Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Pedro Ruas: ‘A Legalidade e o legado de Brizola inspiram a defesa da democracia’

O ex-deputado estadual conversou com o Brasil de Fato sobre a Rede da Legalidade e sua convivência com o ex-governador

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Defesa da democracia, novamente necessária nos dias atuais, foi o mote da Rede da Legalidade nos anos 60
Defesa da democracia, novamente necessária nos dias atuais, foi o mote da Rede da Legalidade nos anos 60 - Foto: Fabiana Reinholz

“Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste palácio, numa demonstração de protesto contra esta loucura e este desatino. Venham, e se eles quiserem cometer esta chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim.

Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta Nação.

Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim. Podem atirar. Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo! Joguem estas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência do nosso povo!

Um abraço, meu povo querido! Se não puder falar mais, será porque não me foi possível! Todos sabem o que estou fazendo! Adeus, meu Rio Grande querido! Pode ser este, realmente, o nosso adeus! Mas aqui estaremos para cumprir o nosso dever."

Assim termina o discurso de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, no dia 28 de agosto de 1961, na campanha da Legalidade. Movimento liderado por Brizola que assegurou a posse do vice-presidente João Goulart, o Jango, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961.

Esse episódio, retratado recentemente no filme Legalidade, do diretor gaúcho Zeca Brito, foi tema do bate-papo do Brasil de Fato RS, com transmissão ao vivo pela Rede Soberania, com o advogado trabalhista, político gaúcho, ex-secretário de Estado no governo Olívio Dutra, ex-vereador, ex-deputado estadual, fundador de dois partidos (PDT e PSOL), e que também foi conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Pedro Ruas.  A entrevista também está disponível em vídeo, no canal do BdF RS no Youtube.

Além de resgatar este importante momento histórico, Ruas relembra o legado brizolista, em especial na educação, assim como o episódio do sapo barbudo, quando então Brizola manifestou apoio a Lula nas eleições de 1989, e da importância da unidade popular frente aos retrocessos e ao fascismo imposto pelo atual governo federal. “Acho que a Rede da Legalidade e o Brizola são uma inspiração. E a atuação do Brizola posterior à legalidade também”, pontua.

Confira a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato RS: Gostaria que nos falasse o que achou do filme Legalidade?

Pedro Ruas: Eu achei o filme do Zeca Brito muito bom, porque, para quem gosta de cinema como eu, gosta de história e, principalmente, dessa parte da história, ele traz uma ficção na frente, e como pano de fundo, a história verdadeira do país e do Estado, que é a Legalidade. Eu pude identificar inúmeros personagens da história que eu tive a alegria e a honra de conhecer e conviver pessoalmente, e são inúmeros casos, Santorinha, Amilton Chaves, Major Neme, depois Coronel Neme, além do próprio comandante Brizola.

E eu sabia bastante sobre a Legalidade, não só por relatos, como também por estudo. O filme é extraordinário, com uma atuação marcante do Leonardo Machado, a quem rendo minhas homenagens, foi o último filme que ele gravou, lamentavelmente perdemos o Leonardo, grande ator gaúcho brasileiro. Mesmo a história ficcional que serve, digamos, para justificar o conjunto dos dados históricos que são trazidos no período de 1961, ela também tem alguns elementos possíveis de serem reais. Aquela jornalista, que é interpretada pela atriz Cléo Pires, era na verdade uma agente da CIA, na ficção, porém em 61 era muito comum agentes da CIA aqui infiltrados, via de regra, assumindo papéis no jornalismo. Nem só no jornalismo, mas havia muitos no jornalismo. Então a própria parte ficcional da narrativa do filme é passível de ser verdadeira, não aqueles personagens exatamente, mas outras e outros tantos que desempenharam aquele papel que eu acho muito ruim, que eram agentes de potências estrangeiras, espionando aqui, basicamente, os passos do doutor Brizola, que era visto como uma ameaça pelo império americano.

Cena do filme Legalidade, com Leonardo Machado interpretando Brizola / Foto: Divulgação

BdFRS: O filme entrou em cartaz em cinemas como o Cinebancários, Casa de Cultura Mario Quintana, mas não entrou em cinemas de grande circulação. E agora tivemos a prova do ENEM falando sobre a democratização do cinema. Esse é um filme, que em minha opinião deveria ser visto por um grande público e ser passado nas escolas. Como tu achas que podemos fomentar esse filme?

Pedro Ruas: O Brasil de Fato e a Rede Soberania estão fazendo isso agora, falando e divulgando a importância do filme, isso já é um papel que vocês estão desempenhando de forma intensa. Quanto maior for a divulgação melhor para o filme e para a formação cidadã das pessoas. Porque a Legalidade é um episódio histórico que nunca foi estudado no Brasil. Há uma coincidência, depois que ocorre o episódio, três anos depois há o golpe militar, de uma ditadura brutal, onde falar Brizola, falar de legalidade podia dar cadeia.

Não houve um estudo, na minha geração, eu tinha cinco anos em 61, na minha formação, no primário, ginásio, científico, que foi todo no período da ditadura militar, não se falava nisso. Na minha casa se falava porque meus pais eram brizolistas, tínhamos conhecimento disso, mas eu sei que ninguém falava, e eu era recomendado a não falar também, até para as crianças era perigoso. Portanto, existe uma lacuna no conhecimento das nossas crianças, adolescentes, jovens em geral, e a população como um todo, que é justamente saber sobre esse episódio extraordinário. Eu considero o maior levante cívico da história do Brasil, a Legalidade.

BdFRS: Nos conte um pouco mais sobre esse episódio, apesar de tu ter cinco anos, o teu pai na época participou desse episódio e estava dentro do palácio junto com Brizola, o senhor Isnar Camargo Ruas. E ele na época era editor de economia do Correio do Povo.

Pedro Ruas: O pai está com 88 anos, quando ele tinha 25 anos eu nasci. Além de ter aquelas lembranças da infância, eu tive a oportunidade incomum, singular, de conviver muito com o doutor Brizola, durante 26 anos, e desses 26, os últimos 15 com muita intensidade. E eu pude, através dele saber bastante sobre a Legalidade. E também li livros que surgiram, e destaco aqui o Flávio Tavares e o Juremir Machado, mas há outros tantos que falaram e escreveram, o Alcy Cheuiche me falou muito sobre isso, Antônio Augusto Fagundes (Nico Fagundes) participou bastante da Legalidade e me falou muitas coisas, enfim, todo mundo que tinha algum conhecimento. Além do Flávio, o Índio Vargas, pessoa extraordinária de participação na Legalidade, o Lauro Hagemann. É um episódio que me interessou muito e me interessa até hoje, e acho que o filme faz esse resgate.

Para entender a Legalidade temos que perceber o seguinte, em 1961 nós vivíamos o auge da guerra fria no planeta, nós vínhamos da Revolução Cubana em 1959. Em 1961 nós temos um movimento importante porque há uma renúncia absolutamente inesperada. A renúncia do presidente Jânio Quadros foi algo que caiu como uma bomba no Brasil e no mundo, em agosto de 61. E aqui abro um parêntese para dizer que naquele período presidente e vice concorriam em chapas separadas.

Então o João Goulart, o Jango, foi eleito vice-presidente em uma chapa separada com mais votos que o Jânio Quadros, em uma chapa do PTB. Como ele tinha sido eleito antes, vice-presidente do Juscelino Kubitschek, era a segunda vez que Jango era vice-presidente. Mas quando o Jânio renuncia, o Jango está em visita diplomática à China, e há uma posição aqui dos militares brasileiros, tanto do Exército, quanto da Marinha e da Aeronáutica, quanto setores mais conservadores da sociedade nacional de que o Jango não deveria ser o presidente da República, porque o Jango era um comunista notório. O Jango não era comunista, ele era, inclusive, um fazendeiro de São Borja, com terras no Uruguai. Mas era a visão das elites dominantes daquele período de que o Jango era um comunista, tipo agora, que todo mundo que não concorda com determinadas ideias passa a ser comunista. E não que seja defeito ser comunista, eu considero assim. Não vejo nenhum problema ser comunista. Era algo que importava na impossibilidade do Jango tomar posse.

No dia 25 de agosto, dia do soldado, o doutor Brizola recebe essa informação de que esses setores militares não concordariam com a posse do Jango. E ele agiu imediatamente, e acho isso um dado extraordinário do Brizola. Ele sempre falava sobre isso, um político tem que ter a consciência histórica do momento que vive, e se portar de acordo com isso. Essa é uma lição dele para mim para sempre, o momento histórico que vive o político e o que ele deve fazer.

O doutor Brizola não utilizava a expressão cenários, falava diferente, dizia assim, desdobramento da realidade. Avaliava a partir daquele momento que se vive, daquela circunstância, o que poderá ocorrer, pode ir para cá o caminho, para lá e nós temos que ver qual é o melhor para o povo brasileiro e adotar uma postura coerente com isso, essa é a grande lição dele, para mim, definitiva.

Além disso, o vice-presidente era seu amigo pessoal, companheiro de ideais, de partido, era gaúcho também, além de eles serem cunhados, Brizola era casado com a Dona Neusa, irmã do João Goulart. Então havia toda uma relação.

BdFRS: E o Brizola havia recém-chegado do encontro em Punta D’Leste, no Uruguai, com Che Guevara e outras lideranças da América Latina...

Pedro Ruas: O que é verdade, exatamente. O Brizola conheceu o Che Guevara no Uruguai em Punta D’Leste, eles só se conheciam de nome. O Guevara era uma liderança mundial. Lá conversaram muito, tiveram um ótimo entendimento nas ideias, no que fazer. As ideias de nacionalizações realizadas em Cuba e que o Brizola adotou aqui. O Brizola encampou a Bodenchire e criou a CEEE, encampou outra multinacional, a Haititi e criou a CRT. Tinha uma linha de aproximação assim, da visão brizolista de governar com a visão cubana. Mas isso não tinha uma relação direta com Jango, havia uma relação indireta, talvez.

E há esse movimento contra o João Goulart e Brizola toma posição forte, fortíssima, exatamente na coerência, e o Brizola não tinha 40 anos, nessa época tinha 39. Brizola era de 22, estamos em 61, tinha 39 anos de idade, importante salientar isso, a juventude do Brizola, de um governante que liderou o Brasil inteiro naquele momento. Mas ele toma decisão e divulga um manifesto pela posse de João Goulart, e muitos veículos de comunicação, principalmente rádios, jornais, evidentemente, divulgam o manifesto brizolista a favor da posse de João Goulart. Uma única rádio não transmitiu aquele manifesto, a Rádio Guaíba, posição do doutor Breno Caldas na época. O Breno Caldas tinha uma posição de contestação ao Brizola no governo, então a Guaíba não transmite por conta da posição da família Caldas, e particularmente do Breno Caldas que era o chefe daquele grupo jornalístico.

Brizola requisitou a rádio Guaíba, que não teve seu sinal cortado porque não transmitiu seu discurso / Foto: Reprodução

Todas as emissoras que transmitiram o manifesto foram impedidas de funcionar, eles tiravam, na época, os cristais que era uma maneira de fazer uma rádio entrar no ar, todas foram impedidas de funcionar por determinação dos ministros militares, portanto a Guaíba não foi impedida de funcionar porque ela não transmitiu o manifesto. O que o governador Brizola faz, e eu estou resumindo bastante, quando ele vê que há o enfrentamento, que há necessidade do enfrentamento de ideias na opinião pública, e sabe lá onde isso iria terminar, ele chama os seus companheiros, em boa parte assessores também, lutadores sociais de diversas outras origens, e toma a decisão seríssima de apreender os equipamentos da rádio Guaíba, que tinha muita potência, e leva tudo para o porão do Palácio Piratini. E assim começa a Rede da Legalidade, também chamada na época de cadeia da Legalidade. Cadeia seria um conjunto de emissoras, capitaneadas pela rádio Guaíba, e a partir da visão e do comando político do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. E aquilo se transformou, repito, o maior movimento cívico da história do Brasil. Lamentavelmente pouco ou nada estudado porque a partir de 1964 tivemos o golpe militar e a brutal ditadura no Brasil, que impediu o conhecimento de gerações e até agora, desse episódio heroico.

Mas a partir daquele momento o Brizola começa a colocar, gradativamente, com muita intensidade, o chamamento à população do Rio Grande e do Brasil para cumprimento da Constituição, o cumprimento da lei, por isso o nome Legalidade. No impedimento do presidente da República, quem tem que assumir e governar é o vice-presidente que foi eleito para isso, e saliento mais uma vez, inclusive em chapa separada. Ele não era um vice eleito pelo prestígio do presidente, não. Ele era um vice eleito pelo seu próprio prestígio, que concorreu a vice em chapa separada do presidente. O Jânio Quadros foi eleito pela aliança da UDN e o Jango pela aliança do PTB, concorreram em chapas separadas, isso é um dado importante de reflexão, a legitimidade do Jango era extraordinária.

BdFRS: Quanto mais tu fala, mais me vem a comparação com o momento atual, com o que a gente está vivendo. Teve a questão da cadeia e todo esse movimento que isso suscitou, das pessoas virem para frente do palácio, ocuparem a Praça da Matriz, criarem comitês nos bairros, nas cidades, comitês em defesa da democracia e da Constituição. Hoje a gente está vivendo novamente esse movimento.

Pedro Ruas: Eu acho que nós não temos claro, a liderança de um Leonel Brizola, não temos a circunstância de 1961, mas tu tens toda a razão de que devemos buscar nesse episódio um grande exemplo a ser seguido, e de conscientização.

Aqui próximo, na Praça da Matriz, o Brizola reunia diariamente mais de 100 mil pessoas para ouvi-lo na sacada do palácio. As pessoas ouviam e começaram a ouvir no país inteiro, pela cadeia da Legalidade, e aquilo começa a ter desdobramento em Pernambuco, Amazonas, enfim, começa a ter no Maranhão e no Rio de Janeiro... Há também uma reação duríssima dos militares, inclusive com ameaças fortes, intensas e até de bombardeamento do Palácio Piratini. Até nesse nível chega. E o Brizola organiza então aquilo que era um grande episódio de resistência popular. E ele parte para algo que bem, naquela circunstância, naquele momento, era o que podia ser feito, para além da conscientização do povo, também armá-lo. O Brizola busca, dentro das condições precárias da época, armar a população. É famoso o episódio dos revólveres Taurus, mais de 10.000 (dez mil) distribuídos, boa parte pessoalmente pelo governador Brizola, um deles meu pai recebeu. E naquele momento armar a população também era simbólico, a população do Rio Grande vai resistir, pelo menos. Mas a resistência já tinha em nível nacional também. Tanto que depois, percebendo essa realidade forte, intensa, o comandante do 3º Exército, e aqui eu já estou pulando algumas etapas, mas a gente retorna depois, ele acaba fechando com a ideia de que Jango deveria tomar posse, que isso era cumprir a Constituição Federal.

Brizola fez um chamamento ao povo gaúcho pelo cumprimento da Constituição / Foto: Reprodução

Claro que o Brizola, com o 3º Exército apoiando, já não tinha mais nada que pudesse separá-lo da vitória. Mas é relevante salientar que antes disso, isso foi no último momento, todo o preparativo era para uma resistência heroica, com muita chance de grandes sacrifícios, a começar pelo próprio governador que se recusava a sair do Palácio, andava permanentemente com a metralhadora. E quando veio a informação de que haveria confronto armado, Brizola falou para alguns ministros militares, gravou e falou também no próprio telefone. Sei que para o general Costa e Silva ele disse que a população estava armada. E disse: “O primeiro tiro contra brasileiros, mesmo que estejam defendendo a posição norte-americana, não será nosso, mas o segundo, terceiro, quarto, quinto serão todos nossos. Nós resistiremos até o último homem, até a última bala, nós lutamos pela legalidade, somos resistência do povo brasileiro.” Aquilo era muito forte vindo do Brizola. Aquilo trouxe muita gente também, quando começa a ter manifestação de governadores, quando começa a haver manifestações populares também em outros estados além do nosso, e de forma intensa, isso começa a assustar também o Comando Militar. E eles passam a buscar algumas alternativas.

Nós temos que imaginar, na época nós não tínhamos essa facilidade de comunicação que temos agora, que uma pessoa pode pegar um celular e ligar para o outro lado do planeta, e Terra é redonda, mas não dá para fazer isso, porque não havia essa facilidade de comunicação. Então o próprio contato com o João Goulart era muito precário, era muito difícil. E aí naquele momento o Brizola tinha que decidir as coisas com as pessoas que podia decidir, mas a decisão estratégica, a mais importante, e não cada momento especificamente, mas a, digamos assim, finalística era resistir e não aceitar as condições daquilo que Brizola denominava como um golpe dos Gorilas. Os gorilas eram aqueles oficiais militares vinculados ao que ele chamava de poder Ianque, o império norte-americano.

BdFRS: Aqui pela Rede Soberania, a Jurema está lembrando que o povo organizou o mata borrão para alistamento. Como foi isso?

Pedro Ruas: A Jurema e nos traz um dado histórico importante. O povo organiza o mata borrão, que era ali na Borges de Medeiros, um local que era de distribuição de material, distribuição de cartazes, chegou a ser de distribuição de alimentos também para os voluntários da Legalidade, e também de armas, a pessoa recebia o revólver, dava o recibo, e era chamado de soldado da Legalidade.

Há um momento que eu queria salientar, quando há uma decisão dos ministros militares de bombardear o palácio. O que o governador Brizola me contou desse episódio é que ele toma a decisão, que combinava muito com ele, de ficar no Palácio. “Se vão bombardear eu estarei dentro do Palácio”, e ficou. Ele tinha três filhos, e ele pede pra primeira-dama, Dona Neuza Goulart Brizola, que vá embora com os filhos, porque ele dizia que alguém tinha que criar as crianças. No último momento ela coloca as crianças no automóvel e volta, e diz “eu vou ficar contigo”. E ela fica com ele, contra a vontade dele, e as crianças vão para casa. Claro que naquele meio tempo havia várias pessoas lá. O Calixto fez um documentário sobre os 40 anos da Legalidade, há pessoas trabalhando para que não ocorra o bombardeio, inclusive dentro das forças armadas e particularmente nas patentes mais baixas. Na Aeronáutica há um levante de soldados, cabos e sargentos, e eles furam os pneus das aeronaves, pois com os pneus furados não poderiam decolar para bombardear o palácio e prendem os oficiais superiores. É importante esse dado porque é uma revolta popular, episódio histórico da maior relevância, porque há uma mudança, percebendo a circunstância histórica, o subordinado na hierarquia militar assume um comando a ponto de prender o seu comandante para impedir o massacre.

Nós vimos agora no Chile vários momentos em que soldados acabam indo comemorar com o povo. Eles comemoram com o povo chileno, abraçam, brincam, dançam, eu tenho visto, recebido muitas imagens assim, emocionantes.

E aquele é o momento derradeiro, onde não há o bombardeio, mas sim uma mudança de posição do 3° Exército, portanto uma decisão de apoiar a Legalidade. E a partir dali o povo brasileiro cresce muito em termos de protagonismo e essas forças militares reacionárias e as elites brasileiras, elas são naquele momento, naquelas circunstâncias vencidas por isso. O episódio não termina aí, mas naquele momento é assim que funciona.

BdFRS: E se vive um momento no país, nesses anos, das reformas de base, o Brizola mesmo era um defensor da reforma agrária. Muitas vezes eu me pergunto o que teria sido o Brasil se tivéssemos continuado com essas reformas.

Pedro Ruas: As reformas de base foram uma grande bandeira do João Goulart, inspirado no Brizola, mas ele levou para o plano nacional. Então, havia a reforma agrária, a mais importante, mas também a bancária e tantas outras. Mas uma que eu dou muita importância e que foi um projeto de reforma, foi protagonizado por uma pessoa, é bom fazer justiça, o deputado federal da época Onírio Machado. Ele fez o primeiro projeto encampado pelo Jango nas suas reformas de base, contra a remessa dos lucros das empresas estrangeiras para o exterior, que isso era indiscriminado, ou seja, não havia nenhum limite, quase como hoje. E o Jango, e aí tem o projeto o Onírio Machado, mas o Jango trazia nas reformas um limite, fazendo relação direta entre o investimento feito no Brasil e o que iria sair de volta para o estrangeiro, ou seja, limitando bastante o que saísse, que eram riquezas nossas. As reformas de base do Jango vão servir de pretexto depois em 1964 para o golpe militar que o tira da Presidência, o exila, e segundo muitos, dentro da operação Condor, acaba com a sua própria vida.

"As reformas de base foram uma grande bandeira do João Goulart, inspirado no Brizola" / Foto: Fabiana Reinholz

Mas voltando ainda a 1961, nós temos ali esse momento, em que esse protagonismo extraordinário que Brizola assume, ele tem o amparo popular imprescindível. Ele mesmo dizia, o Brizola narrando é bem interessante por vários motivos, mas por uma questão central, ele dá todo protagonismo para o povo. Eu tive a honra e a felicidade de poder ouví-lo contando da Legalidade, todo o protagonismo é do povo, desde o início até o final, ele era apenas um agente das ideias que vinham do povo. E de fato o protagonismo do povo era extraordinário porque sem esse apoio popular, como é que ia fazer. Não haveria Legalidade que funcionasse, não haveria movimento de liderança que pudesse alterar a realidade política e histórica do Brasil. Mas houve o apoio, foi algo massificado realmente e que todos queriam o cumprimento da lei, o cumprimento da Constituição Federal, um amor pela Constituição Federal.

Eu faço uma vinda para os dias de hoje, onde o que diz a Constituição, ou o que não diz, é totalmente irrelevante, no momento presente nosso contemporâneo, porque as pessoas não se interessam por isso, e tanto faz e tanto fez. E não é assim, nós temos a chamada Constituição cidadã de 1988. Ali havia um conhecimento pleno, as pessoas conheciam e queriam o cumprimento da lei. E havia alguém eleito para ser vice-presidente que naquelas condições de renúncia, teria que ser o presidente, e era João Goulart. Então eu acho que esse movimento da Legalidade, e aqui eu volto um pouquinho ao filme, ele é extraordinário, e ele resgata. Ele é muito bem feito, com um orçamento bem baixo, e ele traz no seu pano de fundo histórico muitos elementos que deveriam ser estudados e ser do conhecimento de todos.

BdFRS: Desses anos todos ao lado do Brizola, qual o seu principal legado. Ele investia fortemente na educação, tinha uma consciência da importância da comunicação, tanto que comprava muitas brigas com a Rede Globo, foi o único direito de resposta no Jornal Nacional, lido pelo Cid Moreira. Então, para ti qual o principal legado?

Pedro Ruas: Bem, nós estamos falando de um episódio específico, sobre a Legalidade, e que é gigantesco, que deveria sim, repito ser conhecido e ser estudado por todos. Quando a gente fala do Brizola vai além. Esse amor dele pelo povo e seu compromisso com os interesses populares em detrimento dos interesses das elites parece algo que marca a trajetória de uma forma indelével.

Agora, se eu fosse salientar uma obstinação brizolista, que me toca muito, é a educação. O Brizola tinha um conceito já aqui no governo do estado, onde ele fez mais de 6 mil escolas, as chamadas Brizoletas, escolas de madeira, que todos pudessem ter acesso ao ensino. Ele tinha um conceito que depois, digamos assim, se torna superior com o conhecimento do professor Darcy Ribeiro, que criou a Universidade de Brasília, nosso grande sociólogo, antropólogo.

Mas o Brizola tinha a seguinte ideia: não há igualdade social, mas nós podemos buscar essa igualdade através da igualdade de oportunidades a partir da infância, de educação. A educação é que pode nos dar uma igualdade no futuro para os adultos. Portanto ele formulava o seguinte conceito: a igualdade de oportunidades, e não quer dizer que todos vão aproveitá-las, mas a maioria sim, a igualdade de oportunidades é uma obrigação do Estado, Estado no sentido amplo, o Estado Nação. É obrigação do poder público. A obrigação do Estado é dar igualdade de oportunidades que vem basicamente da educação.

"Uma obstinação brizolista, que me toca muito, é a educação" / Foto: Fabiana Reinholz

Esse conceito que existia aqui no Rio Grande do Sul no governo Brizola, depois no Rio de Janeiro, já com o conhecimento extraordinário do Darcy Ribeiro, em 1984, quando eles criam os CIEPs, que é a chamada escola de turno integral. É a escola onde a criança chega de manhã, tem a primeira refeição, que é o café da manhã. Estuda, depois almoça, tem atendimento médico, odontológico, e vai fazer seus temas assistido. Tem educação física, janta e vai para casa. Isso o Brizola dizia, e também o Darcy Ribeiro, eu ouvi ambos falarem sobre isso: de nada adianta passar lições para uma criança com fome, ou para uma criança com dor de dente, ou uma criança com problemas tais que não consiga aprender, tem que dar também o suporte todo que é a alimentação, que é o remédio, que é assistência médica, que é assistência emocional, já haviam psicólogos nos CIEPs. E aí sim a criança pode aprender. E aí sim nós temos o conceito da igualdade de oportunidades.

Nós não podemos ter, e temos no Brasil, lamentavelmente, muitas situações, o chamado destino social, isso é uma teorização do Darcy Ribeiro. O que é o destino social: é uma criança que aos seis, sete anos ingressa em uma escola de baixa qualidade ou nenhuma, e depois de 10 anos ela não tem nenhuma alternativa mais de disputar um vestibular em uma universidade pública, um emprego decente, e vai para as piores posições na sociedade. O seu destino social em 10 anos está traçado. Ao entrar em uma escola sem qualidade ou nenhuma, ou de baixa qualidade, ela está na verdade, tendo por parte do poder público o seu destino social traçado, e é contra isso que lutava o Brizola, é contra isso que lutava Darcy Ribeiro. Se eu fosse destacar um aspecto da orientação brizolista de governo, era essa obstinação, com a educação, como a única maneira de dar igualdade de oportunidade para as pessoas.

BdFRS: Dentro dessa visão que tu colocastes do Brizola, da realidade e de compreensão da política, eu lembro daquela eleição em que ele assumiu a chapa com o Lula (1998), em que todo mundo falava, agora vai engolir o sapo barbudo... Qual o ensinamento que isso nos traz para esse momento em que é tão importante a unidade em frentes progressistas para enfrentar a ultra-direita nas próximas eleições?

Pedro Ruas: Muito importante essa pergunta porque eu aproveito para fazer um esclarecimento histórico. Eu estava com o Brizola em vários momentos, inclusive nessa história do sapo barbudo, que não é como ficou conhecida.

Em 1989, quando Brizola quase chega no segundo turno, mas chega Lula, em dois dias o Brizola anuncio o apoio a Lula e fez a campanha e aqui no RS, por exemplo, e no Rio de Janeiro ele transferiu 100% dos votos. E quando Brizola faz a declaração, e que depois pegaram a história do sapo barbudo de um jeito que não é assim, veja só como foi:

Em 1989 Brizola diz assim: “Está na hora dessas elites, era Fernando Collor versus Lula, começarem a engolir alguns sapos, que nunca engoliram, sempre mandaram e desmandaram no país. Nós vamos fazer essas elites engolirem um sapo, dessa vez, um sapo barbudo”. Essa era a forma de anunciar o apoio ao Lula. Só que daí ficou o sapo barbudo isolado do contexto, e foi utilizado de várias maneiras. A maneira correta, e eu estava ao lado dele, foi essa. Como na história que ele comparou o Fernando Henrique ao Calabar (Domingos Fernandes Calabar,1609 - 1635, um senhor de engenho nascido na então Capitania de Pernambuco).

Às vezes uma palavra, uma frase, tirada do seu contexto, vira uma coisa estranha, desconectada da realidade. Mas voltando ao que tu colocas, claro que sim, nós temos hoje me parece uma obrigação de lutarmos de forma intensa pela unidade do chamado campo popular e democrático, que vai desde os setores, repito, democráticos, passando por todas as matizes ideológicas até a esquerda, que pode ser setores mais compromissados com o futuro do país e nos livrar das garras do fascismo, que é o projeto desse governo federal. As coisas ruins que acontecem hoje ainda não são a parte pior que eles querem. Então nós temos sim que ter um grau de unidade e acho que a Legalidade e o Brizola são uma inspiração para isso. E o Brizola posterior à Legalidade também, o Brizola de 1989, o Brizola de 1998, quando foi vice do Lula. O Brizola de vários momentos, de uma vida de coerência, de luta pelo povo, de honestidade e de dedicação à causa pública. Acho que esse exemplo de luta contra um grande inimigo do povo brasileiro, e, portanto, inimigo comum, tem que nos inspirar e nos fazer agir corretamente na política de hoje.

"Nós temos sim que ter um grau de unidade e acho que a Legalidade e o Brizola são uma inspiração para isso" / Foto: Fabiana Reinholz

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Edição: Katia Marko