Rio Grande do Sul

LITERATURA

Frente em Defesa do Livro, da Leitura e da Escrita é lançada em Porto Alegre

Ato foi feito na Feira do Livro que é a mais antiga do país e uma das maiores a céu aberto da América Latina

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Lançamento contou com a presidente da Frente, Fernanda Melchionna, Henrique Fontana e Sofia Cavedon
Lançamento contou com a presidente da Frente, Fernanda Melchionna, Henrique Fontana e Sofia Cavedon - Fotos: Divulgação

País sem leitores é país sem pensamento, afirmou certa vez Nélida Piñon, em uma entrevista para Um Brasil, em 2017; o argentino Jorge Luis Borges disse: “sempre imaginei que o paraíso seria algum tipo de biblioteca”. Duas frases, e se poderia citar tantos outros escritores para demonstrar a importância da leitura, e, consequentemente, do livro e da escrita.

Hábito esse que, apesar do crescimento no Brasil, ainda está longe do ideal. De acordo com a última pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Ibope, por encomenda do Instituto Pró-Livro, o Brasil possuía, em 2016, 56% de leitores no país, 6% a mais do que na edição de 2011. Contudo a literatura, está distante desse universo. A pesquisa aponta que o livro mais lido é a bíblia, seguida de jornais físicos e digitais, que lideram o ranking dos tipos de materiais mais procurados, que aponta que 17% os leem todos os dias, enquanto a literatura atinge 9% da população diariamente.

O levantamento foi realizada com mais de 5 mil pessoas com idades a partir dos cinco anos, entrevistadas em todo o país, que foram indagadas sobre seus hábitos e motivações de leitura. O Ibope define como leitores as pessoas que leram ao menos um livro, inteiro ou em partes, nos últimos três meses. Quem não se enquadra nesse requisito é considerado não leitor, mesmo que tenha lidos nos últimos 12 meses.

Para a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL), e presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro, da Leitura e da Escrita, os números são alarmantes, uma vez que 44% da população são considerados não leitores, um universo de quase 100 milhões. A deputada conversou como Brasil de Fato, minutos antes do lançamento da Frente, sobre essa realidade. Apesar dos números, para a deputada, existe no país uma produção literária pulsante.

Em tempos de cerceamento e censura, Fernanda reafirma a necessidade da defesa da liberdade do conhecimento, liberdade de escrita, do livro e da leitura e no combate à censura. "Mesmo que os tempos sejam tempos difíceis, mesmo que a poesia e a produção literária e todas as formas de descentralização do livro e da leitura estejam na berlinda. Embora nós estejamos vendo o corte de verbas e as recentes conquistas do Brasil em risco, como a Lei do Livro, o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), o Plano Nacional do Livro Didático, que são leis muito importantes, uma conquista de todos que lutaram ao longo desses anos para reverter a dívida histórica que o estado brasileiro tem com o seu povo, precisamos seguir resistindo”.

O ato de solenidade, coordenado também pelo deputado federal Henrique Fontana (PT) e a deputada estadual Sofia Cavedon (PT), foi realizado no Teatro Carlos Urbim, na Praça da Alfândega. A cerimônia contou também com a presença do presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, Isatir Bottin Filho, da secretaria de Cultura do Estado, Beatriz Araújo, e de representantes de entidades como a Associação Gaúcha de Escritores, a Câmara Brasileira do Livro e o Conselho Regional de Biblioteconomia da 10ª Região.

A Frente Parlamentar Mista do Livro, da Leitura e da Escrita, que reúne parlamentares e integrantes da cadeia produtiva do livro para discutir pautas comuns ao setor, foi lançada originalmente em Brasília, no início de setembro, por Fernanda Melchionna e pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN).

Deputada cobra mais políticas públicas para incentivo da leitura no país

Confira abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato RS: O que te motivou a criar essa Frente do Livro, da Leitura e da Escrita?

Fernanda: Eu sou bibliotecária, minha formação é essa e trabalhei muito com a leitura e desde que eu comecei a participar como vereadora em Porto Alegre, na política institucional, porque militância a gente milita em várias áreas, a própria luta pelo livro, pela leitura, é uma forma de militância. A gente conseguiu aqui no município de Porto Alegre juntar os atores sociais, os livreiros, os editores, escritores, bibliotecários, mediadores de leitura, em prol de políticas públicas que transformassem política de Estado as ações vinculadas ao livro, à leitura.

O Plano Municipal do Livro da Leitura em Porto Alegre nasceu daí, de uma luta de dois anos e uma legislação que foi aprovada por unanimidade e depois sancionada a partir de um processo de mobilização, empoderamento da cidade. Quando então eu chego na Câmara Federal, penso de que forma seguir essa luta lá, em um cenário diferente de esferas porque a Câmara Federal obviamente trata da legislação para todo Brasil, e também um cenário diferente por conta da situação política do país, onde a crise econômica e a crise de representatividade geraram um vazio lamentavelmente, de forma demagógica, ocupado pela extrema-direita. Extrema-direita que é inimiga do livro e da leitura, que é inimiga do conhecimento, que defende a censura, que defende a ditadura, como a gente viu na fala do filho, do zero dois, do Eduardo Bolsonaro, essa semana.

O Brasil tem uma história recente de reconhecer a dívida histórica que tem com o povo no que diz respeito ao acesso ao livro e à leitura, e as políticas de fomento precisam ser efetivadas, precisa ter um empoderamento dos conselhos e sobretudo políticas públicas efetivas. Mas além de resgatar essas políticas e batalhar pra que elas sejam executadas nesses tempos, a Frente também cumpre um papel de ser um instrumento de luta contra a censura, como o que vimos na Bienal no Rio de Janeiro, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, e no governo estadual de São Paulo, com o governador João Dória recolhendo livros didáticos nas escolas. Todos esses três processos foram derrotados pelo judiciário a partir do movimento real, da sociedade, da luta dos ativistas do livro da leitura e de luta contra a censura. A Frente é parte dessa mobilização, dessa luta, e tem desafios óbvio agregar esses atores em esfera nacional para defender a democratização do acesso ao livro e a leitura e também combater o autoritarismo.

BdF RS: O último levantamento da Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, de 2016, mostra que apenas 56% da população se considera leitora, sendo que o livro mais lido, de acordo com a pesquisa, continua sendo a bíblia, e que apenas 9% são referentes à literatura. Como tu analisa essa questão?

Fernanda: Os índices de leitura no Brasil são historicamente baixos, e não são baixos só comparados com a Europa, Estados Unidos, é baixo comparado com a América Latina (de acordo com pesquisa do NOP World Culture Score Index, que mediu “hábitos de mídia” em 30 países, o Brasil se classificou na 27ª posição no ranking de leitura, enquanto Venezuela (14ª no ranking) e a Argentina (18ª)), que também tem uma tradição, como a nossa, de exploração.

O Brasil, infelizmente, amarga um número baixíssimo de leitores. Quando a gente tira os livros didáticos desse combo de livros lidos nesses últimos três meses, que é o que calcula a Retratos da Leitura Brasil, a gente vai ficar com uma média de 1,4 livros lidos nos últimos três meses. Eu sei que aqui nessa mesa nós aumentamos muito a média, inclusive antes de fazer a entrevista a gente estava falando das nossas leituras. Isso mostra o pouco índice de leitura no país.

O que eu acho é que há uma combinação de fatores que tem a ver com a dificuldade de acesso ao livro e à leitura por parte da população. Comprar livros no Brasil é caro ainda, em um país que o salário mínimo é tão baixo, que as pessoas ganham mal. Nós estamos há quase cinco anos de salário parcelado no Estado do Rio Grande do Sul, que condições que vão ter os servidores públicos e os professores, que são muito importantes como mediadores do processo de leitura dentro da escola, de comprar o livro e poder também se formar como leitor, além de como mediador?

As bibliotecas, metade das escolas públicas não têm biblioteca, e a metade que tem, muitas estão com professores em desvio de função na biblioteca, porque foram afastados da sala de aula por N razões. E agora, esses professores, muitos mesmo sem condições para serem bibliotecários, mas que faziam um trabalho importante dentro da biblioteca, estão sendo retirados. Estamos vivendo um apagão nas bibliotecas no Estado do Rio Grande do Sul. Nós temos uma dificuldade de bibliotecas públicas acessíveis em todas as comunidades, em horários que permitam as pessoas a terem acesso elas.

Também precisamos trabalhar com a leitura de forma diferente. Eu brinco sempre, quando eu era estudante de ensino médio, sobre as leituras obrigatórias. Tem que ler a Moreninha porque é obrigatório, e a Moreninha é um baita livro, mas de repente tu estás com 14 anos louca para ler Harry Potter, e a biblioteca não tem o livro, e tem o da leitura obrigatória, que não é o que aquela faixa etária, cheia de hormônios, está a fim de ler.

Todas as todas as bibliotecas, mas também outros espaços, podem ser formadores de leitores, como por exemplo o poema no ônibus, aqui em Porto Alegre, uma baita iniciativa. Tu está no ônibus, de pé, esperando ir para casa, e está lendo um poema, uma iniciativa modesta. A questão dos livros nos táxis, quando começou e que foi parte do Plano Municipal do Livro e da Leitura, é uma política de leitura importante. Também tem as bibliotecas comunitárias, importante mecanismo para descentralizar o acesso ao livro e à leitura.

Tem muitas formas da gente romper, de buscar responder essa dívida histórica que o Estado tem com o povo no que diz respeito ao livro e a leitura. Mas para isso precisa ter orçamento, precisa ter política, a política do livro de leitura não pode ser uma ação de governo, tem que ser uma ação de Estado. Tem que valorizar todos os segmentos da cadeia produtiva do livro, tem que ter política para formação de mediador, tem que ter espaço para descentralização do livro e da leitura.

Os desafios são enormes e eu vejo que, ao mesmo tempo que os desafios são enormes, as políticas dos governos, e do governo Bolsonaro, um governo reacionário, vão justamente no sentido contrário do que deveria ser feito para ampliar esse acesso ao livro e à leitura. Mas o bom é que a gente tem uma rede de pessoas que está muito preocupada com isso, sem essas pessoas a gente não teria nem o Plano Nacional do Livro e da Leitura. Então eu acho que é possível vencer.

BdF RS: Quando entrevistamos o presidente da Câmara Rio Grandense do livro, Isantir na semana passada, ele disse que a Feira tinha tido saldo de venda de 9%, indo na contramão do mercado editorial, que tinha tido um saldo negativo. Como tu vê essa questão, da Feira, como fomentadora do mercado?

Fernanda: A Feira do livro de Porto Alegre tem uma combinação interessante de vários elementos. Porque ela é uma feira do livro que obviamente tem as bancas para comercializar livros, o que é muito importante, isso é fundamental, os saldos, as promoções, mas ela também é uma feira de formação de leitores, ela tem atividades como o encontro com escritor que é muito importante para incentivar a leitura, a tenda Sherazade, onde está tendo intervenções culturais dentro da Feira do Livro, é um espaço também de proporcionar isso que falávamos, da contação de história para as crianças.

Como a feira do Livro na cidade é muito importante, a feira do livro dentro da escola é uma coisa muito importante. Encontro com o escritor dentro da escola, hora do conto, hora da leitura, tem muitas formas de estimular o livro e a leitura no cotidiano escolar. Para isso, é óbvio a gente precisa estimular, valorizar as bibliotecas e buscar resgatar essas bibliotecas no estado, mas para além disso, tem aquelas iniciativas que rompem o cotidiano. Tu destes o exemplo do metrô, eu dei o exemplo do táxi, do poema no ônibus, biblioteca especializada com políticas de desenvolvimento de retirada de livros também para lazer, construção de bibliotecas comunitárias dentro das comunidades, maleta de leitura, o jegue da leitura, enfim, tem várias iniciativas. O meu amigo que partiu, Hermes Bernardi, escritor, tinha o maravilhoso Tapete Mágico, foi uma política maravilhosa que ele montou, pensou.

Iniciativas tem aos montes, o que a gente precisa é que o orçamento público, que as políticas públicas ajudem essas iniciativas a se desenvolver, a serem estruturadas, e não ao contrário.

BdF RS: Falando de livro, leitura, como tu vê essa questão do download de livros, do livro digital. Atrapalha, ajuda?

Fernanda: Quando veio o ebook, eu estava na faculdade ainda, e se dizia que eles iriam acabar com a biblioteca, e na verdade, embora o e-book nem tenha colado tanto como livro, tem muita gente que lê, claro, mas tem gente como eu que prefere o cheiro do livro. Obviamente que não acabou as bibliotecas, não acabou os suportes.

O digital é um suporte de leitura, é um novo tipo de leitura, não pode ser encarado como antagônico ao livro e a leitura. Quem é que vai organizar esse conhecimento? As bibliotecas virtuais são portais importantíssimos para acessar determinada produção de conhecimento. Eu vejo como um aliado. Agora, em tempos de fake news, eu acho que o nosso papel se redobra, não só no sentido de facilitar essa localização do livro que tu procura, essa organização do conhecimento, porque é muita coisa produzida. Se tu não tem essa organização, tu não acha aquilo que procura, mas também para ajudar as pessoas a identificar fontes, ver o que é fidedigno, o que pode ser mentira, como a gente identifica uma fonte fidedigna, como a gente vê se é falso ou não é. Os profissionais da leitura têm muito a ajudar nesse processo.

Inclusive nós estamos lançando aqui, junto com o a Frente, uma cartilha sobre fake news, porque é uma forma de ajudar nas escolas, os professores a ter um material para trabalhar em sala de aula sobre uma coisa tão recente, tão danosa à democracia, mostrando que esse conjunto de notícias falsas, que não são ingênuas, são montadas por milícias virtuais, que disseminam mentiras de forma sistemática, e, infelizmente, chega e engana uma boa para do nosso povo.

BdFRS: Voltando à questão da Feira, esse ano ela perdeu patrocínio de órgãos federais como a Petrobras, BNDES e até mesmo o IBGE, que esse ano faria parte.

Fernanda: É uma pena. Na verdade é uma demonstração de como estão se desmontando as políticas públicas de acesso ao livro e à leitura. Incentivar a feira do livro é incentivar a formação de leitores, é incentivar que ela continue sendo pública, é incentivar que as escolas possam trazer seus alunos para participar do encontro com escritores, é incentivar um dos pontos mais importantes de acesso da população à praça e a formação de novos leitores.

A perda de patrocínio da Petrobras e do BNDES é a demonstração de como o governo Bolsonaro é inimigo do livro, da leitura, das políticas culturais de desenvolvimento do livro e da leitura. Nós obviamente repudiamos isso, precisamos batalhar para que esses tempos que nós estamos vivendo passem o mais rápido possível. Eu tenho uma convicção, o governo Bolsonaro combina uma agenda ultraliberal que só levou o nosso povo à miséria, à concentração de riquezas, com uma agenda autoritária. Ele quer mudar o regime por dentro do regime, para um regime mais repressivo, sem liberdades democráticas. Ele não tem essa força, mas enquanto quando ele for o governo, ele tentará, e para impor essa agenda ele precisa derrotar a produção de conhecimento, o livre pensar, a democratização do acesso ao livro e à leitura. Nós também precisamos ter a compreensão histórica de que precisamos derrotar esse governo, não é esperar sangrar.

Assista ao lançamento da Frente, em cobertura da Rede Soberania:

Edição: Marcelo Ferreira