No último sábado fui convidado a participar de uma mesa na feira do livro de Porto Alegre com o amigo e autor do ótimo livro “Guerra Híbrida Contra o Brazil”, de Ilton Freitas. Na oportunidade, fiz algumas anotações com objetivo de contribuir com o debate, levando em conta o meu acúmulo e entendimento de um período histórico recente que começou a mudar a história do Brasil. O Ilton, numa entrevista no jornal sul21, afirmou:
"Tento demonstrar que a Guerra Híbrida, movida pelo império norte-americano, esteve por trás das ditas ‘jornadas de junho de 2013’.”
A minha análise parte do ponto de vista das exatas e da comunicação. Exatas pois os dados e estatísticas das pesquisas nas redes, nas ruas e nas mídias de massa, são o ponto de partida. Da comunicação, porque entendo que houve uma alteração no padrão de comunicação com a massificação do uso das redes sociais da internet, com o crescimento da capacidade autônoma de comunicação e, por consequência, isso está sendo determinante na formação da opinião pública e pelas novas dinâmicas e estruturas dos movimentos sociais do século XXI.
Na comunicação, acontece o declínio da hegemonia das mídias de massa broadcasting - rádios, tvs, impressos, portais - e uma nova forma de comunicação assume o protagonismo nas disputas - a "autocomunicação de multidões". Aqui, no uso desse termo, faço um remix com o conceito “autocomunicação” [1] do Manuel Castells e de “multidões”[2] de Toni Negri e Michael Hardt . Nesse período as conversas interpessoais de indivíduos conectados em rede dão o tom na formação da opinião pública.
Além disso, a Internet nesse caso não é somente um componente ou meio de comunicação [3]. É também o corpo orgânico dos movimentos sociais. A identidade coletiva é formada diretamente nas redes da Internet e “… temos visto e estudado processos de comportamento coletivo que não estão baseados em organizações sociais constituídas, nem em entidades ou vínculos fortes. Isso é, temos observado comportamentos inteligentes de redes de pessoas que majoritariamente não se conheciam, não estavam organizadas por uma autoridade central, por nenhuma orientação secreta, por isso acreditamos ser pertinente situarmos o conceito de enxame para dar conta destes fenômenos” [4].
Desde Tunis, em 2011, à Greta Thunberg pelo clima, passando pelo Equador, Hong Kong, “coletes amarelos” na França, Chile, agora ainda fervendo em 2019, observamos o mesmo comportamento tecnopolítico dos movimentos sociais, com elementos comuns que não podem ser desprezados. Observamos o mesmo nas revoltas dos indignados espanhóis #15M, #OcupyWallStreet em 2011, #soy132 no México em 2012, nas jornadas de junho no Brasil e na Turquia #parqueGezi em 2013. Nesses casos e tantos outros, não são os movimentos históricos, partidos e sindicatos, que assumem o protagonismo. A ‘rede’ passou a ser a estrutura orgânica dos movimentos, que viralizam da internet pras ruas. São movimentos reais e que movem multidões. Não é uma pregação minha para que sejam assim, ou uma análise que assim é melhor do que nos períodos anteriores, mas é uma constatação de uma nova realidade concreta.
Em outubro de 2013, escrevi um artigo para um suplemento especial de fim de ano do jornal ‘La Vanguardia’ da Catalunha - “O poder das redes sociais” [5], intitulado “Brasil 2013: as ruas e a Presidenta”[6], baseado na análise das redes, das mídias de massa e pesquisas nas ruas durante as manifestações de junho. Além de ser uma análise a quente dos acontecimentos, contrasta com pesquisas qualitativas de comportamento em relação as ruas dos movimentos de impeachment que surgiram a partir de 2014. “Voltaram as ruas do Brasil, centenas de milhares, no 15 de março (2015), como em junho de 2013, Mas não é a mesma rua, ainda que a corrupção política segue sendo o centro dos protestos. Não é a mesma rua pelo que pedem nem por que o pedem” escreveu Manuel Castells [7]. A faixa etária e renda dos manifestantes comprova que não foram os mesmos. As reivindicações dos manifestantes também foram bem opostas, menos o combate a corrupção.
As jornadas de junho de 2013 mostraram que tinha um bug no sistema político corrupto e uma crise de credibilidade nas instituições do Estado Democrático de Direito. Ainda que no Brasil estivéssemos vivendo o nosso melhor momento na economia e nas conquistas de nossos direitos. Os principais pontos levantados pelos manifestantes eram problemas reais e urgentes. Foi um levante antissistema, e não contra o governo. Na verdade, atualmente estas estruturas de poder não estão servindo nem para ‘democráticas’ nem para 'de direito'. O processo institucional que levou ao impeachment da Dilma e à condenação do Lula, que ocorreu aqui no Brasil, é um modus operandi da democracia liberal na atualidade. Isso não ocorre só aqui, mas infelizmente, em todo mundo. As instituições não nos representam mais. Aos protestos, manifestações com reivindicações legítimas, os Estados respondem com bombas de gás, tiros com balas de borracha, prisões, mortes, desrespeitando os direitos humanos.
Na obra “Comunicação e Poder” [8], Manuel Castells apresenta estatísticas globais sobre a credibilidade das massas nas instituições das democracias liberais. A galera não acredita mais nas instituições, com razão. E ao ser desrespeitada por anos, não aguenta mais e explode num enfrentamento aos aparatos de Estado, com indignação, raiva e algumas das vezes com ações de autodefesa usando a violência e depredações.
Nesse contexto de falta real de credibilidade no 'sistema', a extrema-direita apresenta saídas ‘antissistema’, trabalha com as emoções dessa indignação real generalizada e aponta como perspectiva reformas e uma saída, porém conservadora e autoritária. Atua tecnopoliticamente com máquinas de manipulação de massas, criando pós-verdades através de distribuição de fake news nas redes de ‘autocomunicação de multidões’. Eles utilizam o expertise tecnológico de diversas disciplinas da ciência da computação, da comunicação, da neurociência para manipular as multidões e fraudar a democracia. Conversas pessoais dos “tiozinhos do whatsapp” dão o tom. Entram novos atores - robôs e ciborgs - o uso de grandes bases de dados pessoais - big data - , inteligência artificial, segmentação de públicos e conteúdos. Fazem da comunicação na Internet um ‘trabalho de base’ de largo tempo. Criam uma estrutura orgânica, contaminando cada segmento com suas teses e ideologias.
Sim, existe outra conspiração global, liderada por Steve Bannon e milionários de extrema-direita. Do brexit ao Bolsonaro ou até no golpe da Bolívia. Eles não são os mesmos que a CIA e agências de inteligência dos Estados. Podem atuar, muitas vezes, com os mesmos objetivos geopolíticos e pontuais. Mas, essa conspiração também é contra os mercados globalizados, contra a ONU, contra a Europa, Mercosul, o papa, o feminismo, os negros, os LGBTQ’s, a cultura e a educação. Bipolarizam como estratégia contra um inimigo comum numa linguagem memetizada - “todos-contra-a-roubalheira-do-PT” - aqui no Brasil. Seja qual for o assunto ou tema, vira tudo um greNAL, briga de torcidas onde o conteúdo não importa. Importa de que lado da torcida tu estás. Na maioria das vezes entramos no jogo bipolar, com orgulho e certezas absolutas que esse é o caminho do enfrentamento. Eles ganharam assim no brexit, com Trump, Bolsonaro, Vox na Espanha. Se colocam como os antisstema e pra eles as instituições, da ONU ao Estado de direito e democrático, os meios de comunicação como a Globo, Estadão e Folha, também são inimigos a serem combatidos. Atuam nas redes e por fora das instituições, o Trump e o Bozo operam assim.
(In)conclusão
Dilma estava certa [9] ao apresentar um pacto emergencial de 5 pontos, inclusive com a instalação de uma assembleia constituinte, justo num momento em que ainda tínhamos a maioria na opinião pública e estávamos nas instituições do Estado. O PT e as esquerdas institucionalizadas optaram pela via única, trilhando o caminho conhecido do sistema político corrupto. As dinâmicas para as eleições de 2014, como objetivo imediato de formar alianças e engordar a base aliada de sustentação, da forma corrupta como sempre foi feito na nossa história. Essa dinâmica convencional levou a abandonarmos o pacto de 5 pontos propostos pela Presidenta.
Deveríamos ter ouvido o recado das ruas, com humildade e sem soberba, reconhecendo o novo protagonismo dos jovens em 2013. Estava na energia das ruas e nos novos protagonistas, a força para dar continuidade e fazer avançar, além das instituições, as reformas iniciadas pelos governos de Lula e Dilma. A ‘crise de protagonismo’ e a não compreensão do que estava acontecendo foi, na minha opinião, um fator determinante para entendermos os desdobramentos que nos levaram ao Brasil de hoje. “Ou nos atualizamos, ou desaparecemos” [10].
* Marcelo D’Elia Branco é profissional na área das tecnologias da informação há 25 anos, coordenador do projeto «Software Livre Brasil» (http://www.softwarelivre.org), professor honorário do Instituto superior tecnológico CEVATEC, em Lima, no Peru, e membro do Conselho científico do programa internacional de estudos superiores em software livre na Universidade Aberta de Catalunha - UOC - na Espanha.
Referências:
[1]“Autocomunicação porque traz autonomia na emissão de mensagens, autonomia na seleção da recepção de mensagens, autonomia na organização de redes sociais próprias e na organização de um hipertexto cognitivo e formativo em que estão todas as informações digitalizadas". E, para explicar como essa autocomunicação assume as características de mídia “de massas", Castells afirma que “se pode alcançar potencialmente uma audiência massiva através das redes de redes". Com isso, o sociólogo ressignifica o conceito tradicionalmente aplicado a mídias de emissão unilateral, como televisão e rádio, cujas mensagens o receptor recebe em “estado vegetativo". Diferentemente das mídias de massa tradicionais, a internet dá voz ao receptor. É possível a qualquer internauta, como o próprio Castells apontou, produzir, selecionar, armazenar e recuperar informações em diversos formatos. A mídia não é mais privilégio de celebridades, de políticos e da intelectualidade. Qualquer um (que tiver rompido a barreira do acesso) pode ter suas festas e baladas documentadas, publicar suas opiniões num blog ou criar mobilizações pelas redes sociais.” https://www.fronteiras.com/noticias/a-autocomunicacao-de-massas-segundo-castells-1427130204
[2] Antonio Negri e Michael Hardt https://razaoinadequada.com/2015/07/15/negri-e-hardt-multidao/
[3] “A internet não é mais um componente, é o próprio corpo dos movimentos” Marcelo Branco http://softwarelivre.org/branco/blog/a-internet-nao-e-mais-um-componente-e-o-proprio-corpo-dos-movimentos
[4] "Tecnopolítica e#15M: A potência das multidões conectadas" Javier Toret. http://medialabufrj.net/eventos/2013/11/tecnopolitica-y-15m/
[5] “O poder das redes sociais” - La Vanguardia Dossier – Barcelona https://www.lavanguardia.com/internacional/20131217/54397298092/el-poder-de-las-redes-sociales-vanguardia-dossier.html
[6] Brasil 2013, as ruas e a Presidenta – Marcelo Branco - http://softwarelivre.org/branco/blog/la-vanguardia-dossier-brasil-2013-as-ruas-e-a-presidenta-dilmabr
[7] Brasil, la calle neoliberalde de 15 de marzo – Manuel Castells - http://softwarelivre.org/branco/blog/manuel-castells-brasil-la-calle-neoliberal-15-de-marzo
[8] Comunicación y Poder, Manuel Castells https://www.livrariacultura.com.br/p/livros/ciencias-sociais/ciencias-politicas/comunicacion-y-poder-2967977id_link=8787&adtype=pla&gclid=EAIaIQobChMIvIKPodnx5QIVjYGRCh2p7AYgEAYYBSABEgIw9fD_BwE
[9] As ruas e a Presidenta, Marcelo Branco, La Vanguardia dossier - http://softwarelivre.org/branco/blog/la-vanguardia-dossier-brasil-2013-as-ruas-e-a-presidenta-dilmabr
[10] Manuel Castells, no Chile https://www.facebook.com/marcelo.branco/videos/10220293038857019/
Edição: Marcelo Ferreira