são extremamente tradicionalistas, onde já tem um perfil de um estudante que vem do interior, branco, louro, é estar pontuando a nossa existência aqui dentro, é estar pontuando não só a nossa sobrevivência, que todos os dias tem que lidar com racismo estrutural, mas também pontuar que estamos existindo, estamos representando a nossa cultura, as nossas famílias. Não estudamos só para nós, estudamos pelos que passaram e os que estão por vir”.
De acordo com ela, o racismo vem sendo por muito tempo reproduzido de forma indireta ou direta. “Todo aluno negro da UFRGS já sofreu algum caso de racismo, é a coisa mais óbvia, cada um tem a sua história, e acredito que mais que pontuar o racismo, estamos pontuando também que deve-se criminalizar tal atitude”, destacou ao informar que, na sexta-feira (22), haverá uma atividade com um advogado negro da Universidade de Pelotas (UFPEL), em que serão discutidas formas de trabalhar a situação.
“Muitas vezes a ouvidoria não dá conta da denúncia e fica só por isso. E nos sentimos pressionados porque temos que nos expor. Estamos organizando como coletivo, inspirado em muitos outros coletivos, como o negração, o negretes da medicina, ou balanta, para poder denunciar e ter um retorno’.
Sem desmerecer o mês da Consciência Negra, a professora Celina pontuou que o tema precisa ser lembrado todos os meses. “A gente, muitas vezes, não faz um retrospecto das coisas desde a sua gênese, aí o mês fica sendo essa vitrine que não dá conta das questões importantes, que são cerne, continuam nos subjetivando, continuam nos constituindo, ou seja, o racismo nosso de cada dia”, finalizou
Durante o dia 20, a Universidade promoveu a abertura Seminário Internacional Pensamento e Vivências Negras no Universo Feminino, evento construído coletivamente por Associação Acbantu, Gel Cultura Africana, Maria Mulher Organização de Mulheres Negras e Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS), com apoio da Fundação Bienal do Mercosul. O evento que realizará mais dois encontros em março e junho de 2020, discutiu a mulher negra quilombola e as intelectuais negras.
Na próxima semana, a universidade promoverá a Semana de Estudos Africanos e Afro Brasileiros, no Campus do Vale.
Edição: Marcelo Ferreira