“As sementes levam um tempo para frutificar, eu diria que hoje estão aparecendo os primeiros frutos da queda do muro de Berlim, o muro caiu há 30 anos e o planeta entrou na hegemonia neoliberal sem nenhum fator de contestação, nem um tipo de regime alternativo, e com isso nessas três décadas o capitalismo foi mostrando seu verdadeiro perfil”, afirmou Frei Betto, na última terça-feira (12), durante o lançamento da sua biografia, em Porto Alegre (RS), realizado no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região.
Escrita pela jornalista Evanize Sydow e pelo historiador e professor da Escola de Ciências Sociais da FGV (CPDOC), Américo Freire, o livro da editora Civilização Brasileira tem prefácio de Fidel Castro. Além de contar a história do frade dominicano, jornalista e escritor, traça a história de uma geração, de um país, durante 50 anos. O livro foi resultado de quatro anos de pesquisa e inúmeros depoimentos.
No Brasil, de acordo com dados do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 10% da população tem 43,3% da renda da riqueza nacional, enquanto a extrema pobreza atinge 13,5 milhões de pessoas, chegando em 2018 ao maior nível em 7 anos. “Agora que não há mais a ameaça comunista, perigo socialista, a não ser na cabeça do Bolsonaro, a burguesia tirou a máscara e mostrou a que veio: acumulação privada do capital sem nenhuma sensibilidade com a questão social”, frisou o Frei.
Apesar de considerar as três gestões do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) como os melhores governos da história republicana do país - através das conquistas e da redução das desigualdades sociais, da inclusão não só social, mas também da educação, principalmente em nível universitário, do resgate da soberania nacional e do respeito que o Brasil tinha na política mundial - ressalvou os três equívocos que, ao ser ver, explica um pouco a abertura de espaço para o atual governo.
Primeiro, apontou, o não cuidado com a alfabetização política do povo. “A direita faz isso 24 horas por dia, ela deseduca ideologicamente a população. Apesar de termos o legado de Paulo Freire, a gente não cuidou de fazer esse trabalho, seja por veículos oficiais ou outras ferramentas”. O segundo ponto, destacou, foi a facilitação ao bens materiais em detrimento do acesso a bens sociais, como fez a Europa no início do século 20. “Receio que tenhamos criado uma nação de consumistas e não de cidadãos, com isso perdemos a oportunidade de fazermos algumas reformas estruturais. Governo Temer e Bolsonaro, na linha totalmente adversa ao que nós queremos, já fizeram. Ficamos devendo a reforma politica, trabalhista, tributária, agrária”. E por último o não fortalecimento dos movimentos sociais.
Frei Betto, que durante a ditadura militar ficou quatro anos presos, sendo dois como preso político e dois como preso comum, destacou também, como ascensão do governo de Jair Bolsonaro ao poder, a não punição dos crimes cometidos na ditadura. "Se tivéssemos feito no Brasil o que foi feito no Uruguai, Chile, Argentina, de levar aos tribunais os criminosos confessos ou comprovados de 21 anos de ditadura, hoje não estávamos vivendo em um governo paramilitar. Às vezes eu não sei se ele é paramilitar ou miliciano, está ai na sombra das duas figuras”, apontou. Complementou ainda que a luta pela memória do que foi a ditadura não pode jamais ser abandonada: “Jamais podemos permitir que sejam esquecidos os fatos terríveis acontecidos naquele momento para que ele não retorne. Os ventos estão batendo para favorecer um tipo de governo muito autocrático que pode desembocar em uma nova ditadura”.
Mesmo vivendo um momento que, em sua avaliação, é extremamente difícil, e em escala internacional, ele vê na mobilização que se conseguiu com a libertação de Lula, e na mobilização que ocorre na Bolívia, sinais de esperança e de que existe um potencial muito grande de pessoas querendo abraçar o processo de transformação. “Para isso é preciso que a gente se liberte dos calendários eleitorais e elabore o projeto Brasil, que Brasil que queremos”.
Antes do lançamento do livro, Frei Bettto conversou brevemente com o Brasil de Fato RS sobre o contexto atual e o papel da religião no campo político. Veja abaixo a entrevista:
Brasil de Fato RS: Qual avaliação que o senhor faz do contexto atual político e social que estamos vivendo no país e na América Latina?
Frei Betto: O contexto que estamos vivendo é muito preocupante porque é um avanço de uma extrema-direita que não tem nenhum respeito pelos preceitos constitucionais, que cada vez mais age na linha fundamentalista, inclusive com manipulação de segmentos religiosos, e por vezes eu temo que alguns segmentos religiosos venham a ser tão extremados na América Latina como segmentos islâmicos se tornaram extremados no oriente.
BdFRS: Estamos vendo a ascensão das igrejas neopentecostais...
Frei Betto: Não podemos generalizar, tem muitas igrejas neopentecostais que são positivas, que estão sintonizadas com a questão social, e outras não. Mas eu tenho esse receio hoje, que essa escalada da direita venha se fortalecer, a menos que a gente fortaleça os movimentos populares. É uma falha que temos cometido nas últimas décadas, a de não fortalecer os movimentos populares. Portanto, a base da democracia quer o empoderamento popular.
BdFRS: Como o senhor avalia o movimento Lula Livre, o que representa a sua soltura, e o movimento de deputados ligados ao PSL pedirem a prisão preventiva?
Frei Betto: A palavra correta é Lula Solto. Vários processos ainda pesam sobre ele, nenhum com fundamento, nenhum com provas, mas toda essa manobra pode, de novo, inviabilizar a possibilidade de ser candidato e levá-lo de novo ao cárcere. Daí a importância dele percorrer o Brasil e fortalecer também essa mobilização popular que foi tão expressiva quando na soltura dele do cárcere de Curitiba.
BdFRS: E há também as Frentes que vem sendo criadas...
Frei Betto: As Frentes são boas, mas a gente precisaria chegar a uma frente semelhante à Frente Ampla do Uruguai. Porque a esquerda competindo entre si só favorecer à vitória da direita.
BdFRS: Sobre as mobilizações e ataques que vem ocorrendo nos países da América Latina, como no Chile, Haiti, Bolívia, qual a avaliação que o senhor faz? Seria exagero dizermos que a América Latina sangra de novo?
Frei Betto: Estou preocupado com toda essa escalada e creio que é hora de voltarmos ao trabalho de base. Pro isso que eu preparei essa cartilha em forma de livro, O Marxismo ainda é útil?, porque sem uma visão marxista da realidade a gente não vai conseguir avançar muito.
Os movimentos sociais e os partidos progressistas precisam voltar às bases, como aquilo que nós fizemos nos anos 60, 70, fortalecendo as comunidades eclesiais de base, os sindicatos, a educação popular na linha do Paulo Freire. Só que a gente se acostumou um pouquinho a estar no governo e ficamos de salto alto, fomos cooptados por essas estruturas viciantes, e com isso pouca gente hoje quer passar o fim de semana na periferia, na zona rural.
Enfim, a gente muitas vezes se prende à síndrome do eleitoralismo, essa é outra falha grande, a esquerda ficar dependente do calendário eleitoral.
BdFRS: Vemos também de volta a censura, no cinema, na Bienal do Livro, com as charges aqui em Porto Alegre...
Frei Betto: Isso faz parte da escalada da direita, censura, desemprego. Eles estão pouco se lixando com esse número de desempregados, com o aumento da desigualdade, porque o que importa para eles é concentração do capital nas mãos de uma elite. Então, nada disso a que você e eu somos sensíveis interessa a eles. Eles não estão nem aí com o número de mortos, excluídos, famintos, da violência, desde que a violência não chegue a eles.
BdFRS: Qual o papel da religião e da espiritualidade nesse campo?
Frei Betto: Ela é muito importante porque a espiritualidade, pelo menos a cristã, ela é originariamente revolucionária, conscientizadora, tanto que os primeiros cristãos derrubaram o império romano. Agora, a religião, como a política, é uma faca de dois gumes: pode ser utilizada para libertar e pode ser utilizado para oprimir, portanto aqueles que têm motivação religiosa, que tem fé, devem voltar a um trabalho também forte de resgate dessas forças religiosas, em uma linha progressista. Ainda mais agora que nós temos o Papa Francisco, aqueles que são católicos, como a principal referência mundial do ponto de vista progressista e ao mesmo tempo dando toda força nessa linha. O Papa Francisco, muito aliado à teoria da libertação, promoveu recentemente esse Sínodo da Amazônia, e foi muito crítico ao capitalismo, tanto que está convocando para março do ano que vem um grande evento sobre uma alternativa econômica ao capitalismo, que será realizado em Assis.
Edição: Marcelo Ferreira